quinta-feira, 27 de novembro de 2014



Resumimos: estas ânsias anunciam pactos propícios.
Eis por que hemos insistido em discorrer de tal sorte.
Ah a memória é esse alvo desviado de deus -
coisa geral, coisa relativa, coisa dúbia,
mas coisa, decerto, paga com os exemplos e o tumulto,
porém, como ver, amanhã, o que, hoje, não pertence
nem a esse testemunho nem a esse grão
distribuído aos mendigos das nossas portas?
Vivemos desse crédito, sugere-se,
e esse dom de negar que ouvimos nem
a voz do que clama no deserto
e nos absolve
porque a confusão enche a nossa cabeça
e a longevidade, qualquer que seja o mundo,
é a nossa segunda obsessão,
e constatar que não somos explicáveis
ou lembrar que perecemos
provoca essa lágrima, a primeira
desde há muito tempo, de Anteu.
É esse tormento ou essa luz,
que divide ao meio a verdade,
que nos assiste para falar de predestinação?




   Vário, João. exemplos. Lisboa: Tinta-da-China, 2013, p 115.
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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Texto publicado ontem, dia 24/11/2014, no site português "Das Letras" e no site brasileiro " zona da palavra":
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                                        Maria Toscano e o Canto Da Terra

 
                                                                            Victor Oliveira Mateus

 

        Maria Toscano, natural de Campo Maior (Alentejo), Doutorada em Sociologia pelo ISCTE e atualmente Professora Universitária em Coimbra, vem desenvolvendo uma longa e abrangente actividade no campo das mais diversas áreas: teatro, canto, leituras encenadas, etc. Aliás, é forte a ligação de Maria Toscano à música, já que começa a estudar piano e acordeão em 1969 e mais tarde, em 1983, recebe mesmo aulas de canto. Apesar deste intenso labor, é na escrita que se tem vindo a afirmar, quer como colonista do semanário virtual “Incomunidade”, quer como colaboradora de várias Antologias de Poesia das quais destaco “O Prisma das Muitas Cores” que tive a honra de organizar, quer ainda na sua regular publicação poética: Maria Toscano tem, até ao momento, oito livros de poesia publicados.

     Esta autora propõe-se apresentar-nos agora um ambicioso e original projeto intitulado “Poemas Do Sul”, obra que consta de cinco volumes correspondendo cada um deles a um Canto determinado e dotado de uma cor específica atribuída pela própria poeta. Convém aqui enfatizar o extremo bom gosto e o equilibrado design que subjaz a todo este projeto, que se ordena numa sequência de cinco “Cantos/Volume”: “Canto I. Da Terra”, ”Canto II. Das Marés”, “Canto III. Dos Sóis”, “Canto IV. Da Fala”, “Canto V. Do Branco”.

     No primeiro volume destes “Poemas do Sul Em Cinco Cantos” predominam os poemas longos de verso curto, que é, aliás, uma das características da produção desta poeta, e onde esse mesmo verso curto chega, por vezes, a não ter mais do que uma palavra (Cf. pp 35-36 e pp 86-88). As estrofes, que podem chegar a alongar-se por uma/duas páginas, são, em certos momentos, entrecortadas por monósticos, dísticos ou tercetos, que nem sempre – e este é um dos aspectos interessantes desta tessitura poética! – desempenham, na estrutura poemática, um papel idêntico, assim, poder-nos-á surgir: um terceto com função enfático-conclusiva (p 20), um monóstico como reforço ou mero momento de respiração da leitura (p 10 e p 53), dois monósticos como momento introdutório à estrofe longa que se avizinha (p 52), enfim, são múltiplas as opções de Maria Toscano quanto a este recurso estilístico.

   Esta poesia, apesar de possuir uma assumida tónica no sentido, recorre com frequência a jogos alicerçados na repetição de palavras ou até mesmo de cariz anafórico, como modo de adensar a musicalidade do poema:

 

das vezes que vos falei insisti

insistindo na pureza do sentir.

mãos brancas

passos firmes desbravando

o caminho insisti insistindo

na leveza do viver.

ombros amplos tronco erguido

insisti acolhendo os opostos

insistindo na sageza do ceder

insisti

insistindo na verdade do amor simples

do simples ser.

