quarta-feira, 29 de outubro de 2014



         "  Agora sem asas  "

aqui o meu voo é ao rés do chão
e declino a presença dos braços

meus pés pisam a terra com cuidado e desvelo
sonham caminhos que não há

pressinto uma brisa pelos cabelos uma sombra fugidia
que me leva pela mão

sigo um trajecto escolhido
desenhei-o com quatro pontos cardeais em giração
contínua
e a vontade é de conjugar o olhar ao acordar de uma
manhã em todas

floração desmesurada e luz solar em catadupa
os verdes retemperam a escala da íris alucinada
acesa de evidências indemonstráveis

dispenso assim qualquer demonstração
rigor cesura ou equação

vou num ritmo tenso e brando sem procura
sabendo que a chegada se faz a todo o momento

ao lugar onde inominado leve intenso

descubro algum saber ser

agora
sem asas

e deponho o que resta delas
no lugar

onde
inteiro

bate o coração


  Leite, Ana Mafalda. Livro das encantações. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, pp 45 - 46.
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  " O que já nos pertence "


                      Tirem-nos tudo/ mas deixem-nos a música


                                         Noémia de Sousa






povoa-me habita-me invade-me
não me deixes tomar este veneno sozinha
       estremeço de dor
como pode ser tão estranho sentir-me assim


tão alheio de dar ou pedir o que já nos pertence


enquanto sobre imaginados antúrios continua o voo
deslumbrante desses pássaros cegos para um norte infindo
convoca-me um leito sem pátria
                          onde a sombra reside na asa enorme
de pássaro que enche o quarto


invento novas canções por sobre o trapézio do mundo
e solto à cabeceira a paixão em ganchos cintilantes
flores arrancadas de longo pé
para que a minha loucura abrande
o fervor enfeite meu cabelo
solto em outro trópico
que dança


um candeeiro de luz se acende no mapa ao ver-te
sem saber que não me é necessário pois seus raios não
chegam para iluminar esta pomba mansa que se  instala na
minha íris e voa em longas índicas asas e se expande
longe no horizonte
sem saber que a arte é não haver noite suficiente
para tanta demora em chegar a terra


por que não me desvias o olhar e me levas para um escuro
cintilante em que a lua não mente


por que me cega este sol em que me desejas agora?




  Leite, Ana Mafalda. Livro das encantações. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, pp 25 - 26.
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quarta-feira, 22 de outubro de 2014



                        Anfiteatro da "Casa das Artes" de Vila Nova de Famalicão
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“O real poético e o real da poesia: algumas considerações”


 


 


                                                                         Victor Oliveira Mateus


 


 Parece pacífico, em alguns filósofos contemporâneos, a distinção conceptual – fortemente alicerçada em Lacan - entre Real e Realidade, surgindo-nos esta última como o conjunto de elementos vividos e observáveis, enquanto o primeiro nos aparece antes como o território estruturante e condicionador das situações concretas e vivenciadas (Cf. Slavoj Zizek, Violência, 2009, pp. 20-21). Seguindo esta linha de raciocínio conseguir-se-á inferir: primeiro, que o Real a analisar poderá apresentar aspectos contraditórios com a Realidade que lhe é inerente; segundo, não existe, por conseguinte, um Real único e homogéneo passível de ser abordado do mesmo modo pelas várias áreas do saber, mas antes distintas conceções dele consentâneas com os distintos olhares disciplinares que sobre elas se debruçam – exemplo: o Real investigado pelas matemáticas acabou desembocando numa linguagem artificial intraduzível pela linguagem natural, dando azo a uma Realidade de onde a segunda, e seu respectivo código, foram banidos, aliás, tal procedimento tem vindo a ser tentado nas Ciências Sociais e Humanas, embora com êxitos muito mais duvidosos, vejam-se os casos da Economia, da História e da Ciência Política (Cf. George Steiner, Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o Inumano, 2014, pp. 36-44).


