quarta-feira, 30 de abril de 2014


PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT’ANNA



2014

Obra Vencedora


TRADUÇÃO DAS MANHÃS

Autor


GISELA RAMOS ROSA EDITORA LUA DE MARFIM

Uma poesia que se desfaz e refaz com uma delicada pureza de imagem e grande musicalidade,

e que existe no centro do mundo


- Rui Paes

A autora demonstra uma grande habilidade nessa poesia que harmoniza forma e conteúdo. Há uma

opção pela economia de meios, numa linguagem que diz o máximo com o mínimo de recursos.

O meticuloso processo de criação traduz, sem esforço, o sentimento da autora de comunicar sua arte,

sem apelação, sem contorcionismos de linguagem, com subtileza e claridade, revelando que em seu

artesanato 'Os pensamentos são uma escrita silenciosa/ são como ramos que se ligam por intervalos

de silêncio', falando mais pelo que oculta e deixando por conta do leitor o remate de sua construção


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- Ronaldo Cagiano


Júri



Ronaldo Cagiano – Escritor

Jacinto Guimarães – Colaborador do

JORNAL DE VÁLEGA

Victor Oliveira Mateus – Escritor

Fátima Mendonça – Professora de Literatura

Rui Paes – Pintor


Nota

: Lista Final estabelecida por maioria – Obra Premiada escolhida por unanimidade

PRÉMIO AO AUTOR DO MELHOR LIVRO DE POESIA



http://gloriadesantanna.wordpress.com/

1ª EDIÇÃO EM PORTUGAL E PAÍSES LUSÓFONOS




DIA 25 DE MAIO ÀS 15:00 - CAPELA DE SÃO GONÇALO EM VÁLEGA

segunda-feira, 28 de abril de 2014


 
(...) interrogava-me sobre  o que poderia manter a nossa quimicamente instável atmosfera num estado dinâmico constante e a Terra, aparentemente, sempre habitável. Além disso, a continuidade da vida requer um clima tolerável, apesar de um aumento de trinta por cento da luminosidade solar desde a formação da terra. No seu conjunto, estas reflexões conduziram-me à hipótese de os organismos vivos regularem o clima e a química da atmosfera no seu próprio interesse; e em 1969 o romancista William Golding propôs chamar-lhe Gaia. Poucos anos mais tarde principiei a colaborar com a notável bióloga americana Lynn Margulis, e no nosso primeiro artigo conjunto afirmámos: a hipótese Gaia encara a biosfera como um sistema de controlo activo e adaptável, capaz de manter a Terra em homeostasia.
   Desde o seu princípio, nos anos 60, a ideia de auto-regulação global do clima e da química era impopular para ambos, quer para os cientistas da Terra, quer para os cientistas da vida. Na melhor das hipóteses, achavam-na desnecessária como explicação dos factos da vida e da Terra; na pior, condenavam-na abertamente em termos mordazes. Os únicos cientistas que acolheram bem a ideia foram alguns  meteorologistas e climatologistas. Alguns biólogos recusaram logo a hipótese, argumentando que nunca se teria desenvolvido uma biosfera auto-reguladora, uma vez que a unidade de selecção era o organismo, não a biosfera. Tive a sorte de contar com esse distinto e esclarecido autor Richard Dawkins como defensor da oposição darwiniana a Gaia; foi doloroso, mas, com o tempo, dei comigo a concordar com ele em que a evolução darwiniana, como era entendida, era incompatível com a hipótese de Gaia. Eu não questionava Darwin, portanto, o que é que havia de errado com a hipótese Gaia? (...)
   Para voltar à argumentação com os darwinistas, ocorreu-me em 1981 que Gaia era o sistema completo - juntos, organismos e meio material associado - e foi este imenso sistema terrestre que desenvolveu a auto-regulação e não isoladamente a vida ou a biosfera. Para pôr à prova esta ideia compus um modelo em computador (...). Este modelo, a que chamei "Daisyworld (...). O "Daisyword" é um modelo de um planeta como a Terra, orbitando à volta duma estrela como o nosso Sol. (...) O "Daisyworld" foi inventado para mostrar que a teoria de Darwin da evolução por selecção natural não é contrária à teoria da Gaia, mas sim uma parte dela.
 
 
  Lovelock, James. A Vingança de Gaia. Lisboa: Gradiva, 2007, pp 43 - 45.
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domingo, 27 de abril de 2014

 
 
A pasta preta, com o seu aspecto sombrio, já estabelecera uma espécie de correspondência cúmplice com a cama, com o quarto e até com a mesinha de cabeceira... E entre todos os lugares onde a tinha visto descansar desde que guardara nela o único manuscrito que desejava salvar pessoalmente dos nazis ( como se já não fora suficiente, ao dá-lo à luz, tivesse dividido a sua pessoa em tantas partes como círculos se traçam com o Krasmesser sobre a cabeça do recém-nascido), este era o que mais o preocupava.
   Então, farejando alarmado a iminência de uma nova revelação, olhou com desconfiança para a janela em frente e deixou deslizar o olhar pela parede à sua esquerda, depois pela da direita: nada!... No entanto, junto à cabeceira da cama, a pequena porta da mesinha de cabeceira tinha ficado entreaberta a através dela anteviu, (...) um molho de jornais e revistas, numa das quais os seus olhos conseguiram recompor, invertida, a palavra alemã Deutsche. "Aí está...!", pensou e, sacudido por um pressentimento, debruçou-se ainda mais (...) conseguiu ler o título completo: Deutsche Zeitung fur Spanien... Mas havia também uma versão em espanhol: Revista alemana de España (...) soltando-se das suas mãos, um dos folhetos caiu no chão. Apanhou-o; era o discurso do Fuhrer em frente do Reichstag, no dia 18 de Julho; recordou-se então da alusão a uma frente alemã que ia desde o cabo norte até à fronteira espanhola, e com um gesto irritado voltou à Deutsche Zeitung fur Spanien... Era publicada em Barcelona e tinha a data de dez de Maio; no editorial invocava-se a inquestionável Vitória do povo alemão, a amizade entre a Espanha e a Alemanha, terminando com a obrigatória saudação ao Fuhrer. (...)
   Sem largar os folhetos, deixou-se cair sobre a cama, que soltou um leve rangido. Então, olhando para o tecto, (...) evocou por instantes os tempos da sua primeira viagem a Barcelona. (...)
    De qualquer forma, agora em Port-Bou não era possível salvar-se em lado nenhum...
   Já nem sequer era possível urdir aqueles planos disparatados, que substituíram outros não menos irrealistas, como o de adquirir a nacionalidade francesa, em que se falava de fugas para países inexistentes em barcos fretados por ricos de além túmulo, como há um mês era possível fazer em Marselha, quando a esperança ainda não lhe regateara a última dádiva.
 
