quinta-feira, 31 de março de 2016


                 XXIX

Na catedral sentei-me e li, só,
Uma magra Revista e disse,

"Estas degustações nas abóbodas
Opõem o passado e o festival,

O que está para lá da catedral, lá fora,
Balança numa canção nupcial.

Assim é sentar e balançar coisas
De um lado para o outro até ao imóvel ponto,

De uma máscara dizer que se assemelha
De outra dizer que se assemelha

Saber que o balanço ao certo não cessa,
Que a máscara é estranha, apesar de se assemelhar."

As formas estão erradas e os sons são falsos.
Os sinos são o bramido de touros.

Porém o ilustre franciscano nunca foi
Ele mesmo senão neste fértil vitral.


   Stevens, Wallace. O Homem da Guitarra Azul & Outros Poemas. S/c.: Edições Guilhotina, 2015, p 43 ( tradução e apresentação de Luís Quintais).
.
.

quarta-feira, 30 de março de 2016



                 XIX

Que eu possa reduzir o monstro
A mim mesmo, e que possa então ser eu mesmo

Face ao monstro, ser mais que parte
Dele, mais que o monstruoso intérprete de

Um dos seus monstruosos alaúdes, não
Estar só, mas reduzir o monstro e ser,

Duas coisas, as duas juntas numa só,
E tocar acerca do monstro e de mim mesmo,

Ou melhor não de todo de mim mesmo,
Mas do que seja a sua inteligência,

Sendo o leão no alaúde
Diante do leão agrilhoado na pedra.


   Stevens, Wallace. O Homem da Guitarra Azul & Outros Poemas. S/c.: Edições Guilhotina, 2015, p. 33 (tradução e apresentação de Luís Quintais).
.
.

segunda-feira, 28 de março de 2016


 " O encontro falhado "


Percorreste labirintos
e sempre me encontraste.
Deambulaste por ruas sem saída,
por noites sem lua
e sempre me encontravas.
Agora estás tão perto, apenas uma
estação mais à frente.
Fazes-te perdido, distante.
Não queres já encontrar-me!
Apanharás o comboio quantas vezes
achares necessário,
mas ver-me-ás em todas as estações.


 Catalán, Jeannette Núñez. Sogno e poi sono/ Sueño, luego soy. Roma: Comisso Editore, 2014, p. 56 (tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.



                          4/ 7.

Nem a demanda conseguirás que
se acabe, mesmo que a ti a fortuna se confie,
nem o estudo será para teu gáudio, ainda que dos sábios inspirado,
nem te assistirá o talento, nem o consolo abrandará o teu anseio,
nem que fosse o amor podias viver livremente.
E nem mesmo o profeta ditando os versos terá discípulos
se jamais concilia os escrivães com a sua mágoa,
nem o jovem será na graça favorecido, pois ela o trairá,
nem o rio que outrora baptizaste o lembrarás
se o não voltares, na névoa, a ver primeiro.

Onde vais então para que te siga piamente? Acaso
atalharemos o país de cerradas dunas como campas,
quando na distância os dois brilharmos, os dois
entre os solenes risos de guardar silêncio?
Longe do que pensaríamos algum dia consentido,
longe de nos encontrarmos sob a funesta sina,
do que irá passar-se brevemente o saberemos:
muitas vezes vimos quanto a beleza tarda,
mas só ela tolera dispormos do mundo fugazmente
e com essa cega mágoa ir mais além.


  Cóias, Rui. europa. Lisboa: Tinta-Da-China, 2015, p. 70.
.
,



domingo, 27 de março de 2016


                   2/ 6.

Não é difícil um homem apaixonar-se,
ferir a sua paisagem,
cinzas de um passado caído, fluente.
Ao fim de vidas partilhadas pode ser que
diga "estremeci
durante anos sem te abraçar". Agora é tarde.
- Agora é tarde sobre a terra cercada.
Por planícies ficou o desespero,
a dor lilás dos homens soçobrados
na paciência nocturna.
Só depois do terror os cães ladram fielmente
aos portais da manhã, só
após o gume das vidas partilhadas.
"Passei a vida a fugir para a tua boca"
e confundo já o teu rosto
com um qualquer.


   Cóias, Rui. europa. Lisboa: Tinta-Da-China, 2015, p. 32.
.
.

domingo, 20 de março de 2016



C'est le milieu du jour: pas encore la lampe
qu'on allume, les fenêtres embuées
de désirs où ruissellent nostalgies
regrets et rêves effrités.

Vois l'aube, réconciliée avec le jour
comme la flèche, avec sa cible.
Vois mon âme qui oscille, - chute et envol
noirceur et luminescence.

