segunda-feira, 30 de junho de 2014





éramos cinco no apartamento do príncipe real
fazíamos longos passeios ao domingo de sono
íamos ao trumps
íamos ao plateau
e a vida era empurrada entre intervalos.
um dia tu disseste-me as palavras certas:
só vivo o momento, não sei de amanhãs
e eu que tanto queria imaginar o amanhã
fiquei perplexa
o momento e o acaso são inúteis
apetece-me empurrar os momentos todos
e dar-lhes um significado
não gosto de momentos
são episódicos
empanturram-nos de satisfação
até que de súbito queremos acordar amanhã
mas o momento não deixa
para passar o momento
comecei a tomar lexotan




  Barreira, Cecília. Todos os Pecados do Mundo. Fafe: Editora Labirinto, 2014, 27.
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domingo, 29 de junho de 2014





a seguir à morte o maior pecado é o da amizade
ser amigo do alheio?
ser amigo do privado?
a amizade é um pecado tão grande
que ser-se amigo é aquela coisa dúbia
entre empresta-me 100 euros por favor
e partilha a minha dor com a tua dor
a amizade é estranha
a amizade é o reflexo das ausências que tivemos na infância
também há a amizade a um electrodoméstico
também há amizade a uma cerveja
mas aquele olhar cúmplice com que te observo
cada vez que habitamos outros lugares
é a passagem é o ritual com que te amanheço
a amizade é o pecado dos frágeis
e eu sou frágil




   Barreira, Cecília. Todos os Pecados do Mundo. Fafe: Editora Labirinto, 2014, p 12.
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sexta-feira, 27 de junho de 2014



Homenagem a Glória de Sant'Anna na Fundação José Saramago a 27/6/2014: Gisela Ramos Rosa, Andrea Paes, Daniel Maia Gonçalves, Inez Andrade Paes e Victor Oliveira Mateus.
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A fulguração do instante como fundamento da serenidade


na poesia de Glória de Sant’Anna


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          A arte poética de Glória de Sant’Anna funda-se numa cuidadosa e atenta auscultação do real que a cerca e daquele que dentro de si ressuma. Sem adentrar-se nas fórmulas canónicas do realismo, são, contudo, os instantes manifestados pelo real – entendido este como mundo natural ou como mundo vivido e relembrado – que a despertam, maravilham e, muitas vezes, magoam: “As acácias guardam nas tímidas folhas / franjadas e límpidas / a doce ternura / da ausente cacimba.” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988, p 65), “Tanto oiro na tarde / escorrendo do poente // as silhuetas das árvores / são fímbrias de poemas” (In Algures no tempo, 2005, p 21), “quem bateu à minha porta / limpou os pés / deixou os sapatos / e foi-se embora” (In Trinado para a noite que avança, 2009, p 33). Os instantes apreendidos pela poeta apresentam-se geralmente na sua dimensão pictural quer pela beleza das formas, quer pelo exotismo do cenário, quer ainda pela transposição para o poema de dadas ambiências climáticas e temporais: “Por cima dos claros, transparentes búzios / e das lentas algas, / a negra desfia seus tranquilos passos” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988, p.63), “ O azul recente da manhã/ insinua-se/ pelo silêncio das plantas indefesas.// As casuarinas longamente/ hesitam/ entre o apelo do sol e os finos dedos// da brisa quase inútil.” ( Um denso azul silêncio, 1965, in “Amaranto”, 1988, p 135), "Dentro da madrugada clara / o vento é de vidro e a lua é de água, / e por entre as arestas das casas / o mar se alonga e arfa.” (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”,1988, p 71).
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De entre a multiplicidade de instantes vibráteis que assolam o imaginário poético de Glória de Sant’Anna encontramos igualmente motivos fortemente marcados pelo humano nas suas diversas facetas: o socioeconómico – “O menino é nu, / e alegre e claro: / veste-se da sombra / das árvores altas”. (Livro de Água, 1961, in “Amaranto”, 1988  , p.94), “ O pescador anda ao largo/ todo perdido do mundo/ - repartido entre o horizonte/ e o azul fundo.(…)// (Vai o destino passando/ ao mesmo tempo/ pelo pescador, pela rede,/ pelo mar e pelo vento).” ( Um denso azul silêncio, 1965, in “Amaranto”, 1988, p 138); o ético e moral – “O negrinho é morto / na noite densa. / (…) / de tão sozinho / de tão ausente, / quem o redime é o tempo.” (Poemas do tempo agreste, 1964, in “Amaranto”,1988, p 99); o urbano – “esguio parecendo / saído das pedrinhas dos degraus / entre um coração de vidro / e ferro duro moldado” (“O elevador de Stª Justa”, in E nas mãos algumas flores, 2007, p 21), “rua sofisticada dos artistas / e das horas românticas // agora os destroços calcinados / são sua vizinhança” (“Rua Garrett”, in E nas mãos algumas flores, p 18; é interessante notar aqui a impressão que o enorme e violento incêndio do Chiado teve, à época, no olhar da poeta); a guerra colonial –




                “Poema Décimo Primeiro”


 


 


 


A negra tombou entre os agrestes ramos


e um súbito espanto.


 


(está morta


e as aves cantam)


 


Do seu ventre aberto ao sol que se inclina


esvai-se o longo fio que a tecia.


 


(está morta


e o vento desliza)


 


Da face suspensa na folhagem magoada


descai o lenço que se desata.


 


(está morta


sob a claridade)


 


…toda já outra sobre o trilho que seguia


ausente das marcas de ódio que pisava


guarda entre os dedos longos da mão abandonada


sinais do áspero matope que a recolherá.


