sábado, 26 de setembro de 2015

                                 Apresentação do livro Vida sem Demão de Paulo Pego


                                                                                                   Victor Oliveira Mateus
    


      Numa primeira aproximação ao livro de Paulo Pego Vida sem Demão parece-me curial começar por um excerto de Maria Filomena Molder que nos diz: “Há uma grande diferença entre pressentir que chegámos a um lugar, onde tudo aquilo que encontramos nos precedeu, e considerar que a nossa vinda não é uma chegada, mas um momento originário que constitui a vida inteira como inauguração, exercício dos nossos poderes, estando aquilo que encontramos investido da nossa espontaneidade e da nossa construção. Neste caso não chegámos a um lugar, demos origem a um espaço que nos pertence.” (in “Simbolo, Analogia e Afinidade”, 2009, p. 13). Neste texto da autora assumem particular importância três referentes que são simultaneamente três estruturas ontológicas distintas: o espaço, o tempo e a capacidade inaugural ou redentora operada pelo sujeito poético. É neste sentido que devemos ler não só o título do livro de Paulo Pego, mas também toda a matéria poemática que nele existe. Quanto ao título, o lexema Demão acaba por nos remeter para a ideia de uma vida sem camadas ou retoques de inautenticidade, logo, estamos ante essa sucessão de momentos originários de que nos fala o texto de Maria Filomena Molder. Paulo Pego, no primeiro poema do seu livro, é perentório quanto à relação da sua escrita com este axioma simultaneamente literário e ontológico: “A minha caneta/ está/ onde sempre esteve/ na vida/ sem demão” (in Vida sem Demão, (p. 9).

     No que diz respeito à tríade acima mencionada (espaço, tempo, capacidade inaugural ou redentora) convém acrescentar que este poemário, ao falar-nos de uma dada errância no aqui, nos desvela a existência de dois planos ao nível do vivido: a vida em banalidade e a vida em autenticidade, no entanto, esta cisão entre o rotineiro e o luminoso é passível de ser ultrapassada pelo eu poético, atingindo este os tais momentos originários já referidos, ou seja, uma Vida sem Demão. Veja-se acerca disto os poemas - “Sevícias”: “Se tu és a sevícia alojada na sina/ eu sou o mosaico que lateja ao sol (...)/ Se tu és o tempo/ eu sou a faca que em crime o corta/ Se tu és o gabarito do quartzo/ eu sou a fissura da purificação” (p. 18); “Furnas”: “As amarras da pestilência são apelo de homem na bruma/ tíbia da purificação// A sagração da terra// Na carne se faz o regurgitar da devoção e do corte/ salvífico do santo espírito// A pele// Por onde passa o gêiser da criação// Tempo telúrico/ que agrupa deuses, pessoas e mistérios” (p. 34). A consciencialização destes dois planos, bem como, da necessidade de ascender àquele que dote o eu poético de um estar lúcido, cristalino e elevado aparece em vários poemas, nomeadamente em “Carta a Hélio”: “Hélio que não és nosso!// Neste 2013 que corre, estou branco da neve fundida no/ torpor de relógio de sol// (...) Tomo uma ferida/ por bicada de tais aves. De enlouquecer. Estou disposto/ a tingir a lava branca das tautologias e a transformar a/ minha bicicleta em címbalo de bronze, em flecha, para/ que possas afastar e exterminar tais bichos” (p. 10). A passagem do campo da rotina (1º plano) para o desígnio da luminosidade e da autenticidade (2º plano), denominado pelo poeta como Vida sem Demão, é feita através do amor, entendido este não apenas como um estado psico-afetivo, mas também ético-ontológico:

                              




PINTURA FAVORITA

                A minha pintura
favorita
a que fazemos
no amor

como alteramos a cor
dos lençóis
como os transformamos
em bandeiras
               
                (p. 20)
     Atente-se neste poema à relação que acaba por se estabelecer entre o amor e os lençóis arvorados em bandeira. Numa conceção menos intimista e mais social e histórica veja-se ainda esta mesma ideia no poema “Interrogação”: “Perante tanto desencontro/ e pêndulos de sal, que lugar para o amor?” (p. 26). Aliás, não é por acaso que no penúltimo poema deste livro (“Momentos”) o poeta desregula o tempo e o espaço para colocar o eu poético – e o leitor – num cenário que enfatiza os já referidos  momentos originários, a tal Vida sem Demão:

MOMENTOS          

                Em Veneza não há hora
                Os ponteiros tomam-se por fios de água
                Desregulado o tempo, o prazer vem liquefeito
Em Veneza só há momentos. E vapor

(p. 43)

André Green, no seu La Déliaison, Psychanalyse, anthropologie et littérature, chama-nos a atenção para o facto da escrita em si, no essencial, ser uma representação arbitrária, que, para ganhar sentido necessita que o leitor ligue caracteres, respeite silêncios e pontuação, articule palavras, sintagmas, etc.,  dito de outra forma: é preciso que o leitor saiba escutar o texto e apreenda – através das suas próprias representações – o que o escritor, neste caso o poeta, pretendeu representar (Cf. André Green, op. Cit. pp 18 – 42). Ora, em que medida as representações de quem lê, de quem interpreta, de quem critica, coincidem com as do poeta colocado ante o ato da escrita? Isso jamais será conhecido. O poeta, ao escrever, mostra qualquer coisa que transcreve em caracteres, traduz representações em escrita, mas, ao mesmo tempo, vela-nos todo um solo imenso, solo esse que faz Julia Kristeva, num brilhante estudo sobre o Ulisses, dizer que a glória e o desenvolvimento do espírito criativo de Joyce foi conseguido pela sua incursão num território interdito que pode perturbar a vida (Cf. Les nouvelle maladies de l’âme, p 276), contudo, é desse território fantasmático e falho de apreensão plena, que o imaginário e as representações emanam: é desta aparente fragilidade e desta incompletude que ressuma toda a riqueza da literatura e, no caso que me ocupa aqui, da poesia, condenando-nos à evidência de que todo o olhar que se debruce sobre um poemário seja sempre aproximativo e lacunar. Assim, poderemos admitir que esta Vida sem Demão possa ter um sentido mais linear e menos hermétido, do que aquele que vimos acima, ou seja, em vez de um segundo plano ético-existencial marcado pela autenticidade, pela luminosidade e pela superação do ínfimo e banal, o poeta esteja tão-só a falar da vida nua e crua – vejam-se, então, os poemas “ Crise “ ( p 12), “A crise e o nu” (13), “ Sem-abrigo” (p14), “Contorcionista” (p 15), etc., contudo, esta leitura da Vida sem Demão referindo-se (apenas) à vida nua e crua, e encumeando o social, o económico e o cultural, não exclui a proposta inicial de leitura baseada nos já referidos dois planos com a necessária passagem (ou ascenção?) do primeiro para o segundo, aliás, esta interpretação fundamenta-se também no facto desta obra ser atravessada poor conceitos marcados por uma certa religiosidade: anjo, Evangelho, purificação, sacrilégio, peregrinos, etc. Se assim for, faz sentido, que seja dado aos Açores a honra de um capítulo à parte, isto é, não deixa de ser significativo que num livro onde assomam cidades como Paris, Londres e Roterdão com alusões explícitas e implícitas ao vivencial rotineiro e urbano, seja no capítulo relativo aos Açores que se fale de: sagração da terra; gêiser da criação; tempo telúrico/ que agrupa deuses, pessoas e mistérios (in poema “Furnas”, p 34). E é esta uma das riquezas maiores deste livro de Paulo Pego, onde, para além de uma excecional  acuidade semântica e de uma imagética multipolar e  rica, o poeta nos apresenta aquilo que vislumbra como vida sem demão, ou seja, uma tecitura, que, como um caleidoscópio de cenas e vivências, jamais desiste do topo apesar das quotidianas argamassas e das gargantas cruas dos prédios:

                      MODOS

O topo. Onde os peregrinos perderam dedos e tu
Perguntas por vagar eólico das canoas. As manhãs são
Construídas na safra benta dos moínhos, que as proas já
Partiram no estuário do bazar. Restam as argamassas, as
Gargantas cruas dos prédios. Neste receio de grânulos e
De jubas, é necessário travar as cadências impunes das
Pontes e criminalizar as premissas da água. Roterdão
Como se as molas libertassem aço


 (p 42)


    Terminamos, pois, com as palavras de Gilles Deleuze, quando nos diz que “escrever é necessariamente forçar a linguagem e forçar a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras “ ( in Abecedário, A de Animal ), mas que em Vida sem Demão de Paulo Pego tem por fito , não o chegar a lugar algum – como nos disse Filomena Molder -, mas antes em dar origem a um espaço que é pertença do eu-poético, espaço esse, que, sem camadas nem retoques, se assume sempre como uma súmula de momentos repletos de vida e inaugurais.


