terça-feira, 31 de maio de 2016





   " A Fotografia de Narciso  "

Trago a memória o rosto
Trago, roubados a retina os espelhos
Trago do cântico as cores do profuso negro
Da melodia vibrante o raso silêncio.
Lembro-me, esqueceste-te
Vi, vejo o que não viste no momento que viveste
Tiro a alma dizem os índios
- Apenas carrego a luz, um mito inútil
Na verdade, indistinguível podem copiar-me
Copiam. Copiam-me até ao infinito
Como um espelho face a outro.
Eu absorvo, retenho. O espelho explode.
Por isso gasto-me como tu, Narciso.
Vivo até
À última cópia. Não respiro, permaneço.

Tu respiras, morres. Eu pereço.


  André Alves in "Apócrifa" Nº 5, Fevº 2016, p. 19.
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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Nota - não conhecia esta publicação, que me foi oferecida por um importante crítico literário com um: "Toma, lê!" E eu li. Li e gostei. Na impossibilidade de me alargar demasiado, postarei/ divulgarei apenas dois dos autores que constam da dita Revista.
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   " Intempéries a dois "

Calo-me,
Espero até que a memória sucumba de si
e o meu gesto e o meu corpo
sejam impressões de algum incêndio
até que se incinerem as bocas todas
e se faça de alguma palavra uma casa
para morrer.


  Tristan A. Guimet in "Apócrifa" Nº 5, Fevº 2016, p. 12.
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domingo, 22 de maio de 2016



                                    Herrad von Landsberg ( von Hohenbourg)


(fl 1160-70; d Hohenbourg, Alsace, 25 July 1195). German writer and ?illuminator. She was Abbess (1167-95) of the convent of Ste Odile in Hohenbourg. She is best known for writing (c. 1175-95) a complex pictoral encyclopedia in Latin called the HORTUS DELICIARUM (Garden of delights), a compendium of medieval learning intend for the women in her convent. This encyclopedic work covered biblical, moral and theological material. It was accompanied by hundred miniatures that depicted biblical scenes, allegorical figures and gardening hints, as well as a portrait of Herrad with the nuns of Hohenbourg. Refering to herself metaphorically as a bee, she described the book in the following way: "I drew from many flowers of sacred and philosophic writing this book... and have put it together to the praise of Christ and the Church, and to your enjoyment". The original manuscrit was destroyed by fire at the municipal library of Strasbourg during the city's bombardment in 1870, but there survive notes and line drawing copies of the illustrations made by scholars in the 19th century before its destruction. Since there is a close relationship between text and image, it has been seggested that Herrad participated directy in the illustration; however, this is by no means certain. Manuscripts that emphasized the illustrations were unusual at the time, and the Hortus deliciarum, along with Hildegard of Bingen's Scivias (1140s), was considered innovative in the 12th century. Harrad was an active teacher and a model figure in her community of women. The Hortus deliciarum is considered to have influenced the Alsace school of painting.
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http://www4.artnet.com/librayry/03/0378/T037828.asp  , que reproduz The Grove Dictionary of Art ,
Macmillan Publishers Limited, 2000.
Podem consultar também:
- Landsberg, Hortus Deliciarum (garden of Delights), 1975.
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- G. Games, Allegories et Symbols dans l'Hortus Deliciarum, 1997.
- R. Green, Herrad of Hohenbourg: Hortus Deliciarum, London, 1979.
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sexta-feira, 13 de maio de 2016



      " LXX "

Poeira, cinzas
Ainda assim
Amorosa de ti
Hei de ser eu inteira.

Vazio o espaço
Que me contornava
Hei de estar ali.
Como se um rio corresse
Seu corpo de corredor
E só tu o visses.
Corpo do rio? Sou esse.

Fiandeira de versos
Te legarei um tecido
De poemas, um rútilo amarelo
Te aquecendo.

Amorosa de ti
VIDA é o meu nome. E poeta.
Sem morte no sobrenome.