 


(está morta e as aves cantam


e a tarde se consome toda igual)


 


(Cancioneiro incompleto, temas da guerra em Moçambique, 1961-1971, in “Amaranto”, 1988, p.175)


 
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O tema da guerra colonial, na poesia da Glória de Sant’Anna, não pode ser desinserido de todo um ideário ético que trespassa a sua poesia, ideário esse que nos diz que ante o repulsivo de cultivarmos em nós uma qualquer espécie de infra humanidade, que frente ao que de aviltante tem a morte premeditada do Outro e que frente à horrenda injustiça que é privarmos esse Outro do seu direito inquestionável de estar vivo com dignidade e raízes, frente a tal território essencial nenhuma pele tem cor. Apesar da angústia, da nostalgia e dos vários momentos de profunda solidão interior que encontramos nesta poesia, Glória de Sant’Anna – e relativamente ao tema de que falamos, bem como ao livro que acabámos de referir – jamais abre mão, nem da sua solidariedade com o humano nem dessa sacralidade que é o estarmos vivos, independentemente de condicionalismos puramente acidentais, acerca disto leiam-se, por exemplo, os poemas: Sétimo, Nono e Décimo Terceiro do livro Cancioneiro incompleto.
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      Finalmente, e de entre os instantes vibráreis e fulgurantes, ressalvemos o mundo dos afectos do qual podemos destacar, por exemplo, a amizade, veja-se o poema dedicado a Sebastião Alba – “bateu ao portão um dia / bateu ao portão / abri-o // vinha da estrela do norte / bebendo copos de vinho” (“Cantiga de amigo” in Algures no Tempo, 2005, p 16), e ainda o poema dedicado a José Craveirinha – “a areia morna / sorve os teus passos // e a tua fala / contida / retida nos olhos largos” (“Musicando arrabil” in Algures no tempo, 2005, p 27). Convém ainda enfatizar que estes instantes fulgor que acicatam todo um pensar de imagens de que Glória de Sant’Anna se serve na sua arte poética pode assumir duas variantes distintas e, por vezes, autónomas: ou cada estrofe é ela um agora fulgurante e descentrado na organização do poema, ou cada estrofe complementa todas as outras dando azo a que o instante seja agora a própria unidade poemática, como exemplo desta segunda faceta podemos citar o poema “Maternidade” incluído em “Um denso azul silêncio” (1965), poema este que, para além de ilustrar o que acabamos de dizer, dá uma amostra clara da posição da poeta relativamente à problemática da diferenciação étnica:
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          Olho-te: és negra.


          Olhas-me: sou branca.


          Mas sorrimos as duas


          na tarde que se adeanta.


 


        Tu sabes e eu sei:


        o que ergue altivamente o meu vestido


        e o que soergue a tua capulana,


        é a mesma carga humana


 


        Quando soar a hora


        determinada, crua, dolorosa


        de conceder ao mundo, o mistério da vida,


 


        seremos tão iguais, tão verdadeiras,


        tão míseras, tão fortes


        E tão perto da morte…


 


        (…)


 


         Ambas estamos certas


         - tu, negra e eu, branca –


         que é dentro dos nossos ventres


         que germina a esperança.


 


 


     A toda esta multiplicidade de estímulos que se impõem ao ver, à escuta e à interioridade perscrutadora da poeta soma-se o percurso existencial de Glória de Sant’Anna ela-própria, périplo cujas etapas, esperanças e desilusões Eugénio Lisboa tão bem expôs, com o rigor e a acutilância que todos lhe reconhecemos, no Prefácio de “Amaranto”. Ao que, por conseguinte, e como ponto de partida de toda uma poética, nos poderia aparecer como uma súmula de fulgurações visando o absurdo ou o arbitrário, ou ainda que este mesmo ponto de partida poderia apresentar as marcas de tantos dos estilhaços que a implosão do Realismo acabou por disseminar e que vão desde um niilismo burguês com roupagens neo-nietzschianas e de uma anarco-verbalização de cariz assumidamente aristocratizante a uma estética ostensivamente urbana com a consequente ostracização de todos os outros territórios nomeadamente o rural ou o etnicamente diferente, ao que, e como ponto de partida de toda uma poética – frisemos -, nos poderia conduzir a um percurso poético-estilístico mais condizente com o cânone – fluido e efémero como todos os cânones! -, Glória de Sant’Anna seguiu um caminho mais arriscado, mais solitário e, talvez por isso, mais magoado: cinde o ato perceptivo num misto de lucidez e de afastamento, cisão que mais não é do que o antídoto que protege a poeta de toda a emotividade extremada, frente à realidade vemos a autora absolutamente lúcida, mas também sabiamente anestesiada, numa palavra, serena: “ Aqui estou inteira:/ de memória ausente,/ sem fisionomia/ - como uma medalha “ ( Música Ausente, 1954, in Amaranto, 1988, p 51), “ Tudo é sereno e quase vago/ e parece fundir-se/ na minha própria lassidão.// Mas tudo só parece: o dia hoje caminha/ e leva-me de rastos pela mão.” ( Distância, 1951, in Amaranto, 1988, p 30), “ e prossigo por entre muitos seres/ empurrados aos variados alvos/ todos matéria igual em movimento/(…)/ de súbito suspendo-me// do meio da fuligem cor de rosa/ crescida do sol poente/ germina vagarosa para o ar/ a coroa de espinhos de Dezembro “ ( “Caminhando 2 “ in E nas mãos algumas flores, 2007, p 25), Repare-se, e ainda acerca do mesmo tema, no fenómeno de projecção, desvelado neste excerto de poema: “ e é sorrindo que a trazes lentamente/ mantendo a mesma face alva e serena/ e o mesmo calmo aceno alto e tranquilo// e é sorrindo e é firme que prossegues/ como uma espada erguida limpa e nua/ a prender na memória do metal/ o lixo das sargetas e o sangue pelas ruas// e é parecendo ausente que prossegues/ por onde há-de passar um dia o gume/ a isolar a verdade que procuras” ( in Gritoacanto 1970 – 1974, 2010, p 24).
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      Glória de Sant’Anna, frente à multiplicidade temática e à diversidade imagística da sua escrita, não envereda por qualquer procedimento de heteronímia ou por um qualquer psicologismo assente em identidades múltiplas a dizerem-se de acordo com o tempo e o espaço da escrita. Nela encontramos sempre a mesma postura: aquela que vai da fulguração (maravilhada, nostálgica, magoada e algumas vezes mesmo – poucas – alegre ) do instante a uma aquietação do sentir a que chamamos serenidade. Eugénio Lisboa, no ensaio já citado, traduz exemplarmente esta tese: “Decantada de todo o supérfluo, só já conseguem detê-la, por um breve momento, estrelas e silêncios. Aí, nesse espaço rarefeito, ainda algum prodigioso encontro poderá ocorrer…” (in Amaranto, p 20).
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      O mar adquire, por fim, essa dimensão justificadora e, diríamos mesmo, de base psicanalítica, não só de uma postura de acalmação, mas também da matéria-prima de um olhar e de um dizer poéticos: “Silêncio aberto/ de plenitude/ como uma ilha/ num lago fundo./(…) É este agora/ deste momento/ em que estando me ausento.” (Um denso azul silêncio, 1965, in Amaranto, 1988, p 123), “ Doce momento/ de entendimento.// Esperança liberta/ na água inquieta.// É o mar enorme/ quem intercepta o sofrimento.” (Livro de Água, 1961, in Amaranto, 1988, p 86), “ O pescador está morto no fundo./ E o pé, lho sustém um coral/ Desfez-se o m’cota e está nu/ - nu e livre dentro do mar.//(…) E por isso todas as palavras/ e apelos e gritos e lágrimas/ se dispersam na sombra do vento/ e no azul secreto da água.” (Desde que o mundo e 32 poemas de intervalo, 1972, in Amaranto, 1988, p 190). E é deste solo matricial: vivificador, apelativo e uterinamente aquífero que advêm quer a serena firmeza do olhar de Glória de Sant’Anna, quer a exactidão poética da sua palavra, geralmente nostálgica, mas sempre atenta: “Palavras me trespassam./ Claras frases. (Sem densidade quase).// Tão exactas,/ diluindo meu contorno (que inda sou).//(…) Que já não sei se estou/ obscura e idêntica,// ou broto sem defesa (repartida)/ na verde transparência de outra hora.” (Um denso azul silêncio, 1965, in Amaranto, 1988, p 131).