 
   Gaviria, Ricardo Cano. O Passageiro Walter Benjamin. Lisboa: Edições Antígona, 2002, pp 139 - 145.
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sábado, 26 de abril de 2014


O facto é que a recordação de Capri, parecendo confinada ao salão buliçoso do "Hidigeigei" e ao seu bonito quartito com vista para os frondosos jardins da ilha, tinha ficado tão contaminada pelos mosquitos que o assediavam durante a noite, e de que se protegia recorrendo a um rudimentar mosquiteiro, como pelo desembarque de Mussolini na mesma, num belo meio-dia de meados de Setembro. Ou será que agora ia talvez argumentar na sua justificação que fora a frieza da população, mal dissimulada pela grandiloquência das decorações, que o induzira a não conferir toda a importância que merecia ao homem de corpo brando e balofo que, ao levantar o braço com o punho fechado, já sabia perguntar tão apaixonadamente a quem estava reservado o domínio do mar?
   Agora já conseguia reconhecer que, naquelees tempos anteriores à "marcha sobre Roma", devia ter prestado mais atenção ao clamor crescente da resposta - A noi! A noi! - dada à pergunta tão multitudinariamente formada pela primeira ratazana gorda. Além disso, por pouco que reflectisse sobre o assunto, até o amor de Asja se revelava um cruel paradoxo; as horas passadas com ela, conversando no "Hidigeigei" ou passeando ao entardecer por entre os jardins, para não falar da intimidade que se impunha silenciosamente, ao ritmo das conversas e segundo a cadência dos olhares nervosos trocados em cada silêncio, para que teriam servido a não ser para o afastar do que ela tentava precisamente fazê-lo compreender, a saber: a maneira exacta como o seu próprio ciclo pessoal se inseria no da história?
   Pensou que se, logo no começo, o seu amor fora precedido por esse paradoxo, essa circunstância deveria revelar-lhe a proporção do seu atraso em relação ao que se passava no mundo, e também em relação a ela: a mulher amada. Anos depois, quando se voltaram a encontrar em Moscovo, já era algo evidente que girava à volta dela, não tanto como um satélite em volta de um planeta, mas tão-somente como uma mariposa nocturna em redor da chama de uma vela em cujo fogo se manifestava demasiado disposta a perecer. (...) Durante a longa viagem de regresso, embalado pelo matraquear do comboio, teve tempo mais do que suficiente para compreender que o primeiro ciclo do seu amor com Asja já se cumprira e por isso já podia escolher, na sua rememoração, não os últimos dias, mas os do começo.
 
 
   Gaviria, Ricardo Cano. O Passageiro Walter Benjamin. Lisboa: Edições Antígona, 2002, pp 87 - 89.
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quarta-feira, 23 de abril de 2014


Au bord de toi je vis, je meurs. Au bord de toi je m'enchante, et je triche, et j'existe et je ne suis plus rien dès que, mêlé à toi, ta graisse généreuse nourrit mes os glacés, mes os d'enfant. Je suis l'os. Le serpent mou, insidieux, insistant, c'est toi.
   Et tu m'étouffes, et tu me vides ma carcasse, et je deviens ton ombre, et tu me traînes dans tes sentiments, et on me voit sortant de toi, de tes yeux, au fond de ta conscience et de ta peau.
   Je suis ton épure. Attends que je m'accroche à toi comme à l'arbre l'oiseau persécuté, attends que je t'appelle du fond des vies vécues, du fond des morts nouvelles vers ces planètes bienheureuses où les anges donnent leur foutre à qui promet de se couper les ailes. Les anges ont leurs couilles sous les aisselles. Quand ils font l'amour, ils s'éploient et géométrisent l'azur. Je suis ton ange. J'écris dans l'air ta figure, et ce vide vertigineux qui remplit tes culottes du rêve des garçons. Tu es le vide et tu m'emplis.
 
 
   Ferré, Léo. Alma Matrix. Monaco: Éditions La Mémoire et la Mer, 2000, p 21.
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terça-feira, 22 de abril de 2014


Je te vaincs, je te supplie de te mettre à mes genoux, je te demande de me vider comme on vide une barque dans la tempête. Je suis la tempête et ce qui pousse encore de toi est d'une steppe rase, embrumée, pleine de ta rigueur de fille à peine éclose avec, au beau milieu, cette marque... Cette marque je la rêve, je l'embusque, je te la prends comme on prend un mirage indécent, tout nu, pas tout à fait, avec la main qui laisse deviner. Ô ta main sur ta marque comme une parure glacée. Je sais et j'aime tes façons de te cacher comme on cache une maladie. Le jour où je guéris de toi, tu en seras malade? Et je te veux malade, avec ton haleine sucrée et d'un beurre violet dont je ne peux plus me souvenir. Je suis sec. Les portes de l'insoutenable, que tu m'ouvres parfois, me laissent tout juste la place de passer... Alors je te visite et tu me fais voir tes joyaux, tes chairs illuminées par mes yeux extasiés et justes. Je ne vois pas que ce en quoi je crois. Si je coyais en toi, tu ne pourrais plus supporter l'oeil que je te jetterais alors comme on jette sa pâtée à la chienne attentive. Ta pâtée, c'est ma marque à moi. Fais bien attention! Les cartons, quant aux culs bordés, ça me connaît. L'amour, ça me va aussi, quand c'est doublé des lèvres doubles et de ce petit chapeau, en haut, conducteur de l'outrage. Et je t'outrage, ma petite camarade, je t'apprends, je te tourne, je t'invente à demi et tu me trouves entier, je te plais, je te joins, tout juste, pas tout à fait, il y manque un rien de rien, la jointure, la totale, c'est ça quadrature du cercle de l'amour fait. Je te fais l'amour, je suis toi, tu es moi, alors je suis seul et désespère.
 
 
   Ferré, Léo. Alma Matrix. Monaco: Editions La Mémoire et la Mer, 2000, pp 8 - 9.
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segunda-feira, 21 de abril de 2014



   Todos sabemos que o tempo é o grande mestre e o grande taumaturgo. Arruma as ideias e acalma os corações, cura e ensina. Depende de nós aprendermos a sua lição.
 
 
  Faria, Rosa Lobato de. A Alma Trocada. Porto: Asa Editores, 2007, p 184.
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- Nesse caso o Tinito guia o carro, decidiu a avó.
E foram, e deixaram a casa no maior sossego.
Subi para o meu quarto e deitei-me a ler em cima da cama.
Quando estava embrenhado no leitura bateram à porta do quarto. Pancadas leves, delicadas, e interroguei-me quem poderia estar batendo assim.
- Entre, disse um pouco a medo.
Era o Tinito, que entrou e fechou a porta à chave.
- Mas?...
- Cala-te, patrão. Não digas nada se não queres ser violado à bruta. Pensas que podes andar todos os dias em cima de mim com esses cabrões desses olhos azuis?
Quando acabou de dizer estas palavras já estava nu (...). Ia a dizer amo-te, mas ainda pensei que não devia pronunciar nenhuma palavra que me comprometesse para além das coisas do corpo, isso quando estava lúcido, porque logo perdi a noção do conveniente, do tempo, do espaço e das palavras e cedo compreendi que amo-te é uma palavra bem pobre (...).
Saiu cintilante do banho, nu (...) chegou-se a mim, ainda despido e mordeu-me a nádega com força (...) Foi-se embora como tinha chegado, sem beijos, sem carícias, sem despedidas. Só me olhou da porta, mordeu o beiço a sorrir, e saiu.
A ferida no meu rabo começava a sangrar.
(...) Num dia em que não resisti a passar pela cavalariça durante a tarde, perguntou-me:
- Ainda tens a marca?
- Qual marca?
- A marca que eu te fiz. Não finjas.
- Acho que não. Mas não passo a vida a olhar para lá, como deves calcular.
- Pois, calculo.(...)
A marca. Claro que tinha a marca (...). Que marca é essa, tinha perguntado o Hugo.
Um cão, imagina. Um cão vadio que apareceu por ali. Fui fazer-lhe uma festa e ele rosnou-me. Quando me virei apanhou-me por trás. Deu cabo dos meus jeans (...).
Decidi não voltar durante muito tempo. Mas o destino pouco liga às nossas decisões. Havia de encarregar-se de me fazer, querendo ou não, cumprir a minha.
 