            No caso da poesia, o Real de que ela tem falado predominantemente ao longo dos séculos não tem escapado à veemência do olhar analítico-descritivo, nem à necessidade de adequação da linguagem ao Real por ela tido como concreto, e é na implementação deste mesmo paradigma que Platão se apresenta como um marco fundamental e fundante. Aliás, não deixa de ser curioso que tendo este filósofo atribuído aos poetas uma nova conceção do Real (o da Imitação), divergente da que eles haviam possuído aquando dos pensadores originários, seja ele também – no Livro X da República – que os expulsa da cidade em nome de toda uma arquitectónica que até então tinha sido alheia à poesia. O trabalho do poeta é, para Platão, “uma espécie de jogo infantil” (Cf. Platão, República, 1975, p. 333) e, não tendo ele por fito a criação de objectos reais, nem tão-pouco um saber baseado na fabricação ou no uso dos referidos objectos, apenas lhe resta a mais baixa menoridade ontológica (Idem, 331 – 334). Com Platão a Metafísica adquire foros de cidadania e é com ela que se implementa o Sujeito e um Real assumidamente dicotómico como traves mestras do Saber e do Ser, passando o real da Poesia e ser essa zona de sombras onde as aparências se entrecruzam afastando os seres humanos da verdadeira realidade – o Inteligível. Com Platão inicia-se o velamento do Real poético, metamorfoseado agora num mero Real da Poesia onde “o imitador não tem, portanto, nem ciência nem opinião recta no que respeita à beleza e aos defeitos das coisas que imita.” (Idem, ibidem p 333). O Real da poesia é agora o reino do ludíbrio, da gratuitidade, do lúdico persistente jogando-se algures entre o erro deliberado e o esquecimento do Ser. Inicia-se aqui – não sem algumas contradições – um longo caminho que Aristóteles, na Poética, virá cimentar.


        A poesia, em Platão, encontra-se intimamente ligada ao fazer, à acção. Diógenes Laércio, quanto a este assunto, é bastante claro: existem, para este filósofo, três tipos de saber: o prático, o poético e o teórico, “assim a arquitectura ou a construção de barcos são ciências poéticas, já que delas resulta uma obra criada “ (Cf. Diogéne Laerce, Vie, doctrines et sentences des philosophes ilustres. 1 , 1965, p. 189). E é exactamente aqui que surge a inversão no pensamento ocidental com o consequente velamento do Real Poético tal como o diziam os pensadores originários: o Sujeito, a Metafísica e a Subjectividade são agora os pólos instigadores da acção e a poesia não é mais do que um artefacto produzido pela referida tríade.


      Mas a hostilidade de Platão para com o Real, segundo ele, vislumbrado pelos poetas, bem como para com a Realidade por eles cantada, está longe da coerência que a Metafísica recém-instalada para si advoga: os poetas visados por Platão são os que vinham a ser veiculados pela tradição, sobretudo Homero e Hesíodo, até porque nem tudo o que é escrito em verso pode ser entendido como poesia. Aristóteles, na Poética (1447 b 16 – 23), viria a reiterar esta última asserção: “(…) na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de poeta, e este, o de fisiólogo, mais do que o de poeta.”, convém acrescentar que Aristóteles, ao longo desta obra, deixa escapar por várias vezes o seu enleio por Homero ( Cf. 1448 b 33, 17 e 1459 a 29, 149) e pelos trágicos ( Cf. 1462 b 12, 184), o mesmo acontece com Platão, que, no Livro II da República, não consegue esconder a sua admiração por Ésquilo, aliás, Platão defende mesmo que o ensino dos poetas deve ser ministrado aos guardiães da pólis. Como entender, então, depois de tudo isto, a aversão dos instauradores da metafísica ocidental aos poetas e à Realidade por estes cantada? Maria da Penha Villela-Petit (Cf. Kriterion: Revista de Filosofia, nº 107, vol. 44) segue de perto a tese de Julia Annar ( Cf. Introduction à la République de Platon, PUF, 1994) que defende que o Livro X da República, com a consequente defesa da expulsão dos poetas da cidade, teria sido escrito antes de todos os outros livros da mesma obra, daí alguma falta de concordância entre esse Livro X e todos os outros relativa a tema em questão, por outro lado, esse estudo afirma o que pode ser confirmado nos dois filósofos gregos, ou seja, para eles os poetas, como a sua arte da imitação, dariam uma visão incorreta dos deuses, facto que viria a ter consequências graves na educação dos jovens e, sobretudo, na governação da cidade, no entanto, os danos da poesia poderiam ser praticamente diminutos caso aqueles que a escutassem estivessem imunizados com o respectivo antídoto (Cf. República, 1975, pp 324 e 334; Poética 1460 b 8, 161 – 1461 a 3,168 – 15, 170). Dito de outra maneira – e enfatizando o título deste texto – os danos causados pelos poetas na concepção do Real que acabava sendo instalada pela Metafísica, poderiam ser torneados com alguma eficácia caso o Sujeito, dotado de Razão, usasse essas obras apenas para exercitar o conhecimento discursivo (dianoia), visto desses imitadores jamais se poder esperar o acesso à Verdade e à Justiça, pelo que se concluiria a sua vincada perigosidade no interior da pólis.