 


              “ O mar “


 


    Porque ê sempre o mar?


    Porque é concreto


   está cheio de morto e certo


 


   Na pálida esteira


   que vamos deixando


   tudo é origem-mar-humano


 


   Eu própria, tu,


   da cálida água


   da transposta água andamos


 


   Porquê sempre o mar:


   é isso


   - os mortos, as algas, as marés, os vivos.


 


   (E também a forma


   a cor, o tecido,


   quando a claridade da hora o decide.)


 


 


           in “ Amaranto “, p 202


 


 


     A poesia de Glória de Sant’Anna é, por conseguinte, inseparável de um iniludível confronto com a imposição dos instantes, com o resplendor da paisagem africana que sempre assumiu e fez sua, com uma lucidez geralmente magoada e assente num voluntarioso desdobramento do eu e com a presença indelével do mar, substância originária a que tudo volta, mesmo quando o coração fica – intacto – “ junto à raiz das acácias rubras “ (cf. Amaranto, p 73), e é assim, de uma tecedura sabiamente doseada, que a escrita desta poeta irrompe, também ela, em constelações de indefectíveis instantes:


 


 


                             


         Mateus, Victor Oliveira. Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 14 - 2º Semestre, 2014, pp 169 - 172.
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quarta-feira, 25 de junho de 2014





     "  Epitáfio  "




Eu um dia serei uma poalha de vento
pousando inadvertidamente em tua face


e me sacudirás


Eu um dia serei uma réstia de chuva
caída por acaso em tua fronte


e me sacudirás


E eu um dia serei a última lembrança
imponderável já na tua mente


e então me esquecerás




  Sant'Anna, Glória de. Amaranto, Poesia 1951 - 1983. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988, p 220.
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segunda-feira, 23 de junho de 2014





     "  Batuque  "




A negra salta e não cansa.


Entre o denso mar pálido
e a clara poeira,
a corda balança.


A negra se ergue e sorri.


Entre o leve céu pálido
e as dolentes árvores
e o tambor que vibra.


A negra se ergue e é esguia.


Dentro do batuque
e da ritmada corda
e do morto dia.


Não há segredo na boca tranquila da negra,
nem antigas e vãs perguntas que se percam,
nem místicas dúvidas ou esquecidos gestos.


Ela se ergue como uma lança, e entre o céu e a poeira
simplesmente
dança.




   Sant'Anna, Glória de. Amaranto, Poesia 1951 - 1983. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988, p 68.
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sábado, 21 de junho de 2014



(No VII Encontro de Escritores Moçambicanos, no dia 27 de junho, na Fundação José Saramago - em Lisboa -  a minha conferência será às 14:45. O tema encontra-se referido no programa)
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VII ENCONTRO DE ESCRITORES MOÇAMBICANOS NA DIÁSPORA
SEXTA-FEIRA – 27 DE JUNHO

14h00 Recepção e boas-vindas por Delmar Maia Gonçalves (Curador dos EEMD)
14h05 Pilar Del Rio (Presidente da Fundação José Saramago) a confirmar...
14h15 Dra. Fernanda Lichale (Embaixadora de Moçambique) a confirmar
14h25 Francisco Nunes Ramos (Observatório de Língua Portuguesa)
14h35 Mário Máximo (Escritor e Presidente do Conselho de Administração da Municipália) - “Língua Portuguesa factor de união”