 
 Faria, Rosa Lobato de. A Alma Trocada. Porto: Asa Editores, 2007, pp 70 - 77.
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domingo, 20 de abril de 2014

 
Nota - Há umas semanas ( ou terão sido meses?), a Profª Dra. Teresa Martins Marques da Univ. Clássica de Lisboa publicou um extenso poste no Face salientando a qualidade da escrita de Rosa Lobato de Faria. Os argumentos aduzidos  correspondiam,em grande parte, àquilo que eu tinha pensado quando convidei a escritora em questão - e ela aceitou - para integrar a Antologia "Um Rio de Contos", ou seja, Rosa Lobato de Faria é uma autora de primeiríssima água. No romance que agora publicito através de três postes, a romancista articula de forma exemplar aspectos mais tradicionais da narratividade ( a sequência da intriga, por exemplo!) com características assumidamente modernas (como o modo de trabalhar o espaço e o tempo narrativos...). Outro elemento de grande peso, neste "A Alma Trocada", é a forte poeticidade do discurso, que, juntamente com a rigorosa e delicada caracterização das personagens, anula por completo a carga, que poderia ser grosseira, dos vocábulos geralmente tidos por palavrões. Finalmente, a argúcia do olhar da romancista, por vezes eivado de uma ironia ácida, faz dela uma exímia leitora de "mundos interiores" que depois dispõe ante os nossos olhos... para que as nossas almas, apesar dos dilemas do seu sentir, jamais se troquem umas pelas outras. V.O.M.
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   O menino só sabe brincar brincadeiras idiotas de mariquinhas? O seu pai compra-lhe carrinhos, soldados, comboios e você anda aí feito parvo a brincar com uma peninha que ainda por cima arrancou do meu sofá novo? Ora esteja quieto que me está a enervar. (...) Outro dia na praia, em vez de ir jogar à bola com os outros miúdos que se fartaram de puxar por ele, preferiu ficar a desenhar as nuvens e a rir-se sozinho como os maluquinhos quando mudavam de feitio, vai-me de bloco de desenho para a praia, não acho normal, não me diga que nos saiu um artista, mas donde é que isto vem? Há artistas na sua família? Olhe, na minha não. A minha mãe é muito boa senhora mas, Deus me perdoe, uma labrega. O meu querido pai era aquele homem ligado à terra. Eu, não sei fazer um risco, você é o que se sabe. E os seus pais? Ninguém era dado às artes? Já me ocorreu mais de uma vez se não me terão trocado o filho na maternidade. (...) O meu pai reduz-se ao silêncio. Nem responde a estes desabafos da minha mãe. Já me deve ter arrumado no arquivo morto. Quando contribuiu para a compra do apartamento, das duas, uma: ou teve esperança que essa minha decisão de comprar casa fosse um sintoma das atitudes viris que se seguiriam ou viu nela uma forma de me afastar da família. Vá lá ser paneleiro para o raio que o parta, deve ter pensado. E artista e escritor e a puta que o pariu, desculpa Generosa, mas já que dizes que ele não é teu filho.(...) Apetecia-me pensar um bocadinho no Hugo, mas não me dão tréguas.
(...) A Raquel tem olhos de rato. Não só por serem pequenos e escuros, mas porque são astutos. Espreitam-me para tentar descobrir a razão daquele convite. Eu deixo-a sofrer.(...) A minha avó Jacinta costuma dizer que as más notícias se dão à sobremesa. É isso que vou fazer. Ela pediu trouxas-de-ovos e eu deixo-a lambuzar-se até à última gota de calda e de repente, sem aviso, digo, sabes que sou gay , não sabes? Estás farta de saber mas tens andado a disfarçar, a seguir o exemplo dos meus pais. Vocês acham que, se me casarem, fica tudo resolvido. Mas acontece que agora apaixonei-me, por isso o casamento foi definitivamente à viola (...)
- Tens prazer em ser cruel.
   Não é crueldade nenhuma porque tu estás fartíssima de saber. (...) Queres café?
   Quero, disse ela, ainda atordoada.
   Pedi os cafés e a conta. Porque tenho pressa de ir ter com o Hugo, contar-lhe que já não tenho noiva, que o meu rasgão no peito já dói menos, que estou mais preparado para me receber. Estou ansioso por empandeirar a Raquel.
(...) O Hugo não perguntou nada mas li-lhe nos olhos alguma curiosidade. Contei-lhe tudo. Ele abraçou-me e disse, deixa lá, pá. Se sentires falta de uma família, aposto que a minha vai adorar adoptar-te.
   Mas era muito cedo para isso. O Hugo é demasiado generoso.
(...) Nas férias sinto necessidade de ir visitar a minha avó Jacinta porque ela tem de ouvir da minha boca as tenebrosas novidades que a Generosa já deve ter tido a generosidade de lhe passar. (...) A avó levantou-se, veio a mim (...) e abraçou-me com tanta força, com tanto coração, sem uma palavra, sem uma pergunta, que me deu a certeza de que sabia de tudo e fiquei-lhe ainda mais grato por não o ter dado a entender (...)
- Foi a mãe, claro, perguntei.
- Pois, quem havia de ser. Ligou-me para aí num pranto(...). Pedi-lhe que te deixasse em paz, que és maior e vacinado e que antes isso que uma pedra no rim. Explicar não lhe expliquei nada porque ela não percebe. Há coisas que não entram em certas cabeças (...).Cada um é como cada qual (...) e não fizeste nada que atente contra os dez mandamentos.
   Esta argumento fez-me sorrir (...). Só mesmo a minha avó Jacinta para fazer este raciocínio tão simples e pragmático. Com efeito o Hugo até é solteiro, nem o oitavo nem o nono mandamentos estão em causa (...) ele é advogado, chega tarde do escritório, vamos jantar fora ou cozinhamos, na maior concordância.
 
 
   Faria, Rosa Lobato de. A Alma Trocada. Porto: Asa Editores, 2007, pp 28 - 41.
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sábado, 12 de abril de 2014




 
                 " LEIS DA SEPARAÇÃO "  ( Livro de Rui Almeida, Medula, 2013 ).
 
 
Têm os títulos dos livros, bem como as suas epígrafes, a função de nos introduzir no horizonte ou intriga que virão a ser desenvolvidos. Assim, no mais recente poemário de Rui Almeida, a expressão Leis da Separação aponta-nos para algo de fixo e invariável, que, uma vez colocadas e respeitadas condições igualmente estáveis, produzirão necessariamente os mesmos resultados. Podemos aqui, por conseguinte, partir de um eu-poético que se assume a si próprio como distinto da multidão, incapaz – por recusa ou por aspectos de personalidade – de participar nos rituais do turbilhão que o cerca:“Pode a memória de um cheiro gerar/ O pequeno lucro do afecto/ Ou queimar o erro da norma?” (p. 8); “Pela manhã são vistos, apressados,/ A caminho do dia, da sequência monótona/ Para onde se esvai toda a grandeza/ De cada olhar. Nem se notam” (p. 16); “De onde vem tanto barulho?/ Que espécie de riso se expande/ Por corredores estreitos, entre paredes,/ Para chegar ao vácuo da rua?” (p. 24). O apreender-se a si próprio como destoante e separado do vulgo incute no eu-poético indeléveis marcas de: uma radical solidão interior – “Próximo e para lá/ Do que cabe numa linha/ De texto formatado,/ A possibilidade de tocar/ Uma outra existência/ Alheia à distância e ao peso/ Da matéria” (p. 9), “Será possível tocar/ Na pele do rosto de um semelhante/ Sem deixar de sentir/ A sua temperatura?” (p. 24); intensos reflexos de angústia e dor – “E quando te cansas/ Dessa alma de borracha,/ Tão maleável…// Aceleras o coração,/ Acordas surpreendido// E reparas/ Que te faltam/ Mãos e braços” (p. 30), “(…) A noite tem textura/ De caminho difícil até/ Ao limite do mais belo.//(…) Devagar é noite e dói/ Subir à montanha com os olhos.” (p. 34); um vincado desalento tangenciando mesmo, por vezes, um certo pessimismo – “A isto se chama devastação,/ Cinza erguida, totens/ De negro carvão. Nada.” (p. 35). Estes estados, que esboçam o perfil de um sujeito que enceta uma plurifacetada busca na compreensão de si, do Outro, daquilo que o cerca e também daquilo que ele intui que o transcende, estes estados – dizia– são as já referidas condições de partida desse tal olhar perscrutador.