  Hilst, Hilda. Cantares. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 107.
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quinta-feira, 12 de maio de 2016


        "  LII  "


Eu era parte da noite e caminhava
Adusta e austera
Sem luz e aventurança.
Tu eras praia e dia
Um fogo branco
O rosto da montanha sobre a terra.

E juntamos a treva
Ao mar do meio-dia.
Cristas aguadas, pontas
Trilhas fosforescentes
Na vastidão das sombras

Mas um instante apenas.

Porisso é que caminho como antes
Adulta e austera.
Acrescida de véus me mostro aos viajantes:
Vês a mulher, aquela?
Dizem que a cara é de caliça e pedra.
Que a luz das ilusões passou por ela.


  Hilst, Hilda. Cantares. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 89.
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terça-feira, 10 de maio de 2016


    " XXXVIII "

Toma-me ao menos
Na tua vigília.
Nos entressonhos.
Que eu faça parte
Das dores empoçadas
De um estendido de outono

Do estar ali e largar-se
Da tua vida.

Toma-me
Porque me agrada
Meu ser cativo do teu sono.
Corporifica
Boca e malícia.
Tatos.
Me importa mais
O que a ausência traz
E a boca não explica.

Toma-me anômima
Se quiseres. Eu outra
Ou fictícia. Até rapaz.
É sempre a mim que tomas.
Tanto faz.


    Hilst, Hilda. Cantares. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 72.
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Nota - Cantares é o terceiro volume da obra poética completa de Hilda Hilst e é composto por dois livros publicados em momentos distintos: Cantares de perda e predileção (1983) e Cantares do sem nome e de partidas (1995).
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segunda-feira, 9 de maio de 2016



     " Na televisão, "

inundações num país do terceiro mundo,
guerras nos sítios de sempre,
o presidente francês afinal tem uma amante:
pretextos para não me lembrar da tua cara
enquanto faço do meu sofá um trono.

Aventuras de um homem só,
memória-gume.


  Erlich, David. Emergente, Novos Poetas Lusófonos. Lisboa: Livros de Ontem, 2015, p. 47 (Coordenação de Samuel Pimenta).
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sexta-feira, 6 de maio de 2016


   "  Farrapos  "

Ó céu esmagador, tu que cresces cada dia,
Já vejo ecoar nas nuvens agoniadas
O fedor da anorexia!

E sangra ainda o esqueleto,
Destapando cada galho,
Cedendo a uma sem tecto o tapete vermelho.

E enquanto ando, levanta-se-me a saia,
Como se o solo exalasse suspiros de abandono
A cada meu passo, na carnificina do Outono.


  Rupp, Ariana. Emergente, Novos Poetas Lusófonos. Lisboa: Livros de Ontem, 2016, p. 37 (Coordenação de Samuel Pimenta).
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quinta-feira, 5 de maio de 2016



    " Ascensão ao desespero "


Em tempos deixava a miséria
pousar sobre o meu ombro,
o aconchego duma velha amiga
que voltou de férias para ficar
sem previsão de tempo para a estadia.
E eu sorria porque era só isso que sabia,
recebê-la de braços abertos.

Nada me contenta;
Sair deste movimento de ascensão ao desespero
é sair do sítio no qual morei tanto tempo
mas que nunca chamei casa.
Deixar a voz morrer na garganta
por nunca poder ter palavras minhas,
arrancadas num ciclo interminável
de dar e perder tudo.

Enquanto nadava contra a maré
mas me fundia com ela
numa constante indignação conformada
para um abismo cada vez maior dentro de mim,
puxavas-me com tanta força que tenho medo
que me largues a mão e não me apanhes,
como todos os que juraram mas partiram.


   Cunha, Ana. Emergente, Novos Poetas Lusófonos. Lisboa: Livros de Ontem, 2016, p. 23 (Coordenação de Samuel Pimenta).
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