14h45 Homenagem Póstuma à escritora Moçambicana Glória de Sant’Anna
Com a presença de Inez Andrade Paes e Marinez Andrade Paes.
Víctor Oliveira Mateus – “A fulguração do instante como fundamento da serenidade na poesia de Glória de Sant’Anna”
Inez Andrade Paes – “O silêncio das manhãs”

15h00 Momento de dança de ventre com Susana Amira

LITERATURA MOÇAMBICANA
15h10 Ascencio de Freitas – “A Reconquista de Olivença” (Prémio Vergílio Ferreira) Comentário do autor ao seu próprio romance.
15h20 Delmar Maia Gonçalves – “Tchanaze, a Princesa de Sena” de Carlos Paradona Rufino Roque
15h30 Maria Paula Meneses – “Moçambique no Índico: as linguagens dos sabores”
15h40 Fernanda Angius – “Os escritores emergentes no panorama literário moçambicano”

15h50 HOMENAGEM
Sónia Sultuane – “Breve intervenção”

LITERATURA MOÇAMBICANA
16h00 Alex Dau – “Percursos e experiências na Literatura Moçambicana” (a confirmar)
16h10 Madalena Mendes – “Em transcurso pelas veredas das paisagens literárias”
16h20 Filipa Vera Jardim – “Nos Terra”
16h30 Jorge Viegas – “Navegação sem bússola na poesia moçambicana”

16h40 LANÇAMENTOS
“Mares de Olhares em Mestiçagens de Poesia” de Delmar Maia Gonçalves

16h50 Momento de dança com Jovens Marrabenta

17h00 Encerramento


SÁBADO – 28 DE JUNHO

10h00 Recepção – reabertura do encontro por Delmar Maia Gonçalves

LUSOFONIA
10h05 Rodrigo Sobral Cunha – “Lusotropia”
10h15 Carlos Jorge Pedroso – “Lusofonia e Diáspora”
10h25 Rodrigues Vaz – “Lusofonia: mitos e patranhas”

10h35 LANÇAMENTOS
Apresentação da Revista Nova Águia nº13 com Renato Epifânio

INTERCULTURALIDADE
11h00 Danilo Salvaterra – “A Casa Internacional de São Tomé e Príncipe em Portugal”-Uma Missão para o Mundo
11h10 Manuel Dias Duarte – Conversa sobre o livro “Mulheres com poder e autoridade – contributos para a reintegração das mulheres na história”
11h20 Rosa Vaz – Uma Artista Plástica Angolana “25 anos de Arte”

11h30 Momento Musical com Talenti Tanto
11h45 LEITURAS DE POESIA
Sibila Aguiar | Lourdes Peliz | Liliana Lima

12h00 LANÇAMENTOS
Autores da Editora Mágico de Oz
“A vida Inspira-nos” de Márcio Batalha(Poeta Angolano)
“A noiva da colina” de Francilangela Clarindo (Escritora Brasileira)

12h30 Almoço livre

14h00 LANÇAMENTOS
“Poalha de MusaM’Biki” de Ribeiro-Canotilho

14h20 LEITURAS DE POESIA
 Fernando Grade | Vera Novo Fornelos

14h35 LEITURAS DE POESIA
Gisela Torquato Cosme | Luís Ferreira | Carlos Peres Feio

14h50 HOMENAGENS
Hosten Yassine Ali

15h00 LANÇAMENTOS
“Da Poesia? Ou de como se justifica um ponto de interrogação.”
de Jorge Viegas

15h20 LEITURAS DE POESIA
Conceição Oliveira | Ana Dias | Lopito Feijoo

15h35 LEITURAS DE POESIA
Isa Fontes | Luísa Demétrio Raposo | Goretti Pina

15h50 “A poesia angola no caminho doloroso da História”
Zetho Cunha Gonçalves | João Melo | José Luandino Vieira

16h20 Momento Poético-musical com Fercy Nery

16h30 LANÇAMENTOS
Antologia Universal Lusófona “Rio dos Bons Sinais”

17h00 Encerramento

quinta-feira, 19 de junho de 2014





     "  Solidão  5  "




quem bateu à minha porta
limpou os pés
deixou os sapatos
e foi-se embora




     Sant'Anna, Glória de. Trinado para a noite que avança. S/c.: Edição de autor, 2009, p 33.
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            "  Solidão 3  "




todos os ruídos
me agridem


me envolvem


me ferem


e constroem paredes
de vidro




  Sant'Anna, Glória de. Trinado para a noite que avança. S/c.: Edição de autor, 2009, p 31.
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quarta-feira, 18 de junho de 2014



                        " A Fábrica "


As negras chaminés, quais bocas tenebrosas,
Cospem no azul negros escarros pestilentos
Dum fumo que envenena as paisagens nervosas
E que os lúcidos céus nos torna nevoentos...

A fábrica trabalha, e silvos estridentes
Cortam, como uma espada, a trágica atmosfera.
Há rodas a girar, grandes fornos ardentes,
Terríveis como o olhar sangrento da Quimera!

Lívidos rostos, como lágrimas, orvalham
Os vapores que vão mover as engrenagens.
Há negros vultos revoltados que trabalham,
Enquanto o sol fecunda o ventre das paisagens!

Vem visitar, ó Dante, este medonho inferno,
Os negros antros do Trabalho e da Miséria...
Cavernas onde geme o sofrimento eterno
Que tem no rosto magro a palidez funérea!

Anda ver, ó Poeta, os antros do Martírio,
Os modernos Titãs que hão-de escalar os céus...
E nas forjas, a arder, as chamas em delírio,
Que, porventura, anima a cólera de Deus!...