Mas o caminho apresenta-se, neste cismar poético, eivado de escolhos, já que o poeta jamais designa através de um conceito unívoco esse território que lhe surge como fundante, não só da sua busca, mas igualmente do seu estar-aqui, e isso ocorre não por qualquer vacilação do olhar, mas porque ante o inominável serão sempre poucas e redutoras as palavras, mas, apesar de tudo, ele insiste: “Ao que pode e não pode rouba sempre/ A morte, assombra a quantia/ Lenta do alto. “(p.8), esta ideia do Alto surge-nos ainda no poema da página 14; o eterno - “Longe, a ideia de continuar/ Sempre a sentir/ O movimento,/ Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,” (p.9); “A paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:// É frágil em seus limites/ Irracionais.// O lugar das coisas invisíveis/ É a flor dos silêncios.” (p. 11); o centro - “Queres e não vês/ E tomas o acesso/ Mais directo ao centro/ E há nevoeiro e não chegas/ A tempo, mas onde?,//(…) e não sabes/ Onde chega a tua força/ E não tens lugar/ E não ouves e não cantas/ A breve melodia.// E ainda assim.” (p. 40). Esta consciência de uma incapacidade estrutural que é intrínseca ao acto de nomear o que está para além de um aqui imediatista, já o poeta a tinha sentido em livros anteriores: “Ascende ao presente a vaga/ Firmeza aplicada ao que sucede,/ Distracção do tempo/ Assumida em palavras sobrepostas/ Para construir um nome. ( in “Caderno de Milfontes”, p. 12). Este pudor, ou este recato, do nomear jamais é incompatível com a necessidade de busca, e isso surge-nos logo a partir do primeiro livro de Rui Almeida: “É por não buscarmos o que nos salva ou/ Por não sabermos beber da secura dos lábios/ Que nos transportamos para fora dos campos/ Sujeitos à pequenez e à aparência de abundância/ Como seres que perderam a consciência do riso. “ ( in “ Lábio Cortado”, p 7). A inquirição poética contida em Leis da separação surge-nos marcada por quatro aspectos fundamentais: a Dúvida – o poeta, nunca chama a si posições de carácter dogmático ou onde uma certa assertividade se apodere da sua escrita, isto é, os momentos de angústia e de desalento acima referidos aparecem, algumas vezes, geminados com momentos de: dúvida - “Cada passo é próximo/ Demais para chegar// A um fim. Incerto/ Limite/ Do fluxo da vida.” (p.31), “Mais acima e mais para dentro,/ Sustentado por ideias,/ Possibilidades de sonho// A concretizar/ Em caminhos de areia/ Solta por entre/ Abundante vegetação.” (p.32); ironia, muitas vezes magoada – “Iremos aparecer,/ O nosso rosto será/ Visível em fotografias,/ Muitos anos depois,// E sairemos bem/ na contramoda que construirmos.” (p. 12), “ Todos felizes da vida/ por serem humanos;/ Até o maneta,// Que atrapalha o trânsito/ Com obscenidades/ Por não ter nada a perder.// (e esse mais do que os outros)” (p. 17); de utilização, aqui e ali, de um argumentário poético alicerçado em Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, nomeadamente as Teorias da” Matéria e Forma” e a da” Potência e Acto” - “Age no poder da forma o cheiro/ Da memória, assinala/ O fim da leitura… “ (p. 8), “Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,// Concretizado no acto/ de ir ao encontro.” (p. 9), “Até às formas completas/ Que revestem o essencial.” (p. 26); a ideia de ciclo - o itinerário do eu-lírico (como o da criação poética expresso, subliminarmente, no poema da página 22), nesta sua errância por um aqui que lhe surge assumidamente imperfeito e lacunar, não aparece como um processo linear onde as etapas se somem umas às outras, na poesia de Rui Almeida são recorrentes as hesitações, as dúvidas, a consciência da sua própria fragilidade, onde o eu vacila para logo se reerguer e retomar o seu caminho, aliás, não é por acaso que as referências à noite, à nevoa, à sombra, etc., como instâncias impeditivas ou bloqueadores da acção, são abundantes nesta obra: “ A paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:” (p. 11), “Encerram as fontes/ Fragmentos/ Ciclos de esperança,/ Respostas incertas.” (p. 26).

A separaçãoque o poeta, como vimos já, sente relativamente à conformidade, ao turbilhão, à essencialidade do Outro e ao que intui subsistir para além do Aqui, e que ele assume com uma lucidez angustiante e com o desalento próprio de quem teme que esse qualquer encontro redentor não venha, alguma vez, a ser possível, afasta a poesia de Rui Almeida, pelo menos no que diz respeito a este livro, dos intentos poéticos de outros autores: Vergílio Alberto Vieira, nas suas últimas obras, é claro quanto à identificação da transcendência (que ele significa sempre com maiúscula!) e a sua espera jamais aparece como dolorosa ou atormentada: “ Nada vêem os olhos, que tudo vêem,/ com a primeira luz do dia;/ a treva que, a pouco e pouco, das minhas mãos/ se afasta é, agora, que nada me pertence,/ pertença minha; um ramo de sombra apressa então/ a inquieta brancura do caminho.” ( in “Amante de um só dia”, p 13); em José Tolentino Mendonça são também bastante atenuados os momentos de desconforto e insegurança na espera: “Os naufrágios são belos/ sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?” (in A que distância deixaste o coração”, p 28), “Nenhuma sombra ameaça tua porção de luz/ ainda que solte o vento/ medos antigos pelos atalhos// Uma só palavra restitui/ a imensidão “ ( Idem, p. 41), “ Nós não os ouvimos/ mas os desertos, os oceanos, os cimos remotos/ ensinam-te finalmente o que não entendes// Descobres uma casa/ noutras direcções/ a igual distância/da vida que deixamos para trás” ( in “ O viajante sem sono” pp. 35 – 36),aliás, esta ideia de manter a sombra à distância era já visível num livro anterior de Tolentino Mendonça: “Se fechar meus braços outro os abrirá/ no escuro da roda as orações são perpétuas” ( in “longe não sabia”, p. 13). Uma outra plêiade de autores encontra-se ainda mais distanciada da poesia de Leis da Separação, grupo esse que pode ser exemplificado aqui através da escrita laudatória de José Augusto Mourão: “tu semeaste no nossa vida/ a semente do infinito e da beleza/ para que em cada tempo brotem formas novas/ de convivialidade e graça entre aqueles/ que a dor performa e acinzenta “ ( in “ O nome e a forma”, p. 121). O modo como Rui Almeida estabelece, e vivencia, AS LEIS DA SEPARAÇÃO aproximam-no antes de poetas como: Maria Carpi, Daniel Faria e até mesmo de Paul Celan. Veja-se, por exemplo, a última estrofe do poema da página 33: “Só com a grande coragem/ Da desilusão/ Se chega ao riso mais branco/ Por dentro.”, compare-se agora esta estância com um terceto de Maria Carpi: “não tenho mãos/ O meu ofício/ não é cinzelar; tão só pedra bruta/ ser, dentro das entranhas do ver.” ( in “A força de não ter força”, p 88). A desilusão (ou o não ter mãos) não serão, então, condição necessária ao aplanar de todo um território a partir do qual agora, e de modo estruturalmente diferente, se possam edificar pontes? Dito de outro modo: colocadas que foram as variáveis necessárias da vivência poética (inconformidade, angústia, solidão interior…), respeitadas depois as condições da errância e da inquirição ( dúvida, ironia, busca cíclica…), não se chegará, necessariamente na óptica do poeta, a um resultado insofismável que fixará a lei, e que será, neste cismar poético, a visão de que o todo é fragmentário e onde tudo é separado de tudo? Sendo assim, o poema da página 39 – já prenunciado pelo da página 36 –surgir-nos-á como corolário da magnífica e bem desenhada aventura poética traçada por Rui Almeida em Leis da Separação , e que é essa certeza do coração (cf. poemas das páginas 21 e 26, bem como a pouca fiabilidade concedida aos sentidos e à razão esparsa pelos vários poemas) de que só apreendendo a separação,poderemos (ainda) aceder a essa “Coisa mais simples e mais/ Larga, anterior à necessidade/ De justiça.” (p.39) e nela, finalmente, encontrarmos acolhimento e aconchego.
 