      Assim emerge um Real da poesia, fundamentado na Metafísica, na Subjectividade e num Sujeito produtor de artefactos imitativos e de uma Realidade confinada às aparências. Assim emerge, por conseguinte, um Real à disposição da Razão e dos Sentidos e uma Realidade tida por concreta porque objectivável, analisável e oferecendo-se passivamente a todas as modalidades de um nomear que passará a ter o ente como ponto de partida. Estava consolidado, então, o corte com o olhar dos pensadores originários que haviam precedido Platão e Aristóteles: a Palavra passaria agora a ser uma das várias capacidades do sujeito e passaria também a ser usada segundo critérios de eficácia. A própria produção do poema terá então como finalidade uma mescla de respeito pelo rigor metrificável com o deleite que pode vir a proporcionar. Tem sido este o Real da poesia a predominar no ocidente, tem sido este o território onde se tem movido grande parte da produção poética. Contudo, nesse continuum poético-epistemológico, muitos têm sido os poetas que perfilharam orientações ontologicamente distintas e cuja escuta se tem centrado nessa clareira onde o ser-sendo se vai desvelando em seu criptográfico modo, já que, nesta outra visão, aquilo que se mostra fá-lo de modo velado; esses poetas intuem que a Palavra não é coisa de sua posse, mas que lhes é concedida por algo que os precede e que ante eles se desvela em sua forma de velar-se – esta era a trave mestra do Real poético que marcou os pensadores originários e que a Metafísica viria alterar, mas que, apesar de tudo, continuou irrompendo – episodicamente - em poetas como Rilke, Holderlin, Novalis, Celan, etc., e, entre os que têm vindo a escrever em português, em Ricardo Reis, Teixeira de Pascoaes, Dora Ferreira da Silva e Natália Correia (Cf. Miguel Real, O pensamento português contemporâneo 1890 – 2010, 2011, pp 806 – 822).


     Nestes dois caminhos, discordantes mas apesar de tudo paralelos, se tem inscrito a poesia do ocidente: o paradigma platónico-aristotélico com os seus excessos e as suas limitações e o paradigma originário-heideggeriano com a sua minuciosa perscrutação e as suas insuficiências; um mais preocupado com o Real da poesia, o outro tentado pela autenticidade no seu modo de acesso ao Real poético, e é em torno deste último que concluiremos citando as palavras de Manuel Antônio de Castro (Cf. Poiesis, Sujeito e Metafísica in “A construção poética do real”, 2004, pp 64 – 68) quando relaciona acção-que-produz, desvelamento e verdade: “ A poiesis enquanto pro-dução com-duz do velamento para o desvelamento. A este processo (agir da poiesis), os gregos chamaram Aletheia. E nisso consiste a verdade. Portanto, a verdade como verdade, como aletheia, é poética. Algo verdadeiro consiste no ser vigente enquanto poiesis. (…) A poiesis, por isso mesmo, é o vigor da ambiguidade/ polemos da physis, da clareira, da verdade (aletheia), da abertura do livre aberto, do iluminar da clareira e do próprio on-sendo. A poiesis é ambígua, é polemos, agir e não-agir. (…) A poiesis é, pois, como aletheia, a verdade enquanto não-verdade de toda verdade.”