E a bigorna onde forja a Dor o raio ardente
Que há-de o mundo imperfeito e injusto fulminar!
Mas nesta escuridão eu vejo claramente
O brando alvorecer dum místico luar...

E da Fábrica cruel, cheia de fumo e treva,
De grandes corações amargos, sofredores,
Um grande sonho, ó Deus, fantástico se eleva,
E envolvem a oficina estranhos esplendores!...


   Pascoaes, Teixeira de. Para a Luz, in Obras Completas, Volume II ( Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, 2ª Edição, pp 75 - 76.
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segunda-feira, 16 de junho de 2014





                 " A minha musa "




A minha Musa agora é sombria mulher
Que, faminta e descalça, eu vejo em qualquer parte.
Quero encontrar na noite a luz do alvorecer
E nuns farrapos de mendiga uma obra d'arte.


Há nos teus lábios, Musa, o murmúrio das fontes
E no teu corpo verde há ramos doloridos.
Por sobrancelhas tens os vastos horizontes
E os nevoeiros são teus húmidos vestidos...


Simbólica mulher, descubro no teu rosto
Os traços da Miséria... a tua mãe decerto...
Nos teus olhos crepita o incêndio do sol-posto,
Há neles a amplidão magoada do deserto!


Um vento de injustiça açoita o teu cabelo,
Enruga a tua fronte a cólera de Deus!
Mas nos teus lábios ouço a voz do sete-estrelo,
A prece do luar e o cântico dos céus...


O pranto que floresce à luz do teu olhar,
Como os mundos do espaço à luz dos claros dias,
Na minha alma entrou, como um sinistro mar
Que salta, espadanando, as broncas penedias!


Dentro em mim se mudou num ideal perfeito,
Tudo o que ao meu ouvido, ó Musa, tu segredas,
E o ódio que incendeia o teu sensível peito,
Meu coração cobriu de estranhas labaredas!


Grande mendiga, vais, ó terra solitária,
Pedindo à luz do sol a esmola duma flor.
Sòmente existe em ti, mulher extraordinária,
O ventre auroreal que concebeu a Dor!...


Vejo-te percorrer o abismo do infinito,
Num sonho enorme, num constante delirar
Que inunda de clarões teu perfil de granito,
Onde gelou de dor a lágrima do mar!


Depois que te encontrei naquele dia baço,
Escuro como a sombra humana duma cruz,
Todo o meu corpo foge, em fumo, pelo espaço,
Toda a minh'alma eu vejo a desfazer-se em luz!...




   Pascoaes, Teixeira de. Para a luz, in Obras Completas, Volume II ( Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, 2ª Edição, pp 56 - 57.
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Nota - Este poste respeita a grafia da época.
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sábado, 14 de junho de 2014





                  " Delírio "




Esta vaga tristeza irmã do Outono,
Esta dorida cor lilás que pinta
Longes de alma, distâncias de paisagem
E o divino cadáver de Jesus...
Poeiras roxas que o zéfiro doirado
Espalha sobre as cousas, à tardinha...
Este mistério que anoitece o mundo
E cai do Sol em lágrimas de treva...
Diante de mim, este caminho aberto
Que ninguém sabe onde é que vai parar;
Esta saudade infinda que se abrasa
E é teu perfil aceso na penumbra...
Estas sombras nocturnas que me falam
E me cercam de vozes espectrais,
De medos e de espantos fabulosos,
E se desprendem do meu corpo, e tomam
Estranhas e fantásticas figuras,
No mesmo espaço fluido e transparente
Em que, densos de bruta realidade,
Se esculpem negros troncos e penedos;
Este escuro profundo em que me sinto
Pairar e flutuar, delido quase
Num triste sentimento indefinido
Que a limpidez do ar azul perturba
E põe um véu de luto nas estrelas;
Este indeciso estado do meu ser,
Sem forma e sem limites, que ama e sofre,
Longe da dor, além do próprio amor,
Dá-me não sei que morta consciência
Da vida - uma visão misteriosa
Do mundo que se afasta no Infinito
E se reveste de uma luz defunta...


E um sonho de tristeza me deslumbra,
E transfigura tudo... Este penedo,
À luz da lua, é mundo visionário,
E em volta dele pairam sombras de almas...
Esta soturna casa onde nasci
Foi por ermos espectros construída,
Durante as horas mortas... Este lódum
Que, junto dela, viu passar por ele
Invernos mais Invernos, Primaveras
Atrás de Primaveras, - que aparência
Humana e triste o envolve! Lembra um anjo
Condenado a ser árvore velhinha,
Cismático, alongando no crepúsculo
As asas depenadas pelo Outono...
Está de sentinela, dia e noite,
À casa onde eu nasci, sepulcro enorme
Onde repousa a minha infância morta,
Onde o luar congela nas paredes,
E o Sol, todo alegria, se condensa
Num oiro de tristeza, ao cair da tarde.


Em ti quisera repousar por toda
A negra eternidade! Ó minha casa!
Ó templo do silêncio, em ermo outeiro,
Tão povoado de misteriosas sombras,
Como, ao luar, um velho cemitério.
E a minha fonte é a fonte do silêncio
Quando aparece a lua na montanha,
Como caveira a erguer-se luminosa
Das trevas dum sepulcro...


            E quem sois vós,
Ó tristes pinheirais, ó pobres mártires,
Atirados às chamas do poente?
E estas nuvens que os ventos esculpiram,
reproduzindo as fabulosas cenas
Cantadas por Homero, o pai dos Deuses?
E esta pedrinha humilde cintilando,
Sob os meus pés, como pequena estrela
Caída das alturas infinitas?
E este velho mendigo que me lembra
A aparição de Cristo a errar no mundo
- Dum Cristo mais humano e envelhecido
A quem os nossos crimes e pecados
Enrugaram a fronte e lhe cobriram
De brancas os cabelos?
E o fantasma agoirento do crepúsculo
Que agita as asas negras
E acende, ao longe, uma estrelinha de oiro?
E esta pocinha de água, tão profunda,
Que tem astros e nuvens no seu leito?
E para além das nuvens e dos astros
Quem sabe que distâncias haverá?
Que larguezas de sombra indefinida
E que espaços de eterna claridade?
E este pobre maluco a falar só,
Gesticulando aos ventos da noitinha,
Exalando no ar o seu fantasma,
Aquele vulto enorme que o persegue
E lhe transtorna o mundo, porque o Sol
Atrás dele se oculta de medroso
E não é mais que um lívido fulgor?