 

         (p 21)

 

E aqui reside alguma da originalidade da obra de Maria Toscano, que advém do facto de ela conseguir uma voz própria mediante uma conjugação bem doseada de uma poesia “engajada” e de olhos postos no social (Cf. 124), pois é difícil ler-se este livro sem nos lembrarmos da poesia de Manuel da Fonseca ou, até mesmo, de outros poetas que permaneceram na sombra como Sidónio Muralha e Eduardo Olímpio, mas, e ao mesmo tempo, esse legado é inserido em procedimentos e olhares assumidamente modernos (Cf. pp 113-116, pp 121-125). Daqui resulta uma escrita circulando entre o enternecido peso da memória (são vários os poemas onde se fala de presépios, do pai, do musgo...) e o de um futuro almejado, muitas vezes geminado com uma certa veemência do dizer, não é, pois, por acaso que um dos versos alude a Natália Correia. No entanto, e convém ressalvar, o social de que se fala aqui não é o das grandes urbes com os seus rituais e desilusões, mas antes os pequenos aglomerados populacionais, as pequenas cidades, os montes semeados a eito, é de toda essa gente que- para além de falar de si própria – fala a poesia de Maria Toscano numa mescla de assunção e inconformidade:

 

falar-te, longamente, das brancas coisas do Sul...

 

começar pelos marcos a dar nome

às vilas a largos a ruas.

ou começar pela fachada lisa

caiada a preceito bordejada

de amarelos e, mesmo, de azuis

partilhando-se como preto de ferros

puxadores varandas e janelas.

abrir a meia-porta e confirmar

a cal perseverando lá dentro.

deixar-te, então, passar à frente

amiudando os cobres e os estanhos

brunidos areados luzidios

(...)

 

      ( p 105)
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segunda-feira, 24 de novembro de 2014