 
   Mateus, Victor Oliveira. Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 13 - 1º Semestre 2014. Sintra: Zéfiro, 2014, pp 252 - 254.
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quinta-feira, 10 de abril de 2014

 
 
Pentesileia:
   À medida que me aproximava do Escamandro, e que os vales por onde passava repercutiam o eco da guerra de Tróia, a dor fundia-se-me no peito como neve ao sol e a alma dilatava-se-me ante o vasto mundo dos jubilosos combates. E ocorreu-me, então: se todos os grandes momentos da História passassem de novo diante dos meus olhos, se toda a galeria de heróis, que os hinos celebram, baixasse até mim dos astros, não encontraria ninguém mais excelente, nem mais digno de ser por mim coroado de rosas, do que aquele que a mãe me destinou: o Amorável, o Indómito, o Doce, o Terrível - o vencedor de Heitor! Ó filho de Peleu, tu ocupavas constantemente o meu pensamento, quando eu estava acordada, e eras toda a trama dos meus sonhos! O universo estendia-se à minha frente como uma imensa rede; em cada uma das suas malhas, encerrava-se um dos teus feitos (...) E lágrimas ardentes jorravam-me dos olhos quando pensava, ó guerreiro implacável, que talvez fosse chegada a hora em que um sentimento comoveria o teu coração de mármore.
 
Aquiles:
   Querida rainha!
 
Pentesileia:
   Mas, ó meu amigo, qual não foi a minha perturbação ao avistar-te em pessoa, quando me apareceste pela frente, no vale do Escamandro, rodeado pelos heróis do teu povo - uma estrela matutina entre pálidos astros nocturnos! (...) E fiquei como cega, quando, qual aparição, desapareceste do meu horizonte - assim fulmina o raio o chão, durante a noite, sob os pés de um viandante, ou se abrem e fecham com fragor as portas do esplendente Elísio para acolher uma alma bem-aventurada. Nesse mesmo instante, Pélida, adivinhei a natureza do sentimento que se agitava no meu seio. O deus do Amor atingira-me com a sua seta. Posta perante um dilema, não tardei a decidir-me: ou vencer-te, ou morrer. Para onde olhas? (...) Mas, enfim, o que se passa?
 
Aquiles:
   Nada - nada receies, minha rainha! Comprende: porque o tempo urge, sou forçado a revelar-te o destino que os deuses te reservam. Sem dúvida que te pertenço pela força do amor, e essa cadeia usá-la-ei para sempre. Mas, pela sorte das armas, és tu quem me pertence; foste tu, Rainha, quem rolou aos meus pés, quando nos defrontámos, e não eu aos teus!
 
Pentesileia:
   Monstro!
 
Aquiles:
   Suplico-te, bem amada! O próprio Crónida não poderia alterar o sucedido. Domina-te e escuta...
 
 
    Kleist, Heinrich von. Pentesileia. Porto: Porto Editora, 2003, pp 149 - 152.
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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Prémio Literário Glória de Sant'Anna 2014.



AO AUTOR DO MELHOR LIVRO DE POESIA

1ª EDIÇÃO EM PORTUGAL E PAÍSES LUSÓFONOS


Lista Final
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CÂNONE CONTÍNUO de Luís Felício (Editora glaciar)



CANTO PEREGRINO À JERUSALÉM CELESTE


de Abílio Pacheco (Editora LiteraCidade)
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E POR ISSO EU AMO TANTO A PALAVRA de Aurora Gaia (BLOSSOM BIRDS Books)



EMIGREI – CHOVE MÚSICA NAS MINHAS MÃOS – SERÁ QUE OS PÁSSAROS


TAMBÉM PARTEM TRISTES? de Maria João Saraiva


(COISAS DE LER)



MAÇO DE MARÇO de Lucas Alvim (Editora LiteraCidade)



PROVISÓRIOS de Flávio Machado (Editora LiteraCidade)



TRADUÇÃO DAS MANHÃS de Gisela Ramos Rosa (LUA DE MARFIM)


 
 
Júri



Ronaldo Cagiano –
(Escritor )
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Jacinto Guimarães –

(Colaborador do JORNAL DE VÁLEGA)
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Victor Oliveira Mateus –

(Escritor)
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Fátima Mendonça –

(Professora de Literatura)
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Rui Paes –

(Pintor)
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O Vencedor do Prémio no valor de 3.000 € será anunciado
no dia 30 de Abril de 2014

Detalhes sobre o prémio http://gloriadesantanna.wordpress.com/

terça-feira, 8 de abril de 2014


 
   Falava como alguém que sente algo. Eu não estava habituada a esse tom de voz em Lajos. Observava-o em silêncio.
- Que simples - disse. - Depressa compreendes. Tu foste, tu poderias ter sido, para mim, o que me faltava: o carácter. São coisas que se sentem. Uma pessoa que não tem carácter, ou não tem um carácter perfeito, tem o seu quê de inválido, no sentido moral. Há muitas pessoas assim. Como se fossem criaturas perfeitas, a quem falta uma mão, ou uma perna. Aplica-se-lhes uma prótese e tornam-se logo capazes de trabalhar, de ser úteis à sociedade. Não te ofendas com a analogia, pois tu poderias ter sido uma prótese para mim... Uma prótese moral. Espero não magoar-te - acrescentou, docemente, e inclinou-se para mim.
- Não - disse-, só não acredito nisso, Lajos. Um carácter não se pode substituir. O sentido moral não se pode transmitir de uma pessoa para outra como um transplante artificial. São teorias. Não te ofendas.
- Não são só teorias. O sentido moral, vês, não é algo de hereditário, mas uma característica adquirida. Os homens nascem sem moral. O sentido moral dos selvagens ou das crianças é diferente da moral de um juiz de sessenta anos do Supremo Tribunal de Viena ou de Amesterdão. Adquire-se o sentido moral durante a vida, tal como se adquirem maneiras e cultura. - Falava em tom de padre, como um especialista. (...) Tu és assim Eszter, um génio de carácter; não, não protestes! Foi o que senti em ti. Eu, em questões de moral, sou um surdo, quase analfabeto. Por isso, refugiei-me em ti; creio que foi, sobretudo, por essa razão.
(...)
- Agora já não faz sentido dizer-te estas coisas... mas talvez tenhas razão, não se pode estar calado uma vida inteira. Não acredito nas tuas teorias, mas acredito na realidade, Lajos. A realidade é que me enganaste; como se diria antigamente, em linguagem de romance: "brincaste comigo". Tu és um jogador tão estranho... alguém que, em vez de jogar com as cartas, joga com as paixões e com os seres humanos. Eu era uma das damas do teu jogo. A seguir, levantaste-te da mesa e foste embora... Porquê? Porque te aborreceste. Só foste embora porque te aborreceste. Esta é a verdade. Esta é a pavorosa, a imoral verdade. Pode-se deitar fora uma mulher, como um caixa de fósforos, por paixão, por se ter um carácter assim, por não conseguir ligar-se a uma mulher, ou porque olha para mais alto, porque tudo e todos lhe servem de instrumento. Ainda posso compreender... É infame, mas tem algo de humano. Mas deitar fora alguém por distracção... isso é mais do que infâmia. Isso não tem desculpa, porque é desumano. Já percebes, agora?
 