Mateus, Victor Oliveira. Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciência, nova série/ número 49/ dezembro 2014 - janeiro 2015.
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terça-feira, 21 de outubro de 2014




O problema, no caso de Eichmann, era que havia muitos como ele, e que estes muitos não eram nem perversos nem sádicos, pois eram, e ainda são, terrivelmente normais, assustadoramente normais. Do ponto de vista das nossas instituições e dos nossos valores morais, esta normalidade é muito mais aterradora do que todas as atrocidades juntas, pois ela implica (como foi dito inúmeras vezes em Nuremberga pelos réus e pelos seus advogados) que este novo tipo de criminoso, sendo, na realidade, um hosti humani generis, comete os seus crimes em circunstâncias tais  que lhe tornam impossível saber ou sentir que está a agir erradamente. (...) o único dado objectivo que permitiria, eventualmente, provar a má consciência dos réus era o facto de os nazis, e especialmente as organizações criminosas a que Eichmann pertencera, terem passado os últimos meses da guerra a destruir afincadamente as provas dos seus crimes. Ora isto, como prova, era insuficiente. Provava apenas que a lei dos assassinatos colectivos era demasiado nova para ser aceite e reconhecida pelas outras nações; ou, para usar a terminologia nazi, que eles tinham perdido a batalha para "libertar" a humanidade do "reino das espécies sub-humanas", e do domínio dos Sábios de Sião em particular; ou ainda, para usar uma linguagem corrente, provava apenas o reconhecimento da derrota. Ter-se-iam os nazis sentido culpados se tivessem ganho?(...) então a justiça do que se fez em Jerusalém teria emergido à vista de todos se os juízes tivessem ousado dirigir-se ao réu em termos como os seguintes:
" O senhor admitiu que o crime cometido contra o povo judaico durante a guerra foi o maior crime de toda a história, e admitiu também o seu o seu papel nele. Afirmou nunca ter agido por motivos vis (...) O senhor afirmou também que o seu papel na Solução Final foi um simples acaso e que qualquer outra pessoa poderia ter tomado o seu lugar, de modo que quase todos os alemães são, em potência, igualmente culpados (...) E como o senhor apoiou e executou uma política que consistia em não querer partilhar a Terra com o povo judaico e os povos de várias outras nações - como se o senhor e os seus superiores tivessem o direito de decidir quem deve e quem não deve habitar a Terra - pensamos que ninguém, nenhum ser humano, pode querer partilhar a Terra consigo. É por esta razão, e só por esta razão, que o senhor deve ser enforcado."


  Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal. Coimbra: Edições Tenacitas, 2003, pp 355 - 358.
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segunda-feira, 20 de outubro de 2014



O que aconteceu então foi que os juízes de primeira instância, ao se aperceberem dos exageros da acusação e não querendo fazer de Eichmann o superior de Himmler e o inspirador de Hitler, se viram numa posição em que eram obrigados a defender o réu. Esta obrigação, por muito desagradável que fosse, não teve qualquer influência nem no veredicto, nem na sentença, pois " a responsabilidade moral e legal daquele que manda a vítima para a morte não é, no nosso entender, menor, e talvez até seja maior, do que a responsabilidade daqueles que a executam."
     Para fazer face a todas estas dificuldades, os juízes encontraram uma solução de compromisso. O veredito divide-se em duas partes (...) e mostraram a sua intenção de se concentrar naquilo que Eichmann tinha feito e não naquilo que os judeus tinham sofrido. Numa óbvia reprimenda à acusação, os juízes declararam explicitamente que um sofrimento daquela dimensão estava "para além da compreensão humana", que era matéria para "os grandes poetas e escritores" e não podia ser tratada numa sala de tribunal. Em contrapartida, os actos e os móbiles que o tinham causado estavam aquém da compreensão humana e eram, esses sim, susceptíveis de ser julgados. Chegaram ao ponto de declarar que tirariam as suas conclusões a partir da sua própria apresentação dos factos (...) Trataram de adquirir um domínio sólido da intrincada organização burocrática que estava por trás da máquina de destruição nazi, por forma a conseguirem perceber claramente qual era a posição do arguido.




  Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal. Coimbra: Edições Tenacitas, 2003, pp 282 - 283.
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domingo, 19 de outubro de 2014




   Será Eichmann um caso paradigmático de má fé, uma mistura de auto-ilusão e estupidez extrema? Ou será, simplesmente, o caso típico do criminoso que nunca se arrepende, que não pode dar-se ao luxo de enfrentar a realidade porque o seu crime se tornou parte integrante dela? (Dostoievki refere nos seus Diários que, na Sibéria, entre dezenas de assassinos, de violadores e de ladrões, nunca conheceu um único homem que admitisse a sua culpa.) E, no entanto, o acaso de Eichmann em nada se assemelha ao do criminoso comum, pois este, face à realidade de um mundo não-criminoso, apenas se pode refugiar dentro dos limites estreitos do seu bando. Eichmann, porém, só precisava de evocar o passado para se convencer de que não estava  a mentir aos outros nem a enganar-se a si mesmo: nessa altura, tinha estado em perfeita harmonia com o mundo em que vivia. E a sociedade alemã, com os seus oitenta milhões de pessoas, tinha-se defendido da realidade dos factos exactamente da mesma maneira, com a mesma auto-ilusão, as mesmas mentiras e a mesma estupidez que eram agora parte integrante da mentalidade de Eichmann. Estas mentiras mudavam de ano para ano. Muitas vezes, contradiziam-se. Pior ainda, não eram necessariamente as mesmas consoante se destinassem aos diferentes sectores da hierarquia do Partido ou ao povo em geral. Mas a auto-ilusão tornara-se prática corrente, quase um requisito moral de sobrevivência; de tal modo que hoje, dezoito anos volvidos sobre o colapso do regime nazi, quando o conteúdo exacto dessas mentiras se encontra quase totalmente esquecido, ainda é por vezes difícil acreditar que a mentira não se haja tornado parte integrante do carácter alemão. Durante a guerra, a mentira mais eficaz com o povo em geral era o slogan da "batalha predestinada do povo alemão" ( der Schicksalskampf des deutschen Volkes). Lançado por Hitler ou por Goebbels, este "slogan" facilitava o processo de auto-ilusão em três aspectos: em primeiro lugar, sugeria que aquela guerra não era uma guerra; em segundo, que tinha sido desencadeada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro, que era uma questão de vida ou de morte para os alemães , que se viam obrigados a escolher, entre aniquilar os seus inimigos ou serem eles próprios aniquilados.
    A espantosa prontidão com que Eichmann reconheceu, tanto na Argentina como em Jerusalém, os seus crimes, não foi mera consequência desta sua capacidade para se auto-iludir (característica de qualquer criminoso). Resultou, sobretudo, dessa atmosfera generalizada da mentira sistemática que então reinava no Terceiro Reich. Era "evidente" que havia desempenhado um papel no extermínio dos judeus; era evidente que, se "ele não os tivesse transportado, os judeus não teriam sido conduzidos ao matadouro". " O que há para 'confessar' ?", perguntava ele. E agora, prosseguia, "gostaria de fazer as pazes com os (seus) antigos inimigos" - desejo que Eichmann partilhava (...) mas também, por incrível que pareça, com muitos alemães comuns a quem, no final da guerra, se ouviam propósitos de teor idêntico. Este cliché revoltante já não lhes chegava de cima; tinha-se tornado uma frase feita, fabricada pelos próprios, tão desprovida de realismo como os clichés a que o povo alemão se habituara ao longo de doze anos; e era quase palpável a "extraordinária sensação de euforia" que estas palavras proporcionavam a quem as pronunciava.


  Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal. Coimbra: Edições Tenacitas, 2003, pp 108 - 109.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2014






     Não será assim que a ideologia funciona? O texto ou a prática ideológicos explícitos são sustentados por uma série não tocada de suplementos superegóicos obscenos. Sob o socialismo realmente existente, a ideologia explícita da democracia socialista era sustentada por um conjunto de injunções e proibições obscenas implícitas e não ditas que diziam ao sujeito como não levar a sério certas normas explícitas e como observar um conjunto de proibições não reconhecidas publicamente. Uma das estratégias da dissidência durante os últimos anos do socialismo foi portanto precisamente tomar a ideologia dominante mais a sério e em termos mais literais do que se tomava a si própria, ignorando a sua sombra virtual e não-escrita: "Querem que pratiquemos a democracia socialista? Muito bem, aqui está, então!" E quando se recebiam dos apparatchiks do partido sinais desesperados indicando que não era assim que as coisas funcionavam, bastava ignorá-los e persistir. Eis o que significa o acheronta movebo como prática da crítica da ideologia: não mudar directamente o texto explícito da lei, mas, antes, intervir sobre o seu suplemento virtual obsceno.
     Lembremo-nos do modo de operar da relação com a homossexualidade numa comunidade militar. Há dois níveis claramente distintos: a homossexualidade explícita é brutalmente atacada, os soldados identificados como gays são votados ao ostracismo, espancados todas as noites, etc. Todavia, esta homofobia explícita é acompanhada por uma rede implícita de alusões homossexuais subentendidas, de piadas e práticas obscenas. Uma intervenção verdadeiramente radical sobre a homofobia militar não deveria centrar-se fundamentalmente portanto na repressão explícita da homossexualidade, mas antes "mover o subsolo", atacar as práticas homossexuais implícitas que sustentam a homofobia explícita.
     É este nível subterrâneo obsceno que nos permite abordarmos o fenómeno Abu Ghraib em novos termos (...). O aspecto principal e mais vivamente visível é o do contraste entre as formas "típicas" de torturar os prisioneiros usadas, por um lado, pelo regime de Sadam e, por outro, pelas tropas americanas. Sob o regime de Sadam, predominava a dor brutal e directamente infligida. Os soldados americanos privilegiavam a humilhação psicológica. Documentar a humilhação com uma câmara, com os autores da tortura, sorrindo estupidamente, presentes no filme, ao lado dos corpos nus e contorcidos dos seus prisioneiros (...). Quando vi a fotografia bem conhecida de um prisioneiro nu com um capuz negro a esconder-lhe a cabeça, com cabos eléctricos a prenderem-lhe os membros (...) a minha primeira reacção foi pensar que se tratava de uma ilustração  de espectáculo artístico, da última performance exibida em Manhattan (...).
     É este aspecto que nos conduz ao núcleo da questão: aos olhos de qualquer pessoa familiarizada com a realidade do modo de vida americano, as fotografias evocavam imediatamente o reverso obsceno da cultura popular dos EUA (...) onde o ritual da iniciação conhece excessos e os soldados ou os estudantes são forçados a adoptar posturas humilhantes ou a praticar actos infamantes, como enfiar o gargalo de uma garrafa de cerveja no ânus ou espetarem-se com agulhas enquanto os seus companheiros assistem à cena. (...) Evidentemente, a diferença mais clara é que, no caso destes rituais de iniciação (...) as provas são sofridas em resultado de uma livre escolha, sabendo perfeitamente o sujeito o que o espera e tendo inteira consciência da recompensa final: ser admitido no novo círculo (...). No caso de Abu Ghraib, os rituais não eram um preço que os prisioneiros tivessem de pagar a fim de serem admitidos como "um de nós", mas pelo contrário eram justamente a marca da sua exclusão.  (...) Por fim, há uma última mensagem cínica na aplicação aos prisioneiros árabes de um ritual de iniciação americano: "Queres ser um de nós? Muito bem, aqui tens uma amostra do verdadeiro sabor do nosso modo de vida..."