Livraria Pó dos Livros - Lisboa, 26 de setembro de 2015.








segunda-feira, 21 de setembro de 2015



"cuando yo te vuelva a ver
no habrá más penas ni olvido"
canta Reynaldo
ensaiando comigo
dois últimos passos de tango

há duas noites que não dormimos e
escorremos suor e acordes de bandonión
quando de manhã pedimos
as chaves no hotel

como agora     em que nos olhamos
ao espelho do elevador     e rimos
do nosso cabelo desgrenhado
colado à testa

"depois de velho é que
me deu para isto"     diz Reynaldo     repetindo
"no habrá más penas ni olvido"
enquanto nos vidros escorre uma chuva cinzenta que
nos levará amanhã a
pátrias diferentes

"ninguém é velho em Buenos Aires"
grita-nos     ofendido
o empregado da receção


   Vieira, Alice. Os armários da noite. Alfragide: Editorial Caminho, 2014, p 59.
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domingo, 20 de setembro de 2015


aprendi nas pequenas gares de província
a esperar comboios que não chegavam nunca
(ou chegavam tão atrasados que
no momento em que se avistavam
já eu tinha desistido deles)
e sempre invejei o velho Tolstoi
fugido de casa aos oitenta anos
a deixar-se morrer numa delas
no meio de toda a brancura do mundo

um dia     entre Belver e Gavião
(possivelmente nem sabes onde
isso fica)
uma velha pediu-me que lhe segurasse as mãos
porque     de repente     sentira muito medo de
morrer sozinha
(coisa que nunca deve ter passado pela
cabeça do velho russo
para quem a morte só podia ser um
brando ajuste de contas sem testemunhas)

então     entre curvas e desvios     contei-lhe
todas as curvas e desvios das minhas vidas
e ela sossegou um pouco     e disse que
eu ia ser muito feliz porque sabia
distinguir entre todos o comboio certo

aquele     explicou já na saída
que se afasta no exato momento em que
o sol desenha a nossa sombra no olhar de
quem nos deixou


    Vieira, Alice. Os armários da noite. Alfragide: Editorial Caminho, 2014, pp 32 - 33.
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    "  Caderno de linhas  "


No meu caderno de linhas
e de altivas palavras

há pensamentos errantes
de um segredo antigo.

Em baixo relevo
e caligrafia preclara

enleio linhas e linhas

de sons e pensamento
que nunca

nunca mais
acabo de escrever.


  Oliveira. J. Alberto de. Entrepoemas. Porto: Edições Afrontamento, 2014, p 38.
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sábado, 19 de setembro de 2015


  " Algures no livro "


Às vezes
sonho com o meu nome

escrito algures no livro.

E leio e leio
entre a lenha e o lume.

Na teia de frases
e linhas

arde a paixão pura.

Alguém pôs a mão
em fogo

dentro do meu nome.


   Oliveira, J. Alberto de. Entrepoemas. Porto: Edições Afrontamento, 2014, p 30.
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segunda-feira, 14 de setembro de 2015



(...) j'en pousse la porte de branchages. Dormir. Où est Hornig? Le feu crépite et il fait très chaud. "Hornig!" Un froissement vient du lit, dans l'ombre. Que vois-je? Le jeune cocher s'est glissé sous les fourrures. Je les soulève. Il est nu. Et maintenant, il me regarde, sans peur, sans insolence, avec ses yeux noirs, un peu brillants. Le feu projette des lueurs sur sa peau hâlée et lisse. Hornig ressemble à un jeune animal, souple, musclé, avec, tout juste au creux de la poitrine, un épi de poils, court, luisant comme une plume de merle. La situation est si extravagante que je sens ma colère royale dépassée et inutilisable. Le garçon est peut-être devenu fou? Je dis, le plus doucement possible: "Mais, Hornig, qu'est que tu fais lá?" Le jais des yeux s'embue, la bouche tremble. La voix chuchote, au comble de la honte: - "Wolk m'avait dit..." Ah! c'est Wolk. La stupéfaction me paralyse. (...) et la tête cachée sous les bras dont les muscles tremblent, Hornig pleure: - "J'ai déplu au Roi." Il ne cherche pas à se lever, à fuir; il est écrassé d'une douleur dont l'accent vrai me frappe. Je m'assieds sur le bord du lit. (...) le long de son cou, une chaînette d'or et ramènent du dos où elle avait été rejetée une médaille, que je saisis, que je scrute, en rapprochant mon visage de la chaleur violente de ce corps et de son odeur d'ambre.
   Je découvre mon profil! gravé sur une des pièces distribuées le jour de mon couronnement. Je trouve cet argument sans réplique. J'ai froid: enfim, les bruns ne sont pas mon genre.