Qui suis-je? demandes-tu -
imparfaite créature parmi le périssable
ne connaissant du mystère que sa trace visible
doutant de Dieu, sachant Dieu
au bout de la descente.

De toute histoire, je viens: granit
lande, roue, océan
- ondes millénaires
qui vibrent en moi.

Et où vais-je donc
en cette vision brûlée du monde
où l'archer prépare sa dernière flèche?


  Dorion, Hélène. D'argile et de souffle (Poèmes choisis 1983 - 2000). Montréal: Éditions TYPO, 2002, p 257 (Choix et préface de Pierre Nepveu).
.
.

sábado, 19 de março de 2016



Il n'y a pas de commencement.
L'amour, le silence, la lumière
sont là depuis toujours.

Le commencement est en nous
depuis toujours.


  Dorion, Hélène. D'argile et de souffle (Poèmes choisis 1983 - 2000). Montréal: Éditions TYPO, 2002, p 186 ( Choix et préface de Pierre Nepveu).
.
.

quinta-feira, 17 de março de 2016



Quelq'un vient et repart, nous laisse avec ces
murs qui tiennent bon, ces chemins séparés
d'eux-mêmes, ces corps remplis de cellules inem-
ployées, de crevasses où disparaissent nos espoirs.
Quelqu'un vient, nous abandonne. Seule reste la
vie complice du jour et de la nuit, seul demeure ce
peu de paysage auquel nous sommes amarrés
comme à une voix qui fait battre le coeur.

Nous ne connaîtrons peut-être jamais ce qu'il y a
de plus secret dans une seconde qui blesse ou
guérit d'une autre seconde; peut-être ne saurons-
nous jamais aimer avec ces mains de fragiles
émotions qui nous élèvent et nous engloutissent,
peut-être vivrons-nous à jamais avec des lettres
inachevées, perdues, illisibles.


  Dorion, Hélène. D'argile et de souffle (Poèmes choisis 1983-2000). Montréal: Éditions TYPO, 2002, p 111 ( Choix et préface de Pierre Nepveu).
.
.

terça-feira, 15 de março de 2016


Chora, chora tudo o que perdeste
E junta às lágrimas quanto te ficou
Por fazer. O teu lamento é coisa

Menor, como tu. Remete-te à solidão
Já que tanto te odeias, ó fraco. Foge
Ainda mais do que já fugiste, não

Mereces nada além da rouca voz
A sair-te por entre os dentes sem
Capacidade de morder. No raso

Da terra que te suja já nem as ervas
Secam. Extingue os olhos, chora,
Deixa-te sozinho aí num canto.


  Almeida, Rui. A solidão como um sentido, seguido de Desespero. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2016, 24.
.
.



Lado a lado, a solidão
E a memória queimada
Da infância. Falhas
Na superfície lisa do tempo

Aceleram a rapidez
Da queda no abismo.
Lado a lado, a sombra
E a cor distorcida

De um mar demasiado
Longe, onde não
Se naufraga. A cor

Do céu ausente,
Feito da ilusão de tudo
O que é lembrado.

  Almeida, Rui. A solidão como um sentido, seguido de Desespero. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2016, p 11.
.
.

domingo, 13 de março de 2016


No dia em que voltares ao cais
possam os rios correr para ti
e os barcos amanhecer no horizonte.
Canta a tua prece a Vénus
e diz-lhe, humildemente,
que as ondas não percam
o sal que te destinei
em oferenda.
Os búzios
entoam o bruar
e o bruar é a tua voz
ao longe.

No dia em que voltares ao cais
possam as águas perfumar-te de azul
e o meu amor por ti zarpar num vôo
de espuma e asa livre.
Que as moiras te concedam os dias
e que os dias te sejam limpos e
fiéis
é o meu desejo.

No dia em que voltares ao cais
possa eu esperar-te a praia inteira
o sorriso e a luz.
Se no cais não me encontrares
sabe que parti.
Pertenço agora ao vento
e à areia que te saúda
os pés.

   Pimenta, Samuel. Ágora. S/c.: Livros de Ontem, 2015, pp 54 - 55.
.
.


          "  Ulisses  "

Esperar pelo regresso
saber que virás com a
visão
      viste o mundo abrir-se
de como aplicar o gesto
e banir o mal.

Esperar que regresses
que digas o teu nome
e decretes o fim do
exílio.







Pimenta, Samuel. Ágora. S/c.: Livros de Ontem, 2015, p 42.
.
.

sábado, 12 de março de 2016



Mais uma vez as aves    companheiras
do meu silêncio    quando cerro os olhos
me dizem que    brilhante    o dia começou.