Os meus olhos as coisas transfiguram.
Vivo como as crianças, num constante
Deslumbramento, num delírio de alma!
Não sei que estranha força me arrebata
Para aquelas alturas donde a terra
É pequenina lágrima de luz...
Vou levado num ímpeto nocturno,
Nos braços de uma sombra enlouquecida,
Seduzido e aterrado, ao mesmo tempo!
Grito com medo! Extasiado, canto!
E, cantando e gritando, vou levado
Nos braços duma sombra, etérea Deusa
Que me beija na face...
E sinto que desmaio e me disperso
Numa poeira branca de luar...




    Pascoaes, Teixeira de. Cânticos, in Obras Completas, Volume V (Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, s/d., pp 176 - 179.
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Nota - Este poste respeita a grafia da época.
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                     XXXV




O poeta é um pobre doido errando, sempre além.
Deste mundo, a cantar, em vida se desterra.
Anjo de Satanaz, anjo de Deus, que tem,
No alma toda a luz, no corpo toda a terra.




                   XXXVI




Paisagens, céus, luar, nuvens, estrelas, lagos,
Para quem não amar, é tudo uma quimera.
E só quem ama alcança esses espaços vagos
Onde sentimos germinar a Primavera...




                 XXXVII




             Amar é ver a Deus,
       Porque ele está presente em nosso amor.
Quem ama neste mundo habita lá nos céus,
Quem ama traz ao lado a sombra do Senhor.




              XXXVIII




       Quem te acendeu, a estrela solitária,
Que exalas, na penumbra, a luz da minha vida?
Voltarás porventura à fonte originária?
Ou em noite sem fim divagarás, perdida?




  Pascoaes, Teixeira de. Cantos Indecisos, in Obras Completas, Volume V ( Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho). Amadora: Livraria Bertrand, s/d., pp 21 - 22.
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Nota - Este poste respeita a grafia da época.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

O texto que a seguir se reproduz serviu de apoio à apresentação do livro Temor Único Imenso, de Rui Almeida, publicado pela Editora Labirinto em Junho de 2014.



Se já é difícil falar de um livro de poesia, muito mais difícil se torna falar do livro de poesia de um amigo. Dei conta dessa mesma dificuldade ao referir-me a Lábio Cortado, primeiro livro do Rui Almeida. E acrescentei que entre a sua poesia e as minhas inclinações estéticas interpõe-se uma barreira, uma barreira que terá que ver com modos diferentes de entender e praticar a poesia - assim como com modos diferentes de entender o mundo. O Rui é uma pessoa religiosa, eu não. São aspectos da intimidade que se reflectem naturalmente naquilo que fazemos.
Por outro lado, é para mim claro que a biografia não deve interferir determinantemente na avaliação que fazemos de uma obra. Isto levou um poeta como António Ramos Rosa a escrever, em 1962, no seu ensaio Poesia, Liberdade Livre, que «são secundárias para tal as biografias, os estudos psicológicos ou psicanalíticos». E foi mais longe, explicando que é impossível «chegar à compreensão de uma obra poética, na sua realidade própria, partindo da vida do autor». Impossível ou não, o mais desejável é, tanto quanto nos for possível, já que não podemos libertarmo-nos de nós próprios, pelo menos, tentarmos libertar-nos dos preconceitos que eventualmente tenhamos sobre o autor que lemos.
O que será, então, a realidade própria de uma obra? Será o conjunto das múltiplas leituras que sobre ela possamos fazer. Ao ler um livro de poesia do Rui Almeida não estou a ler o Rui Almeida, o que seria, como compreenderão, bastante desagradável. Estou apenas a ler um livro de poesia, sendo que, por consequência, estou a inventar uma nova realidade, estou a alargar o mundo, estou a desbravar caminho na compreensão de mim próprio enquanto sujeito afectado pela leitura. É assim que me posiciono face a um livro quando o leio, face a qualquer obra de arte; ou seja, a relação que estabeleço com a obra é egoísta, sirvo-me dela para procurar conhecer-me, tento entendê-la na medida em que ela me afecta e, por isso, entendê-la é compreender-me a mim próprio mais do que decifrá-la, explicá-la, conhecê-la.
De resto, penso que tentar decifrar uma obra é tão inútil como procurar decifrar uma pessoa. Esforçamo-nos, mas ficamos sempre aquém do objectivo traçado. Porque há sempre o inacessível e o inacessível é isso mesmo: inacessível. Logo, incomunicável, impartilhável.
Ao confrontar-me com este novo livro do Rui Almeida foi para mim muito difícil libertar-me daquele substantivo do título. A palavra temor tem sobre ela uma forte carga filosófica. Como saberão, o filósofo Søren Kierkegaard colocou-a no centro das suas reflexões. No ano em que completou 30 anos, publicou seis obras (o que faz de Gonçalo M. Tavares um ténue fenómeno editorial). Entre elas, um livro intitulado Temor e Tremor. Não vou maçar-vos com a filosofia do dinamarquês, mas quero chamar a atenção para alguns pormenores do seu pensamento que, menos involuntariamente do que se possa supor, acabam por estar implícitos nos poemas do Rui.
Reza a história que Kierkegaard era uma rapaz solitário e melancólico, fortemente influenciado por um pai com tendências depressivas (apesar de tudo, teve seis filhos), e por um noivado interrompido em prol de uma dedicação extrema àquilo que entendia ser a ética cristã. Toda a obra de Kierkegaard resulta de reflexões angustiadas sobre a essência do Cristianismo, sendo Temor e Tremor o capítulo onde a questão do significado da fé se torna central. Podíamos chamar ao livro “amor e fé”, pois nele são inúmeros os exemplos onde ambos os tópicos entram em conflito.
Nesse livro, Kierkegaard recuperou a personagem de Abraão, cuja fé foi colocada à prova por Deus quando este lhe pediu que sacrificasse seu filho Isaac, para concluir que a fé é paradoxo e angústia diante de Deus como possibilidade infinita. Este paradoxo, também designado de absurdo, faz sobressair o contraste entre o divino e o humano, ao mesmo tempo que se apresenta como tábua de salvação não suprime a angústia. Eu, que não sou pessoa de fé, desconfio que todas as pessoas que o sejam sintam dentro de si, ocasionalmente, esta angústia. Para um ateu, isto torna o Cristianismo uma chatice; mas faz dos cristãos pessoas muito interessantes.
Nomeadamente o próprio Kierkegaard, que no seu desespero e na sua radical dedicação à fé tinha o lado simpático de ser anti-sistema, achava que os grandes sistemas filosóficos eram ridículos, importando-lhe antes o Indivíduo e a sua experiência enquanto tal: «a existência é possibilidade e, portanto, angústia». A expressão “temor e tremor” encerra uma experiência radical de fé num «homem que não era pensador, nem ímpeto algum sentia para ir além da fé». Não é difícil entender que os existencialistas admirassem o filósofo dinamarquês, tornando-se igualmente óbvio o que pode aproximar um ateu de tendências existencialistas, como eu, de um católico de tendências angustiadas, como o Rui.
Não obstante, basta começar a folhear este livro para perceber que as principais referências do autor não são filosóficas ou teológicas. A profusão de epígrafes de poetas portugueses tal indica. Entre elas, sobressai a do poeta Gastão Cruz, a quem o Rui pediu de empréstimo o título para este seu livro. Julgo valer a pena recordar o poema de Gastão Cruz onde foi respigada a citação:

É um outono inteiro imerso em armas
é um sopro de dias
movendo as suas lentas madrugadas
e nas manhãs e tardes repetindo

o céu cobrindo armas
o sol por entre as árvores deixando
soprar o movimento único imenso
da manhã e da tarde           a

madrugada
das armas renovada
por um outono tão completo como

o voo doloroso de ave morta
ou o sopro do ar sobre o humano
temor único imenso destas aves

Gastão Cruz, poeta que associamos a um grupo de poetas que se convencionou chamar de Poesia 61, por terem começado a publicar pelo ano de 1961, incluiu este poema num conjunto de 1969 intitulado Aves. É um conjunto fortemente marcado pelo facto político da guerra colonial, que, curiosamente, havia começado precisamente em 1961. É, na minha modesta opinião, dos melhores conjuntos de poemas de Gastão Cruz porque nele conseguimos perceber uma intenção de renovar a linguagem poética sem a separar ardilosamente dos aspectos concretos da vida humana. Parece-me que é da maior relevância o Rui fazer desta poesia a plataforma a partir da qual levanta voo, até porque a sua poesia tem vindo a ser revelada, como veremos, em contramão com a grande maioria da poesia portuguesa da sua geração (pelo menos, a que merece os maiores encómios públicos).
Os poetas da Poesia 61 – e o Rui foi buscar epígrafes a três deles (não eram muitos mais) – não agradarão tanto aos poetas da nossa geração como outros, mas seria de uma enorme injustiça relegá-los para segundo plano. O Rui tem esta consciência apurada do seu lugar histórico, é um ávido leitor de poesia, sabe fazer-se valer desse legado que está nas nossas mãos preservar. Repare-se como o primeiro poema do livro dialoga directamente com o poema de Gastão Cruz supracitado:

Eram de novo as aves e morriam
Doutras armas porém do mesmo modo
Eram de novo e era de novo outono

Eram cegas e caladas as aves
Passando sombras do que elas eram
E era o silêncio delas de tal jeito
Que até o cansaço era também outro

E outro o medo dessas outras armas
Que calavam aves do mesmo modo
De novo no outono triste

Há uma continuidade entre os dois poemas que pode ou não ser temática, o segundo parte do primeiro fazendo uso dos mesmos termos. Chamo a vossa particular atenção para a repetição dos termos armas e outono, a convocação do tema da morte, o problema da queda aqui enunciado e posteriormente desenvolvido, o emprego de palavras que sugerem estados melancólicos (talvez o outono triste seja redundante). E repare-se também que sendo outras as armas, porque certamente são outras as guerras, o que se mantém inalterado é a morte. No mundo destas aves há um factor perene e imutável: a morte.
E por falar em legado, se bem repararam o denominador comum entre todas as epígrafes seleccionadas é o tópico poético das aves. Como veremos, as aves serão, por assim dizer, a personagem central deste livro. Se a palavra temor tem sobre ela uma forte carga filosófica, o que dizer do peso simbólico das aves? As aves são, desde tempos imemoriais, símbolo da relação entre o céu e a terra. Aparecem em todas as mitologias, em todas as religiões, são universalmente aceites e respeitadas enquanto mensageiras do sagrado, símbolo da mediação entre a esfera celeste e o mundo dos homens.
Não vamos mais longe, pensemos nos corvos que aparecem na bandeira de Lisboa, no falcão da mitologia egípcia, na fénix dos gregos, no espírito santo representado pela alvura de uma pomba, no condor dos andes, no albatroz, enfim nos anjos com as suas longas asas... Seria exaustivo enumerar as reencarnações metafóricas das aves, que tanto podem ser a representação da alma a sair do corpo como “símbolos vivos da liberdade divina”. Neste livro, o Rui Almeida aceitou corajosamente este peso simbólico, metafórico, das aves e procurou fazer algo singular, embora em constante diálogo com a tradição e uma assumida herança poética.
Há um poema, a meio do livro, que se interroga sobre a natureza das aves aqui “capturadas”:

Que aves são estas, postas à beira
Do caudal do poema, da fadiga
Da escrita e do miolo da memória?

