segunda-feira, 26 de março de 2018

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Convém não confundir Beleza com o bonitinho, com o agradável, com o que sabe bem aos sentidos. A Beleza é isto!!! Quando chegamos ao final dos primeiros 15 minutos já estamos completamente esmagados: a grandiosidade, a enorme massa sonora, a harmonia... Façam a experiência!: o Requiem de Verdi nos Prom. de 2016!!! Se alguém se interessar por esta obra, a minha interpretação preferida é a do Karajan, dos anos 50.. Imaginem!!! Mas isto é a minha (simples) opinião, a opinião de quem só tem 15 interpretações deste Requiem!.rsrs. BOA PÁSCOA!

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                     Enigma


Sonho novamente com você
e,como sempre,
acordo muito tempo
depois.

Muito tempo depois do que você foi
antes do sonho
e num tempo estranho depois
do sonho.

Sim, porque o sonho era você
e não era,
não propriamente você,
pois quem era não se parecia
com você,
mas punha em mim um sentimento profundo,
como antigamente,
de você.

Uma espécie de enigma que contemplo
e não decifro,
apenas me conformo com ele
de alma toda.
E lá se vai o dia após o sonho...

E lá vou eu pelo que resta da vida...
Que é, como escreveu
um antigo ajudante de guarda-livros
na cidade de Lisboa,
nada além de uma estalagem
onde tenho que me demorar
até que chegue a diligência
do abismo.
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  Filho, Ruy Espinheira. Babilônia & outros poemas. São Paulo: Editora Patuá, 2017, pp 72-73.
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domingo, 25 de março de 2018


          Soneto de certa história


Já não sei mais como andas e desandas,
mas sei bem como foi - e foi bonito,
com tantas luzes de mar e infinito
nos teus olhos. E cantos de cirandas

vindas de longe, como sarabandas
de deuses, consolando o peito aflito
e enviando as armas e os corcéis do mito
do amor a desfazer brumas nefandas

como as da indiferença. É o que me vem
daquele tempo em que vivi tão bem,
soberbo de avalons e samarcandas.

Bela memória em que fico a sofrer,
quase morrendo por nada saber
de como agora tu andas e desandas.


 Filho, Ruy Espinheira. Babilônia & outros poemas. São Paulo: Editora Patuá, 2017, p 33.
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sábado, 24 de março de 2018


                          Café


Desencarno arábias
de uma xícara morna
de café.
E um fio negro
me assedia a boca.

(Através da janela
o galho de pitanga
ostenta seu adorno
encarnado).

Viajo
pelo negror do pó:
Dar-El-Salam,
Bombaim,
Áden
(sem Nizan, sem Rimbaud)
as colinas ocres,
a poeira dos dias.

De onde vem o grão
dessa saudade?

Desentranho arábias
dessa xícara fria.
Enquanto aguardo o dia
que não chega.


  Norões, Everardo. Retábulo de Jerónimo Bosch. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008..
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quarta-feira, 21 de março de 2018


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 O canário
debulhava trinados.
Na rede
fluíam fábulas.
Sobre muros e telhados
os urubus empinavam
lições de trevas.
No alto,
apenas uma nuvem
me escutava...
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 Norões Everardo. Retábulo de Jeróniomo Bosch. Rio da Janeiro; 7 Letras, 2008.
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segunda-feira, 19 de março de 2018


                             27.


Já "caluniei" bastante o desespero
sem reconhecer nele
o coração
das algas verdes ou azuis percorrendo o esquecimento
das longas horas do ar
e da terra e do fogo: e no esquecimento
do que foi o homem
antes da vida do homem
no caldo das águas simultaneamente transparentes
e sólidas.
- Supremo e austero, este, o coração desabitado,
foi, no entanto, o único capaz de se envolver com os impulsos
próximos dos ossos das nuvens
que se nos desprenderão da carne perdendo a arrogância
do céu e dos Anjos: pois, nem mesmo
a "abertura a um amor absoluto"
o consolará do desgosto
de não ter conseguido ascender por si mesmo
à sua ressurreição.
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  Chiote, Eduarda. Fiat Lux. Porto: Edições Afrontamento, 2017, p 36.
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sábado, 17 de março de 2018



                      21.