 
   Márai, Sándor. A herança de Eszter. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, pp 121 - 123.
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domingo, 6 de abril de 2014



Perturbam-me as sombras da casa
os uivos das janelas
os olhares das fotografias nas molduras.
O chão do corredor que range quando o atravesso
as vozes dos vizinhos de baixo, as portas que batem.
Perturba-me o empregado do restaurante em frente
que me vigia quando fumo à janela.
Perturbam-me os arrulhos dos pombos
as obras intermináveis do prédio em frente
o gato morto e já ressequido no quintal da vizinha
o estar longe, o estar só.
Perturba-me o cheiro do cinzeiro
o chiar da porta da cozinha
o bolor dos pimentos há meses no frigorífico.
Perturba-me esta constipação
as chávenas com rachas
o não ter limões, o sangue nas mãos.
Partiu-se o frasco do mel.

Ramos, Inês. chorava como quem se diluía em mel d'abelhas. Lisboa: Tea for One, 2013, p     .




sábado, 5 de abril de 2014

já à venda!

 
 
The latest issue of the Review of Culture – International Edition, published quarterly by the Cultural Affairs Bureau, is already out. Literature is the main theme of this issue, with particular reference to Mo Yan, the 2012 Literature Nobel Prize winner. The Chinese author pens a short story titled "Upside Down" and is also the focus of two other articles: one on his literary journey, by journalist and poet Qiu Huadong, and another on his most controversial work Big Breasts and Wide Hips, a series of reflections and reading notes by author Fernanda Dias.

In the same issue, Maria Ondina Braga and Henrique de Senna Fernandes are revisited by Filomena Iooss and Fernando Margarido João, the former with a study on Nocturno em Macau and the latter with an analysis on the multiculturalism dimension of the work Os Dores.

Rui Rocha and Jorge Barbosa's poetry also deserve literary criticism by Victor Oliveira Mateus and Clara Sarmento, respectively. The concept of "lusophone writer" is analysed in depth by Ana Paula Dias, based on the opinions of Angolan writer Eduardo Agualusa and Timorese novelist Luís Cardoso, on the occasion of the 2013 Script Road Literary Festival. The matter of translatability of Chinese classical poetry, by researcher Júlio Reis Jatobá, brings the issue to a close.

The Review of Culture is available for purchase at the Livraria Portuguesa, Plaza Cultural, Seng Kwong Bookstore, Macao Historical Archives, Public Information Centre and Kun Iam Ecumenical Centre. It is also available for consultation at the Central Library, the Macao Historical Archives and libraries of Macau S.A.R. universities.


                Mo Yan in the lastest issue of Review of Culture

Provider: Cultural Affairs Bureau
Launch Date: 2014-04-04 18:34:00
Number of clicks: 3
"Chinese and Portuguese are the official languages of Macao, the English version of the web site is the translation from the Chinese originals and is provided for reference only."

 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

 
 
        "  Recolha  "
 
 
Recolho-me no jardim
dos pássaros de seda
- fascina-me a alma do
poeta que por lá
vagueia
 
Por aqui às vezes temos
a surpresa do encontro
com fadas e duendes
 
As asas de seda dos pássaros
são música para os meus
gestos
 
O fantástico é verdadeiro
 
À noite    a Lua acetinada
derrama o seu brilho
sobre os pássaros de seda
e eles tornam-se na orquestra
das fadas
 
Gosto de me recolher no jardim
dos pássaros
 
 
     Bettencourt, Eugénia. bagacina. S. Mamede de Infesta: edium editores, 2010, p 38.
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        "  O Avô dos Ventos  "


O avô de todos os ventos
soprou de rijo e inspirou
a tempestade

Pelo ar as folhas voavam sem descanso

Das narinas do Vento
saíam musgos antigos com cheiro a Ilha
e a Mar

As marés cresciam estendendo as suas mãos
sobre a Ilha

A luz escoava-se pela fresta da porta
e a chuva caía em bátegas medonhas

Agora eu estava só     no centro da tempestade


  Bettencourt, Eugénia. bagacina. S. Mamede de Infesta: edium editores, 2010, p 30.
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terça-feira, 1 de abril de 2014