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.Slavoj Žižek. Violência. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2009, pp 149 - 151.
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domingo, 12 de outubro de 2014





     Os comunistas liberais são pragmáticos. Odeiam as abordagens doutrinárias. Para eles, hoje não há classe trabalhadora una e explorada. Há simplesmente problemas concretos que é necessário resolver: a fome em África, a sujeição das mulheres muçulmanas, a violência do fundamentalismo religioso. Quando há uma crise humanitária em África - e os comunistas liberais adoram realmente as crises humanitárias que trazem à tona o melhor de si mesmos! -. é despropositado recorrer à retórica imperialista à maneira antiga. Em vez disso, todos nos devemos concentrar naquilo que de facto funciona em vista da solução do problema: empenhar as pessoas, os governos e o mundo dos negócios numa iniciativa comum; começar a fazer com que as coisas avancem, em vez de confiar no auxílio de um Estado centralizador; abordar a crise em termos criativos e não-convencionais, sem dar importância aos rótulos.
     Os comunistas liberais gostam de exemplos como o da luta contra o apartheid na África do Sul (...).
     Os comunistas liberais também gostam dos protestos estudantis que abalaram a França em Maio de 1968. Que explosão de criatividade, e de energia juvenis! A intensidade do abalo que provocaram nos limites de uma ordem burocrática rígida! E o novo impulso que deram à vida económica e social, depois de as ilusões políticas terem sido postas de parte!(...).
     Acima de tudo, os comunistas liberais são verdadeiros cidadãos do mundo. São boas pessoas que se preocupam. Preocupam-se com os fundamentalistas populistas e com as grandes companhias capitalistas irresponsáveis e gananciosas. Vêem as "causas mais profundas" dos problemas de hoje: são a pobreza de massa e a impotência que alimenta o terrorismo fundamentalista. Por isso, o seu objectivo não é ganhar dinheiro, mas mudar o mundo, embora se isso produzir mais dinheiro por acréscimo, não vejam razões para se queixar! Bill Gates é já o maior benfeitor individual da história da humanidade (...). A justificação dos comunistas liberais é que a fim de ajudarmos realmente as pessoas, temos de ter os meios necessários, e, como ensina a experiência do desolador fracasso de todos os métodos estalinistas e colectivistas, a via mais eficaz é a iniciativa privada.
     (...) Consideremos a figura do financeiro e filantropo George Soros, por exemplo. Soros representa a mais implacável forma de exploração financeira especulativa combinada com a preocupação contrária e humanitária frente às consequências sociais catastróficas de uma economia de mercado desenfreada. Até mesmo a sua rotina quotidiana aparece marcada por um contraponto auto-eliminador: metade do seu tempo de trabalho é dedicada à especulação financeira, e metade a tarefas humanitárias - como o financiamento de actividades culturais e democráticas nos países pós-comunistas, ou a escrita de ensaios e livros - que, em última análise, combatem os efeitos das suas próprias actividades de especulação financeira. (...) Segundo a ética comunista liberal a busca implacável do lucro é contrabalançada pela beneficência. A beneficência é a máscara humanitária que dissimula o rosto da exploração económica. (...) o filósofo pós-humanista Peter Sloterdijk traça os contornos da cisão do capitalismo consigo próprio, da sua auto-superação imanente: o capitalismo atinge o seu ponto culminante quando "cria fora de si próprio o seu oposto mais radical  - e o único fecundo -, totalmente diferente de tudo aquilo que a esquerda clássica, prisioneira do seu miserabilismo, era capaz de criar.
(...) Este paradoxo assinala a triste situação em que nos achamos: o capitalismo actual não pode reproduzir-se só pelos seus próprios meios. A beneficência extra-económica é-lhe necessária a fim de manter a seu ciclo de reprodução social.
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 Žižek, Slavoj. Violência. Lisboa: Relógio D'Água editores, 2009, pp 25 - 29.
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sexta-feira, 10 de outubro de 2014



  " Dizem que o amor/ é algo muito sublime "


   Dizem que o amor é algo muito sublime.
Oh, dizem que realmente é um tesouro!
Como o encontrar no livro que se imprime
para grafar os discursos do Grande Louro?

Dizem que o amor não tem preço,
que é ternura, ilusão, caro consolo.
Como o achar no insulto e no desprezo
ou na grilheta que impede de alçar voo?

Do amor enunciaram-se mil estupidezes
que eu não posso recordar agora
e que seria inútil recordar mais tarde.

Penso nesse amor (ainda penso às vezes)
e algo muito remoto sei que chora
e algo ainda mais remoto sinto que arde.


   Arenas, Reinaldo. Poesia cubana contemporânea, dez poetas. Lisboa: Antígona, 2009, p 67.
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