Que aves são e como se deslocam
Por entre as folhas limpas arrancadas
Ao vazio das vozes, ao outono?

Porquê aves e porquê deste modo,
A arriscar a evidência sobre o voo?

E de que claros dedos surgem aves,
Estas que nunca antes existiram?

Estas interrogações não surgem no início do livro, arrastam toda uma digressão onde as aves permanentemente mencionadas foram descritas na sua ambiguidade e situadas, podendo nelas o leitor encontrar homens vulgares, as vozes dos mortos, o ponto de intercepção entre as esferas sagrada e profana. Estas interrogações surgem num ponto intermédio da reflexão posta em prática, depois delas as aves voltam a surgir sem que seja clarificada a sua natureza. São uma imagem poética, certamente, de que o Rui se serve, como outros antes dele, para expressar a sua visão angustiada do mundo.
Quem tenha lido os livros anteriores do Rui Almeida, não vai surpreender-se com o extremo cuidado colocado na arrumação/organização destes poemas. São textos geralmente curtos, de uma economia vocabular que faz sobressair a intensidade das palavras. Não sei, porém, se hei-de chamar a este conjunto uma sequência. Não é, certamente, um mero conjunto de poemas de tema dissemelhante ou próximo. Parece-se, antes, com um longo poema decassilábico cortado em fragmentos que beneficiam a leitura com as suas pausas. Vejamos o segundo poema:

Voam roxas e não brancas as aves,
Chão em vez de céu. Morrem sozinhas,
Secas como flores de ilusão, precárias.

As aves não são aves, são desenhos,
Entre o chão e a parede simulam o voo
De outros seres na insubmissão das asas.

Outras aves, outro voo, imagens
Dos percursos diferentes de outros
Destinos normais e condicionados.

Assim as aves, assim o seu voo.

Podia aqui falar o Abraão de Kierkegaard, o homem excepcional que observa uma entidade estranha, sombria. Estas aves, roxas, não têm a alvura tradicionalmente associada ao divino. Andam pelo chão, a sua precariedade é, afinal, a de nem serem aves: são desenhos, são imagens. Serão sombras? Serão poemas? Enfim, podem ser cada uma das pessoas que encontraremos na rua, presas e limitadas pelas suas frustrações, pela incerteza da vida mundana. Esta linguagem é metafórica, esquiva-se ao humorístico e ao anedótico, embora aceite, muito esparsamente, uma certa ironia. É uma poesia reflexiva, pensa e faz pensar, na mesma medida em que é contemplativa. O poeta que a escreve tem a capacidade de olhar para fora e, através de uma linguagem conotativa, expressar estados de alma:

Ali estão, aves quase ou nunca mortas,
Alheias ao modo lento da queda,
Sem o receio da proximidade
Ou de algum logro tangido por mãos
Suaves ou certeiras. Lutam paradas,
Olham em volta, sabem o que podem
Saber. E quase ou nunca se aproximam
Dos frutos da glória, da sua cor.
Aves ali, sem movimento, sem
Serem atraídas por ilusões.

O advérbio de lugar pressupõe uma distância entre o sujeito poético e o objecto da observação, aqui claramente humanizado. A lenta queda das aves é a lenta queda humana, e embora se aceitem excepções – como também no fragmento seguinte aparecem invocadas pelo uso do advérbio de quantidade poucas – a maioria destas aves percute uma configuração débil. A linguagem kierkegaardiana humaniza-as no seu desespero, na sua angústia, na forma como se distraem do essencial contentando-se com migalhas, mas também as enreda em paradoxos existenciais:

A cada corpo um esqueleto, porém,
Não são ossos o que sustenta as aves,
Antes o sopro interno que as faz
Elevar acima do movimento
Que cerca o corpo doutros seres do outono.

A cada ave um sopro, uma cadência,
Um ritmo só de penas provisório.

Porém o sopro no corpo das aves
Replica nos ossos o ar das penas
Deixando as aves sujeitas à queda.

Parece-me haver neste livro uma intenção deliberada de saturar um conceito, esvaziando-o do seu simbolismo para, desse modo, recuperar-lhe o rosto original. Há um poema curioso cujo primeiro verso faz referência a cinco aves pousadas nos ramos nus de uma árvore no inverno (mais uma vez, a opção seria entre “ramos nus” ou simplesmente “árvore no inverno”; juntas, as imagens são redundantes - único defeito a apontar a este livro). Mas a questão é: porquê cinco aves? Poderíamos responder como Adília quando interrogada sobre o significado das baratas que frequentam os seus poemas: são simplesmente baratas. Seja como for, o dado curioso é que o número cinco resulta da soma do primeiro número para com o primeiro número ímpar. Mais uma vez, o casamento do princípio celeste com o princípio terrestre. A poesia do Rui Almeida tem esta capacidade sugestiva, vive de alusões e de subtis referências no intertexto. Por isso inventamos tanto quando nela nos aventuramos. Interrogava-se Kierkegaard por que tem o amor tantos sacerdotes na poesia e sobre a fé nem uma palavra se ouve: «quem se pronuncia em honra desta paixão?» Está dada a resposta.
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  Henrique Manuel Bento Fialho, 7 de Junho de 2014, Biblioteca Orlando Ribeiro.
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