Almudena de Arteaga é historiadora, advogada e autora de vários romances históricos, dos quais se destacam "A princesa de Éboli" (1997) e "Capricho (2012). Detentora de vários Prémios Literários é também a 18ª Marquesa de Cea e, após a aprovação da lei (espanhola) 33/2006 de 30/10 que aprova a igualdade de género quanto às diversas ordens de sucessão, Almudena torna-se a principal herdeira do Ducado del Infantado, sucedendo assim a Iñigo de Arteaga, seu pai e 19º Duque del Infantado.
Em "La Beltraneja, el pecado oculto de Isabel la Católica", Almudena de Arteaga narra o período da História de Espanha imediatamente anterior aos Reis Católicos: Henrique IV de Castela (1425-1474), também chamado "o impotente", casa com Joana de Portugal (1440-1475), irmã de Afonso V. O romance dá-nos uma visão dos bastidores da política, onde a intriga, a luta pelo poder e a hipocrisia são moeda comum. Assim, segundo uns, Henrique IV e Joana de Portugal teriam tido uma filha legítima graças aos métodos usados pela medicina judaica de então, nomeadamente os usados pelo médico judeu Samaya, segundo outros - os partidários de Isabel, a irmã de Henrique IV - essa filha não seria mais do que o produto de uma relação extraconjugal da rainha com Beltrán de la Cueva, amigo do rei, daí a nova Joana de Castela passar a ser denominada por "a Beltraneja". A narração é feita por Mencia de Lemos, já no tempo em que Joana "a Beltraneja" se encontra refugiada em Portugal, e dá uma visão pouco abonatória do comportamento ético e político daqueles que viriam a ser os Reis Católicos.
Em "La Beltraneja, el pecado oculto de Isabel la Católica", estamos dentro uma estrutura narrativa marcada pela linearidade, onde o espaço e o tempo narrativos seguem uma sequencialidade cronológica, excluindo, no entanto, dessa ordem o Capítulo XVI, que transcreve um documento encontrado num arquivo do Convento das Clarissas em Santarém, após a morte de Joana de Castela. Não considerando algo de negativo este aspeto mais tradicional da estrutura da obra, penso que o seu ponto forte é sobretudo a fluência da escrita (comparada em Portugal à arte de um João Aguiar!) e a caracterização psicológica das personagens, neste último ponto Almudena de Arteaga é magistral: pelas descrições e pelos diálogos dir-se-ia ser possível até vislumbrar as mais recônditas motivações das diversas personagens em jogo. No excerto que se segue - momento da inseminação artificial de Joana de Portugal através da prática dos médicos judeus -, onde Mencia de Lemos fala do passado a Joana de Castela, percebe-se que está em causa o futuro de um reino, e até da ordem geopolítica da Península Ibérica, vê-se aqui, portanto, com nitidez, a caracterização do momento histórico e também de alguns dos seus intervenientes, e é neste saber mostrar o profundo através do aparentemente simples que reside o ponto forte deste romance.
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   Un hedor insoportable a destilería casi logró que me desvaneciera. La semioscuridad no encondía las características de aquel cuchitril. No era un secreto que al rey le gustaba rodearse de villanos, montaraces y gentes de mal vivir  en sus asiduas escapadas, pero aquel lugar era especialmente sórdido.
   El portero me tendió una palmatoria y señaló un rincón. Sin temor me dirigí a la esquina. Tumbado sobre una mesa a modo de catre yacía, desaliñado y a medio vestir, el hombre al que buscaba. Su acompanhante, sin el menor recato, enroscaba en torno a él su desnudez.
   No era momento de mostrarse azarada ante la situación, el tiempo apremiaba.
   Aquel rostro cóncavo arrugó su deformada nariz y apretó su prominente mandíbula antes de abrir sus encarnados párpados y observarme fijamente com ojos garzos y separados.
   - Señor, es menester que vengáis raudos al alcázar.
   Dudé un instante y luego solté:
   - La temperatura de la reina es la idónea y si os rezagáis cambiará y veremos todas nuestras esperanzas frustradas. El maestre Samaya assegura que si su alteza viene a holgar hoy com la reina, ésta quedará preñada.
   Vuestro padre se atusó su luenga y rubia barba com los dedos y se incorporó de mala gana. Me arrodillé para calzarle y él me tocó la cabeza, mientras divagaba.
   - Sé que el remedio atenta contra la prohibición de mi abuela Catalina de Lancaster de servirnos de médicos judíos, pero está claro que son buenos y es mucho mejor su medicina que la de los nestros, pues no se limitan a las sangrias como único auxilio. Qué más da ignorar una costumbre impuesta por una anciana vetusta y si la cura a la que me someto es tan artificiosa que peca contra la ley natural, si obtenemos el resultado esperado!
   Le tomé de la mano y tiré de él, que, sin embargo, continuó.
   - Quiera Dios que esta vez sea la definitiva. O debería decir Jehová? No lo sé, el caso es que si resulta falida será necessário pedir ayuda a outro hombre para que cumpla por mí.
   Podría haber escuchado cualquier cosa pero aquello me sublevó.
   Lo que el rey acababa de decir sonaba a blasfémia, y com respecto a solicitar ayuda para ciertos menesteres, creo que hay ciertas cosas que un hombre no puede delegar en outro, y ésta es una de ellas. Pero reflexione que se decía algo sólo conseguiria retrasar el momento que tanto habíamos esperado. Por suerte, nada se interpuso en el caminho y al poco tiempo el rey y yo entrábamos en la clausura del lugar que serviria de cobijo a nuestros prpósitos.
   Sin mediar palabra, vuestro padre se acosto en una cama junto a vuestra madre. El maestre Samaya empezó a dirigir al asunto. Mientras uno de sus ayudantes masajeaba el órgano del rey, el médico examino la entrepierna desnuda de la reina. Outro de sus assistentes abrió ante él una caja de madera forrada de terciopelo. El judio tomó com sumo cuidado el instrumento que contenía. Era una cânula de oro. El médico la introdujo en las verguenzas de vuestra madre com delicadeza..
   Cuando el rey acabo de ser ordeñado, recogida su simiente en una copa, Samaya empezó empezó a hacerla passar por la cânula de oro, hasta llenar la vulva de vuestra madre com aquella sementeira.
   Mientras asistía azarada a esa escena, me pregunté si la diabólica invención del infiel daría resultado de una vez. No era la primera ocasión que la reina se sometía a aquella humillante prueba.


    Arteaga, Almudena de. La Beltraneja, El pecado oculto de Isabel la Católica. Madrid: La Esfera de los Libros, 2004, pp 58 - 60.
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segunda-feira, 17 de novembro de 2014



Foi já apresentado ao público o programa de mais um importante Festival Literário:

 "TEIAS "  - V BIENAL DE POESIA DE SILVES (2015)

Este Festival conta com a organização de Gabriela Rocha Martins e irá incluir concertos, workshops, oficinas de dramaturgia e conferências.  Assim, estarão presentes músicos, pintores, bailarinos, professores, etc.. Os escritores presentes nesta V Bienal de Poesia serão:

Domingos Lobo, Alice Vieira, Maria Toscano, Samuel Pimenta, Maria João Cantinho, Cecília Barreira, Miguel Real, Maria Estela Guedes, João Rasteiro, Gisela Ramos Rosa, Vítor Cardeira, Adão Contreiras, Pedro Jubilot, Luísa Monteiro, Tiago Nené, Casimiro de Brito e Victor Oliveira Mateus.
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sexta-feira, 14 de novembro de 2014




       "  Frontera "


                Aprendo uma gramática de exílio

                         Eugénio de Andrade


Este cielo es más alto.
Me extraña su gramática de luces
sobre los quitamiedos.
Respiro detenido,
incapaz del silencio en esta lengua
que ya no me pregunta cuánto tiempo.