Que era o homem antes do homem,
o homem que pelos vistos não tem uma natureza humana
a tempo todo, a tempo inteiro, uma natureza má,
maldosa: uma natureza que lhe confere a forma modelada
à imagem das pessoas que conseguem coisas, não digo assombrosas,
prodigiosas, tal como as do mesmo objecto
em dois lugares - pouco, pobre! - mas coisas que fazem acontecer
tudo quanto e ao mesmo tempo nós?
Nós: condenados a repetir e ao ritmo de uma respiração
subatómica, o que nelas, coisas, a palavra sofre; pois ele é, por certo
e dentre todos, o homem o animal que se reclama pensar ser
o que mais sofre.
Ora. Se amar é, como o dizem, pensar alguém que nos é igual,
igual a nós, prescindamos então de interrogar as formas
que nunca estiveram sós no espaço em que nos empenhámos em desejar
humano o homem: contudo, não humano demais para conter
O que não pode dar-se a conhecer.


  Chiote, Eduarda. Fiat Lux. Porto: Edições Afrontamento, 2017, p 29.
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quinta-feira, 15 de março de 2018


Saiu na Revista Caliban de 2018/3/14 a minha recensão do último livro de Antonio Praena,
ver aqui:  https://revistacaliban.net/a-realidade-concreta-e-o-transcender-em-antonio-praena-76c63cd30cae   .
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ou aqui:
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A realidade concreta e o transcender em Antonio Praena

Antonio Praena
Historia de un alma
((XXVII Prémio de Poesia Jaime Gil de Biedma)
Madrid: Visor Libros, 2017

  

    Ao paradoxo do comediante de Flaubert, Marguerite Yourcenar virá acrescentar o paradoxo do escritor. Entendemos aqui por paradoxo a afirmação de duas proposições que entre si se contraditam, mas que são ambas verdadeiras naquilo que predicam relativamente a dado sujeito. Assim, o escritor para poder falar de algo teria de estar próximo daquilo de que fala, mas, por outro lado, só distanciando-se do seu objeto poderá dele falar com acuidade. Penso, contudo, existir também um paradoxo da Obra, já que para a analisar na sua completitude e dela ter uma visão integral ela basta-se a si própria, todavia, apenas conhecendo os diversos  circunstancialismos de que essa mesma Obra emana é que poderemos ter a asserção abrangente e plena daquilo que ela é. Eis o paradoxo! Este último aspeto posso aplicá-lo ao mais recente livro de Antonio Praena (Historia de un alma. Madrid: Visor Libros, 2017), que pode ser entendido naquilo que em-si única e exclusivamente diz, mas, e paradoxalmente, só pode ser cabalmente apreendido se o integrarmos em todo um continuum que é a produção poética deste autor.
     No que diz respeito à primeira parte do paradoxo, diremos que Historia de un alma é um olhar, simultaneamente deambulante e peregrinador, sobre um real concreto com as suas pestilências, hábitos e mazelas morais. Antonio Praena, envereda aqui por uma narratividade segura e marcada por fortes tonalidades realistas, através das quais a palavra poética é utilizada como um bisturi que escalpeliza valores e modelos comportamentais da contemporaneidade, alguns dos quais ligados ao submundo (“Pero todos danzamos/aunando en comunión el albedrío/de este enjambre de putas y de chulos.” p.19; “También las marcas deportivas;/adoramos sus signos,/la aérea precisión de su diseño/ (…) Toda felicidad aspira a lo palpable.” pp.50-51). Contudo, estes matizes realistas não se perpetuam no gratuito e obsceno, embora caracterizem, eles também conduzem às falhas e limitações deste universo retratado, remetendo igualmente para a sua superação numa abertura que o redima e transcenda (“También yo soy testigo de mi tiempo,/un alma colectiva, tan solo que sin drama./Todos vosotros estáis muertos/en medio de esta orgía inacabable,/porque nadie os espera/al final de la noche. p. 76; “Llegas a ningún sitio/sabiendo que el camino se ha borrado,/pues no hay nadie al origen/ni nadie a la llegada. p.80).
    Abordando agora a segunda  vertente do paradoxo já referido, poder-se-á dizer que as inquietações e o espanto do mais recente trabalho de Antonio Praena se encontram já, de um modo ou de outro, em potência ou em ato, nos seus livros anteriores (“Obsceno y transmigrado, alguien que tiene/mis alas vuela ébrio en la pantalla/de alguien que no es alguien y hace mito/la carne que le doy por la web-cam.” In Yo he querido ser grúa muchas veces. Madrid, Visor Libros, 2013, p.54). A constatação da insuficiência do universo enfatizado nestes livros, bem como a necessidade de a transcendentalizar, ressalta exatamente, em Yo he querido ser grúa…, nos poemas Kénosis (pp.24-25) e Grúas (pp.40-41), embora  também possa ser detetada em Poemas para mi hermana (Madrid: Ediciones Rialp, 2007): “Fuiste tú,/mi hermana única, tú fuiste/quien en mis ojos solitários puso luces/que tengo en este mundo ya perdidas.” p. 33).
    Vemos, portanto, que Historia de un alma de Antonio Praena não é passível de uma leitura, que, na obliqua, adquira de forma redutora interpretações exclusivas de cariz sociológico e/ou da psicologia social, é, sobretudo, o radiografar de um mundo, que, à beira do abismo, aponta para uma dimensão outra que o resgate e o torne sadio e autenticamente habitável.
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© Victor Oliveira Mateus in Revista Caliban, 2018/3/14.
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quarta-feira, 14 de março de 2018