Montanhas e depois outras montanhas.
E céus azuis ou céus de tempestades.
E com limite o circular do sangue.

Cavos sons: os adufes
repercutem angústias?
Meigos aprazimentos?


 Salvado, António. Mais uma vez as aves. S/c.: Folio Exemplar, 2015, p 41.
.
.

sexta-feira, 11 de março de 2016



As pontas dos meus dedos
percorrem a extensão
de lugares recônditos.

A peregrinação dos meus sentidos
levando-me aos confins da descoberta
perturba ainda mais este vazio.

Nas oliveiras     pássaros
gritam a primavera
à espera de se unirem.


   Salvado, António. Mais uma vez as aves. S/c.: Folio Exemplar, 2015, p 19.
.
.

quinta-feira, 10 de março de 2016



      "  Sala provisória  "

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.

  
   Lourenço, Inês. O segundo olhar, poemas escolhidos. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2015, p 169 ( selecção, organização e posfácio de José Manuel Teixeira da Silva).
.
.

domingo, 6 de março de 2016


            "  Irmão siamês  "

Aquela alga gotejando como um folho húmido
experimento em volta do meu braço
como uma manga de túnica ou uma renda de baile,
estou sentada numa rocha com os pés na espuma
e gozo sozinha esta beleza ocasional
sem estar preocupada com o sentido estético
de algum afecto absorvente.

Este meu sentir a meias obsessivamente
tornou-me metade do corpo demasiado pesada
estou sozinha respirando sozinha
e sinto o Verão nesta solidão
( quem disse que a solidão é um ser de Inverno?)

Ó esta liberdade de não pensar o que o outro irá pensar,
esta limpidez de uma só garganta,
esta infância do olhar e da boca,
este estado divino de me bastar às minhas sensações!

Quem disse que os amores e as partilhas são o sal da vida
não esteve nesta rocha
não encontrou esta alga
nem descobriu esta praia.


   Lourenço, Inês. O segundo olhar, poemas escolhidos. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2015, p 51 (selecção, organização e posfácio de José Manuel Teixeira da Silva).
.
.

sábado, 5 de março de 2016



Mergulha no céu estrelado
e traz a tua chama
- Dá-me a tua mão

Toma os meus olhos cintilantes
enquanto os espinhos do Sol
perfuram a pele do mar

Sou ar que te sorve
estrela tatuada na tua pele de bronze
- Agora toma a minha mão


     Silva-Terra, Manuel. Canto Chão. S/c.: Editora Licorne, 2015, p 33 (pinturas de Leonor Serpa Branco).
.
.


Livre na minha teia de aranha
refresco-me na sua sombra
bebo-lhe o orvalho

Os homens levantam
as arcadas da Torre
selam-nas com sangue

O escuro bate às portas
o vento abre-as
os fantasmas fecham-nas


    Silva-Terra, Manuel. Canto Chão. S/c.: Editora Licorne, 2015, p 20 (pinturas de Leonor Serpa Branco).
.
.

sexta-feira, 4 de março de 2016


        " El príncipe rana "


Conocedor del cuento
el rey besa a la rana
para romper el hechizo

pero en vez de noble muchacha
desembruja príncipe rosa

y vivem felices y comen perdices


   Laignelet, Sergio. Cuentos sin hadas/ Contes à l'envers (édition bilingue). Toulon: Éditions Villa-Cisneros, 2015, p 48.
.
.

quinta-feira, 3 de março de 2016


                 " El patito feo "


El pequeño pato inclina la cabeza
sobre la superfície del lago
y se contempla

un eco de risotadas apresa su mente

pelidece
temblequea

cuenta hasta tres
y se zambulle hasta el fondo
con una piedra atada a su cuerpo


 Laignelet, Sergio. Cuentos sin hadas/ Contes à l'envers (édition blingue). Toulon: Éditions Villa-Cisneros, 2015, p 36.
.
.
Nota -  Sergio Laignelet (Bogotá, 1969) é um poeta colombiano que reside em Madrid desde 2000. A sua poesia é fortemente marcada pelo humor negro e até por um certo cinismo. Publicou "Malas lenguas" (2005) e "Cuentos sin hadas" (2010 e 2015), como antologista organizou "Gatimonio: poemas de gatos de autores hispanoamericanos". Em "Contos sem fadas" Laignelet subverte alguns dos contos e das histórias da nossa infância, muitas vezes dando-lhes um final insólito e inesperado. Os seus poemas foram já publicados em Antologias de vários países da América do Sul e de Espanha.
.
.
-

quarta-feira, 2 de março de 2016


                  " Dizer um nome "


Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia


    Cruz, Gastão. Óxido. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p 19.
.
.