sábado, 6 de janeiro de 2018



Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.

E o que é o voo para lá do Outono?

Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.

Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
sabia,
o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.

Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.


  Pereira, Alberto. Viagem à demência dos pássaros. Lisboa: Glaciar, 2017, pp 25-26.
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