   Fraigneau, André. Le livre de raison d'un roi fou, Louis II de Bavière. Paris: Éditions de La Table Ronde, 1994, pp 71 - 73.
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domingo, 13 de setembro de 2015





Berg, 1863.


   J'ai dix-huit ans. J'ai obtenu comme cadeau de majorité une semaine de solitude. Plus de frére, de professeurs, de courtisans. Ce caprice a fait três mauvaise impression. On eût voulu promener le prince héritier dans les rues de Munich. (...) J'aime ce petit château familier, l'air vif et pur ce grand lac de Starnberg un peu sauvage, où les hautes touffes de roseaux embarrassent le glissement des barques. L'autre matin, sous un ciel clair, j'ai ramé tout seul, puis immobilisé mon embarcation au milieu de l'eau, jusqu'à ce que celle-ci ait perdu ses rides. Je me suis penché pour voir le reflet de mon visage. Mes grands yeux plongèrent dans mes yeux et je vis courir derrière ma tête des nuages charmants. Le beau moment!
   Je me constatai, majeur, radieux et seul. J'eusse voulu me pencher suffisamment, jusqu'à toucher le reflet de mês lèvres qu'une légère palpitation de la nappe faisait bouger d'un mouvement qui ne naissait pas de mon souffle. Et cette seule, légère, frissonnante différence entre mon reflet et son modèle m'eût suffi, je crois, pour ressentir et consommer tout ce qu'on appelle l'amour.


     Fraigneau, André. Le livre de raison d'un roi fou, Louis II de Bavière. Paris: Éditions de La Table Ronde, 1994, pp 34 - 35.
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sábado, 5 de setembro de 2015



   Penso às vezes que fazer romances é difícil... e de outras vezes que é fácil. Fácil, fácil? Quero eu dizer, acessível.
   Aqueles romances de psicologia muito construída, uns bons e outros maus, não me parecem realmente dificílimos de elaborar, mas não me tentam. São artes, regalos ou luxos do espírito. O que me tenta... Bom, será melhor deter-me aqui porque levaria longe o meu fio de ideia. Neste momento reconheço perfeitamente que não estou escrevendo um romance, ou aquilo a que vulgarmente se dá esse nome. Reconstruo e não invento. Investigo a minha vida passada, sacudo-a com curiosidade, e às circunstâncias que a acompanharam. Tudo isto para mim é tema que exploro com indizível e inclassificável interesse. Tudo esteve dormindo comigo longuíssimo tempo, à espera do minuto de despertar, para naturalmente se sumir depois para sempre...
   Como disse, não estou trabalhando uma ficção, estou a desfiar sedimentos e raízes; de uma vida ou de várias.


   Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume III - começa uma vida. Lisboa: Editorial Presença, pp 74 - 75.
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terça-feira, 1 de setembro de 2015



   Se eu hoje pintasse e não escrevesse ( a literatura parece-me uma arte muito menos simbólica que a pintura), como representaria esta espécie de nebulosas mentais em que mais ou menos vivemos? Estas ilusões que as coisas nos dão? E o modo também como retemos e vamos vendo reflectir-se e repetir-se o que uma vez nos impressionou?
   Que poder do espírito é este que conserva umas impressões e elimina outras? E que as conserva sob formas que não são puramente sensoriais nem raciocinadas? À roda de uma simples impressão, que mantém geralmente o seu carácter genuíno e inédito, que ramos de novas imagens se não vão formando sempre!
   Muitas vezes julgo que não é falando nem escrevendo que nós melhor revelamos certos estados do nosso espírito, ou as suas visões. Parece-me que a linguagem se inclina abusivamente para a lógica e para a justificação. Que a falar nos recompomos e nos enfeitamos demais... Em suma, pintadas, tornadas plásticas, talvez que as nossas impressões e memórias resultassem mais sóbrias e mais nítidas que descritas.
(...) Na descrição nós rodeamo-nos de todos os elementos de composição que podemos, chocamos o assunto e damos-lhe o máximo de extensão - fugindo, quiçá, ao que lhe é essencial... Na pintura é possível que assim não seja.


  Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume III - Começa uma vida. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp 42 - 43.
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