Nota - o poema que se segue é uma pré-publicação. Foi escrito diretamente em castelhano mas irá ser traduzido para curdo e irá integrar uma obra coletiva a sair brevemente na Alemanha, em curdo, e onde alguns escritores europeus manifestam o seu repúdio pela entrada das tropas turcas no Curdistão sírio.
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                         Un monstruo sobre Afrin



                              Les Turcs ont passé lá. Tout est ruine et deuil.

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Un monstruo desciende del norte.
Trae en sus manos la baba
de antíguas traiciones, la sangre
de los imperios que tuvo y quiere.

El monstruo no tiene brazos
sino tentáculos,
lianas de ponzoña,
de lama sofocando ciudades,
caminos, esperanzas.

Sin embargo el monstruo,
(com sus deseos de monstruo)
olvida las lecciones de la historia
que en sus garras acecha y brota,
y de él no quedará ni memoria
cuando llegue el día de su derrota.
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©  Victor Oliveira Mateus (Inédito)
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domingo, 11 de março de 2018



                      Salida 13

Si una especie de hombres se atreviera
sólo a soñar las cosas que yo he visto,
todos los sueños morirían.

He visto Barbys desvirgadas
entre los guantes impolutos
de un tipo trajeado.
Marquesas y fervientes
regalar pitilleras
con tal de ser tratadas como golfas.
He visto el Maserati de um famoso
en los arcenes de Las Barranquillas
- ya sabéis: salida 13
de la Autovía de Valencia -
buscando mefedrona junto a un chulo
con Wranglers de elastano.
También he visto anillos de brillantes
al fondo de condones
y polvo de kamagra
sobre botines de serpiente genuina.

Qué esperabais del arte? Alguna vez
te has preguntado cuántos mundos
se esconden en lo oscuro de este mundo?
Los sueños no podrían respondernos,
porque los sueños son absurdos e idealistas
igual que el niño muerto que llevamos
muy dentro de nosotros.

Y he visto, finalmente, te lo juro
- porque las letras son ajenas a los sueños -
sobre un cuerpo ciclado
con anabolizantes esteroides,
un tatuaje que dice:
"aquí no queda espacio para tanto vacío".


  Praena, Antonio. Historia de un alma. Madrid: Visor Libros, 2017, pp 23-24.
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sábado, 10 de março de 2018


              Finde


Cocaína y ginebra
celebran que estoy solo
de viernes a domingo.
Y el móvil encendido, por si acaso,
para que no sospeches nada.
Voy corriendo cortinas y el delirio
carnal llega a las seis de la mañana
con una peli porno.
Me gusta estar tan cerdo
mientras los dedos de la aurora
recorren los visillos y se escuchan
los pájaros más puros.
No me salvan sus trinos;
nada puede salvarnos
del olvido sin fondo
que habita entre este hombre y el muchacho
que soñaba otra vida
una tarde de siesta
al final de la infancia.