Porque en el fondo te hablo de outra guerra,
de sus nuevas canciones
que se gastan igual en mitad de los valles,
de outro Portbou tras una luna táctil
de llamadas perdidas.

Qué rara la intemperie
de estas calles que apenas son paisaje.

Es outra guerra, sí. Triste como la infancia
en un traje invisible,
días que me repiten los vagones de un tren televisado,
esta blanca metáfora de invierno
y la piel sonrosada de tu mano,
como en aquel anuncio.


     Caballero, José Ángel García. Buhardilla. Granada: Valparaíso Ediciones, 2014, p 58.
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                          "  Calles  "


                                              A Victor Oliveira Mateus




Nada en particular
salvo lo repetido,
la historia que se cuenta ahuecando la voz
y que passa de largo
como cualquier anécdota que evita moraleja.


Lo que estira del brazo es, en sí mismo,
una cuestión de física,
un cuerpo grave en busca de su asfalto.


Lo demás se parece a unos ojos de niña
interrumpiendo el paso, o a un cartel
com la fecha borrada en dirección contraria
y a bares que no cierran en día laborale.


Ni dentro, ni destierro.
La mitad de todo es literatura.




    Caballero, José Ángel García. Buhardilla. Granada: Valparaíso Ediciones, 2014, p 76.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014



   " olhai os lírios da cidade "


com o fascínio dos lírios me comovo
e escuto-lhes a fina sinfonia.

andam dispersos mas firmes pelas
cidades
os lírios do campo verdes e amarelos.
por decisão deles emigraram
para destinos improváveis onde
ao que os ignora e humilha no chão de terra
eles conquistam, de surpresa, no vazio urbano.
hoje. aqui. em toda a parte a tecer
a tecer a fluir a vida a esperança
por onde o brilho de cada lírio comum
vai encantar e seduzir os transeuntes.
amai, olhai os lírios das cidades
porque deles será o reino dos seus
amantes e cuidadores indignados.


  Toscano, Maria. Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I - Da Terra. S/c.: Edição SulMoura, 2014, pp 129 - 130.
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quarta-feira, 12 de novembro de 2014





amo-te por dentro deste sentimento
alegre e ácido sabor a pele
derramado em condimentos
amo-te assim sem jeito nem leito
onde pousemos juntos plenos unos
amo-te em contratempo
sem corrimão em contramão
sem alpendre nem rede
para amenizar
o furor de ambas
as asas com que me casas
à tua mão à tua boca
ao teu sorriso de pão.
amo-te fora de horas
quando as horas avisam, a luz alumia
imprevista e o amor palpita em meu colo
em meus seios acesos
no meu dorso
em ânsias doces inapeláveis
inalcançáveis. amorais, pois puras
de pleno sentir.


amo-te como há tanto nem tanto


amo-te como há muito não muito


amo-te. como o olhar cala a lágrima
   como o gesto resguarda a mão
   como o trilho inverte o passo
amo-te sem queixas,
   dolorosamente atenta ao que não
dizes
   amorosamente intensa porque não
calas
    loucamente sã do obscuro ciclo das
falhas


amo-te com a palavra por dizer
no verso travesso a escapar-me
entre os dedos
entre os veios da ungida carne que me
honra
amo-te destemidamente aquietada
pela distância


(nunca tal lonjura tão perto me habitara)


e amo-te
ainda e sobretudo
sem razão nenhuma
sem motivo nem esperança
de que algum dia
também, tu, me ames
meu amor.




  Toscano, Maria. Poemas do Sul em Cinco Cantos. Canto I - Da Terra. Coimbra: Edição SulMoura, 2014, pp 51 - 53.
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terça-feira, 11 de novembro de 2014




   La pluie sur Venise: on dirait qu'elle se parle en douce à l'oreille, cherchant à rassembler son grand corps de gouttes dispersé en millions d'éclats qui éclaboussent, de toutes les perles de l'Adriatique, les yeux sans paupières de tant de statues d'anges dont les ailes soulèvent la ville, tapis volant au-dessus de la mort.


  Alyn, Marc. La Combustion de L'Ange, Poèmes 1956 - 2011. S/c.: Le Castor Astral, 2011, p 276.
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