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            O ORIENTE E O SILÊNCIO NA POESIA DE RUI ROCHA


   O recente livro de Rui Rocha, A Oriente do Silêncio, traz para o seio da poesia escrita em português todo um olhar relativo ao mundo, à natureza e ao outro, que não se inscreve numa tradição de cariz discursivo e logicista como é a ocidental. Logo nos três poemas da dedicatória o poeta nos adverte, para a estreita relação existente entre: o murmúrio de uma China antiga, um mandato por cumprir nas sucessões de amantes e o império dos tons e da escrita. Esta tríade, assente no que do longe veio até nós, naquilo que urge levar a cabo e na preponderância daquilo com que nos expressamos, atravessa toda esta obra, por conseguinte, como facilmente se vislumbrará, subjacentemente a esta preocupação poética encontraremos a questão do movimento, que, em Rui Rocha, jamais é abrupto ou turbilhonar: “e que me sussurra a vida” (p 17), “que suavemente ecoa” (p 25), “o rasto suave e redondo” (p 69), mas, se por um qualquer percalço do ver, esta brandura do acontecer se tentar insinuar com um outro ritmo, logo este será estancado por essa serenidade essencial e de vida: “o som das agudas marés/ rebente nas areias serenas” (p 77). Estamos, como se depreenderá, no meio de um acontecer e de uma cosmovisão fundamentados num solo matricial radicalmente distinto do ocidental.
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  A uma civilização e, consequentemente, a dadas formas do fazer artístico que dela emanam, que tem vindo a privilegiar a tecnicização do mostrar e, com um certo gáudio, a impor o artificialismo do acontecer como suma meta de civilização, Rui Rocha contrapõe o primado do silêncio como território fundamental, e fundante, de um existir em autenticidade: “fiquei em silêncio de mãos vazias e nuas/ atravessando a solidão das palavras” (p 43), “ o que não dizes aguarda-nos/ em cada esquina azul do mar” (p 65). Ao invés de uma estética da loquacidade, bem ao gosto ocidental, é numa outra, de serenidade e silêncio, que este autor vai cumprindo o mandato, os tons e a escrita, que deixámos logo assinalados nas primeiras linhas desta recensão.
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  A poesia de Rui Rocha, inextricavelmente ligada à filosofia Zen, subverte assim, de uma forma despretensiosa e coerente, toda uma miríade de quadros perceptivos, conceptuais e interpretativos a que estamos habituados. Convém, no entanto, enfatizar que a opção poético-filosófica deste autor pelo Zen, não deriva de um qualquer circunstancialismo vivencial ou de uma acidental e acrítica escolha. A opção, dentro dos meandros da sabedoria oriental até poderia ser outra, mas o poeta chama a si a inteireza do seu mundo e é aí que, serenamente, e nesse silêncio que se adivinha entre palavras e imagens, edifica o seu universo poético naquilo que se percebe ser a extrema fidelidade a um projecto uno, intransmissível e inalienável.
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  Parece estabelecido que, em 386 AC, um século depois da morte de Shakyamuni (o Buda), deu-se uma cisão no seio do budismo que originou as duas principais escolas desta filosofia: a corrente Hinayana e a Mahayana. Esta tendência de autonomização foi imediatamente seguida de outras atitudes de ruptura: só para o movimento Hinayana surgiram depois cerca de dezoito escolas, enquanto que o budismo que se viria a difundir no Tibete é uma deriva do Mahayana que passou a assumir uma certa especificidade, adquirindo assim a designação de Budismo Vajrayana. Os mahaianistas, já assumidos como tal por volta do séc. I AC, defendem a vocação central do Vazio, da Vacuidade, aliás, no budismo antigo já se afirmava a ausência do em-si e a não-substancialidade dos fenómenos, só que na escola Mahayana esta noção torna-se a verdadeira natureza das coisas, isto é, esse absoluto para lá de todas as oposições. Por conseguinte, se na corrente Hinayana se propõe que os fenómenos se assemelhavam a um Vazio carro puxado a cavalos, já na Mahayana é a própria existência deste veículo que é em si mesma Vazio – todas as oposições não são mais do que Vazio, e realizar a Vacuidade de todas as coisas, adoptar o ponto de vista de Buda, é desencadear o Grande Despertar (1). Mas, e para o que nos interessa aqui neste artigo, digamos tão-só que a vertente Mahayana se propagou pela China, Coreia e Japão, tendo-se desenvolvido no primeiro país duas das suas importantes escolas: o Chan (Zen) e a escola da Terra Pura (estas as mais importantes, porque outras também surgiram!). O Chan consiste em praticar directamente a experiência levada a cabo pelo próprio Shakyamuni quando atingiu o Despertar e abandonou as concepções pessoais e as criações do seu espírito. O início desta difusão na China é fluída e só no século VIII, durante a dinastia Tang, se assiste a uma exuberante eclosão do Chan com uma grande profusão de mestres. Todo este perambular para nos aproximarmos de alguns filósofos do Chan, bem como de certos desenvolvimentos por estes levados a cabo, e que nos aparecem, quanto a nós, como enformando a poesia de Rui Rocha. Vejamos, pois, essas linhas de leitura primeiro nos autores japoneses e, posteriormente, na própria obra do poeta de que nos ocupamos aqui. Assim, defende Sengcan (? – 606) que se pararmos todo o movimento do espírito este ficará tranquilo, diz-nos ainda que o abandono da linguagem e do pensamento nos levará para lá de todo o lugar e que a fonte original está para além do espaço e do tempo, já que um instante se torna então dez mil anos; Dongshan Liangjie (807 – 869), que é um importante mestre de uma das duas grandes escolas do Chan no Japão, a escola Caodon (Soto ), na sua principal obra ( Hokyo Zan Mai), afirma-nos que ir na direcção de, ou tocar, não possuem, nem um nem outro, qualquer valor, não são mais do que uma bola de fogo e, mais adiante, enuncia que meia-noite é a verdadeira luz e que a alba não é clara (2), Hongzi Zhenjue ( 1091 – 1157 ) virá defender que o acto de resplandecer, que não depende de relação alguma, acabará por significar que a iluminação brilha com a sua a sua própria luz. Poder-se-á afirmar, e na sequência do contexto esboçado, que a poesia de Rui Rocha se encontra firmemente enraizada nessas culturas do Extremo Oriente que chamam a si a espontaneidade e a naturalidade como pedra de toque do verdadeiro e do autêntico, quer na vida quer na arte, e que ela apresenta um inconfundível toque de sinceridade, intimamente ligado a uma acção não planeada, que contrasta profundamente com as concepções ocidentais onde um Logos omnipresente (e espartilhador) organiza pensamento e modos de acção. Para o Chan a mente, ou a verdadeira natureza do homem, não pode ser dividida em duas, essa ilusória divisão resulta da tentativa dessa mesma mente pretender ser, ao mesmo tempo, ela própria mas também a sua ideia dela própria, daí a fatal confusão ente facto e símbolo. Ora, para pôr um ponto final a esta ilusão, a mente deve parar de tentar agir sobre si própria, sobre a corrente das suas experiências, pois é este “por si próprio” é que é o modo natural de agir da mente e do mundo: os olhos vêem por si próprios, os ouvidos ouvem por si próprios e a boca abre-se sem termos a necessidade de a forçar a fazê-lo.
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  Demarcando-se com acerbidade das filosofias orientais, as correntes ocidentais – se delas excluirmos as formas de ateísmo e de panteísmo, que até ao século XX foram francamente minoritárias – postulam uma transcendência mais ou menos personificada, bem como uma cisão entre essa mesma transcendência e o território da imanência, ora estas duas linhas de força são completamente alheias a todas as filosofias budistas. No entanto, apesar desta distinção, poder-se-ão encontrar zonas tangenciais entre os dois pensares, que vieram, também elas, influenciar a poesia de Rui Rocha, aliás, não é por acaso que o poeta usa mesmo uma epígrafe de São João da Cruz. Tomemos pois, a título exemplificativo, três autores: em Scivias, obra que Hildegarda de Bingen concluiu em 1151, e formada por três livros descrevendo o primeiro seis visões da autora, torna-se interessante comparar a terceira dessas visões (independentemente da interpretação que a própria Hildegarda dela virá a fazer) com todo o seu jogo de esferas, trevas e chamas flamejantes, com o instante do Grande Despertar intrínseco ao pensamento budista. Hildegarda, na visão seguinte, a quarta deste primeiro livro, diz mesmo tê-la alcançado num esplendor imenso e sereno que brilhou como se múltiplos olhos fosse. Se, contudo, não encontramos influências, demasiado fortes, da autora anterior na poética de Rui Rocha, o mesmo não se poderá dizer de Eckhart que, no Sermão 5b, defende que Deus apenas poderá começar onde termina a criatura, por conseguinte, urge, no ser humano, a saída de tudo o que nele é criatural, pois só após esse despojamento, Deus – o sagrado, diríamos nós – pode ser aquilo que é no interior do homem. Este esvaziamento do em-si, assume, por vezes, no eu-poético de Rui Rocha, fortes tonalidades de melancolia e, até mesmo, de uma indelével sensação de falha e/ou de incompletude: “há muito que não te desenho o amor sobre a folha/ de um papel/ não guardei e muito menos perdi essas palavras/(…) escrevi-as dentro de mim quando mais lugar algum/ havia para as escrever “ (p 45); “não sei o que se passa comigo/ tudo me parece vago,/ vago e ausente.// algo me falta.// onde estou/ creio que não estou” (p 88). O Sermão 42 de Eckhart, que nos diz que na alma há uma potência mais vasta do que o vasto céu, defende claramente que é no lugar onde terminam quer a compreensão quer o desejo, e onde as trevas se iniciam, é exactamente aí que se inicia a luz de Deus. Ouça-se então agora a voz do poeta: “a noite segreda-me de novo aquele olhar/ que antes escutara nos teus olhos silenciosos/ e que me sussurra a vida/ como a espiral de um búzio” (p 17); “tu és a voz/ que suavemente ecoa/ nos meus passos/ pelo chão da noite” (p 25). Todos os versos do poeta aqui citados podem, do mesmo modo, ser confrontados com os poemas de São João da Cruz, dos quais destacamos: o poema IV, Coplas del mismo hechas sobre un éxtasis de alta contemplación e o poema XIX Glosa a lo divino.
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  Na poesia de expressão budista, e neste caso concreto mais ligada à variante Zen, há uma reverência para com a natureza que, enquanto regra, é incomum no ocidente. Convém, no entanto, ressalvar que por natureza não se entende tão-só as chuvas, as canas de bambu, etc., mas também os desejos e os desencantos. E eis-nos ante uma nova característica desta escrita: a extrema ambiguidade do referente deste universo poemático, nunca se decidindo o eu-poético em explicitar se estamos frente a um qualquer processo de antromorfose de onde uma mulher amada pode acenar, ou se essa insinuação feminil é a projecção de outro tipo de contexto, como por exemplo a natureza:


        esta noite a tua presença
        rondou os meus passos.
       a lua cheia chegou.
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 Rui Rocha (op. cit. P 57)


Segue o poeta, então, esse processo de enriquecimento que alguns teóricos têm postulado para os haicais, ou seja, que o autor deve expressar a sua sensibilidade, mas evitando sempre as impressões demasiados individualizadas. O fascínio pela poesia oriental, e concretamente pelo haicai, tem levado alguns poetas que escrevem em português a dedicarem-se a tal género de poesia, citemos apenas quatro exemplos de autores através das suas obras referidas aqui na bibliografia:


      Nem sempre a neve
      cai do céu: às vezes
     explode numa flor
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 Albano Martins (op. cit. p 251)


        Madrugada –
       No quintal, a lua
       E o lírio branco.
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  Paulo Franchetti (op. cit. p 28)


         pelos caminhos que ando
   um dia vai ser
        só não sei quando
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  Paulo Leminski (op. cit. p 108)


       Silêncio. Ouçam
   a vida – água correndo
      cada vez mais triste
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 Casimiro de Brito (op. cit. p 16)
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  Se a poesia de Rui Rocha não acusa quaisquer influências dos poetas portugueses de cunho orientalista, como por exemplo Camilo Pessanha, não deixa de ser também verdade que, no essencial, esta escrita pode bem aproximar-se do que de melhor têm feito, no género, alguns dos grandes poetas de língua portuguesa e os cinco haicais acima transcritos pretendem fundamentar esta posição. Por outro lado, a especificidade da matriz poética do oriente aparece na obra do poeta cimentada nos seus múltiplos aspectos, alguns dos quais já referidos neste artigo: a problemática do movimento; a recusa da tecnicização e do artificialismo em arte; a reverência – e até mesmo uma certa humildade – perante a natureza, que nada tem a ver com o paradigma do domínio e violentação da mesma bem ao gosto do ocidente e que pulula, enquanto amostra, em grande parte da poesia ocidental. A todas estas variáveis, e para terminarmos conforme começámos: sob a égide da tríade, acrescentemos – à guisa de conclusão – a grande importância que têm na poesia de Rui Rocha: a) a recusa do discursivo e da narratividade, optando o poeta pela apreensão desse instante fulgurante sempre conciso e nítido: “ave que o sol contempla/ branca, de todas as cores,/ eleva-se dos sombrios dias” (p 36); “um breve rasto de leme/ cortou a luz deitada/ na poeira surda das ondas” (p 83); b) o estatuto do silêncio no seio do dizer: “sem acordar as palavras/ deslizei até ao chão” (p 37), “escuto o teu silêncio/ a entardecer o dia./ apenas a luz da lua/ me dá conta de ti.” (p 53); c) a importância desse Grande Despertar, que recusa todo um logicismo iniciado no Ocidente por Platão e que depois Aristóteles desenvolveria fundamentando, bem como todo um universo conceptual de tipo dicotómico, optando antes por um discurso assente num despojado ver, que, frente, à impermanência dos fenómenos, se ilumina e ilumina o que na abertura de ser se mostra como algo pleno de autenticidade A Oriente do Silêncio.
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  No entanto – e convém acrescentar – ao enriquecimento e à fascinação que a leitura deste livro de Rui Rocha nos traz não é alheio o sábio modo como maneja as imagens, o código linguístico e as técnicas do labor poético, quer em cada poema quer na obra enquanto todo. Dessa sua arte frisemos apenas o uso de estruturas poemáticas de tipo anafórico, cujo objectivo é imprimir ao discurso ritmo, leveza e musicalidade (cf. pp 34, 47, 51, 75…); o recurso aos paradoxos na apreensão do acontecer: “escuto o teu silêncio/ a entardecer o dia.” (p 53), “este é, de resto, o único sentido/ claro e absurdo da natureza,/ é ser tudo e ser nada ao mesmo tempo.” (p 89) e, finalmente, a constante tentativa de fixar o aqui e agora:
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      guiada pelo rasto da última estrela
     reflecte-se a maresia da tarde
     além, no sal azul dos litorais.
     contra o submerso silêncio das horas
     a noite esconde-se atrás da lua.
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    Rui Rocha (op. cit. p 71)
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e é esta tentativa, sempre por esta escrita retomada, de absolutização do instante, que constantemente ilumina o percurso do eu-poético na demanda desse seu Oriente que é, acima de tudo, resplendor e Silêncio.



  Mateus, Victor Oliveira. Revista de Cultura/ Review of Culture, Macau, 44, 2013, pp. 59-63.




(1)    Relativamente a este ponto será útil a leitura dos Capítulos 17, 18 e 19 de Tratado do Meio de Nagarjuna, autor fundamental do Budismo e fundador da escola Madhyamika, “A Via do Meio”; são também de sua autoria os importantes comentários “Prajnaparamita-Sutra” onde a noção de Vacuidade é devidamente clarificada.
      (2)    Leiam-se os capítulos “a noite dos dias” e “contos de lua vaga” de A Oriente do Silêncio.



BIBLIOGRAFIA:

. Bashô, Matsuo (1986). O gosto solitário do orvalho. Lisboa: Assírio & Alvim.

. Brito, Casimiro (2012). A Boca da Fonte. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

. Crépon, Pierre (1991). Les fleurs de Bouddha, Anthologie du bouddisme. Paris: Albin Michel.

.Cruz, S. João da (2002). Os mais belos poemas. Queluz: Coisas de Ler Edições.

. Eckhart (1995). Traités et Sermons. Paris: GF-Flammarion.

. Franchetti, Paulo (2007). Oeste. São Paulo: Ateliê Editorial.

. Leminski, Paulo (2002). Distraidos venceremos. São Paulo: Editora Brasiliense.

. Martins, Albano (2000). Assim são as algas. Porto: Campo das Letras Editores.

. Nagarjuna (1995). Traité du Milieu. Paris: Éditions du Seuil.

.Pernoud, Régine (1995). Hildegarde de Bingen, conscience inspirée du XIIe siécle. Paris: Editions du Rocher.

. Rinpoché, Kalou (1993). La voie du Bouddha. Paris: Éditions du Seuil.

. Rocha, Rui (2012). A oriente do silêncio. Lisboa: Esfera do Caos Editores.

. Shantideva (1998). O caminho para a Iluminação. Lisboa: Livros e Leituras, Lda.

. Watts, Alan W. (S/d). O Budismo Zen. Lisboa: Editorial Presença.
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