Mejor me bebo el rosa de la aurora
con agua tónica y ginebra.
La indiferencia hace el resto.


   Praena, Antonio. Historia de un alma. Madrid: Visor Libros, 2017, p 22.
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sexta-feira, 9 de março de 2018


na incerteza do amor, o que nos resta é um corpo à
chuva, no centro do aluvião, como uma catedral desfeita
de papel, um movimento invisível, desmontando o
cantar da solidão, para nos dizer que o dicionário cegou
sobre esta tristeza, que não há palavra que chegue a casa
e substitua o lume: o que nos resta é uma aliança na arca
que ficou por encher, um mistério que nunca tapou a
sede ao crescer do desejo, uma taquicardia por tirar da
gaveta, um céu tão subido, e a coroação das rosas, como
redenção do inverno. na incerteza do amor, o coração
dobra-se num precípício, um soluço, portanto, como
travessa de pedras encalhada, entre o esquecimento
que espera e a boca que arrefece, um poema devastado,
um relógio triste, um piano avariado, caindo para
dentro, como míngua concentrando o silêncio.
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. Gonçalves, Daniel. Pequeno Livro de Elegias. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p 33.
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quinta-feira, 8 de março de 2018



vem buscar-me as mãos a noite já aceitou a minha tristeza
tenho esta sede como um delírio na duna frágil do cansaço

atravessa o livro que deixei aberto no chão (o último poema)
que eu tenho frio e não sei se encontro asas para regressar

preciso da tua retina aguada da tua estrela tão deslumbrada
do pontão atravessando a reluzente volúpia dos segredos
da sinceridade com que falas às cinzas azuis dos sonhos

a noite entrou no meu orvalho e bebeu a vida que restava
que mais posso eu guardar em minha boca que não arda?
que cintura delicada que fulguração que volúvel lucidez
me cerca agora que todo o imponderável infinito é tranquilo?

traz-me os aluviões do teu estuário vem buscar-me agora
sentiste o meu grito? venceu o olvido vazio que nos separa?

sê tu a água que me desata o olhar a mão que me acorda
um beijo flutuando com esta música no trapézio da manhã


 Gonçalves, Daniel. dez anos de solidão. Fafe: Editora Labirinto, 2007, p 178.
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quarta-feira, 7 de março de 2018



todos os dias a tua ausência se repete
dia após dia o longo caudal de silêncio

pedra a pedra suportando o peso da sede
até que a casa derrame a sua voz secreta

e nem uma ave te acorda nem uma estrela
ou outra música anoitecida te pode envolver

é este o ofício que nos corrige a cegueira?
este vazio violando a nossa respiração?

a espera tecendo o horizonte as asas do tempo
a doçura inscrita na fulguração da distância?


  Gonçalves, Daniel. dez anos de solidão. Fafe: Editora Labirinto, 2007, p 57.
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terça-feira, 6 de março de 2018


quando te der saudade de mim, e a poeira
assentar, quando o chá ficar pronto,
e o amor desadoecer, quando vires a caravela, que nos vem
salvar, ata esse poema ao lume, e deixa crepitar,
o nosso tempo há-de subir, para dizer das
palavras vindouras, a casa para os retratos, ventre
para as sementes, hora para as mãos, quando te
lembrares desse domingo, e o relógio parar, atrás
do que não importa, no ruído das coisas que nos
atrasam, atrás do tiquetaque da fome, como uma
sombra nítida, entre a cor e a música, quando
sumires de olhos abertos, cai no meu nome,
tropeça nesse tronco, e acorda comigo, outra vez.


  Gonçalves, Daniel. Buarquianas. Santa Maria dos Açores: Confraria do Vento, 2018, p 1.
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segunda-feira, 5 de março de 2018



não sei se isto é amor, se é poesia que engana,
quando organiza as palavras, à volta do teu nome,
com a tua caligrafia antiga, a servir de candeia, não
sei se isto é amor, se é sombra que evolui lentamente,
passando de palavra em palavra, até chegar à tua
boca, não sei se isto é amor, se fosse amor, por certo,
brilhava no escuro, dispensava as mantas, evitava
este poema.
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 Gonçalves, Daniel. Papéis Secundários. Ilha de Santa Maria, Açores: Confraria do Vento, 2017, p 15.
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