quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018


                       Algumas considerações em torno de O Sofista de Platão

1. - Introdução
   
   Diairesis é o termo grego para divisão , fazendo esta parte integrante do método platónico que procede sempre através de um processo dicotómico, que, rudimentar como era, comportava em si as suas próprias limitações. Pode-se, numa primeira aproximação, compreender este método em duas grandes fases:

1º - uma tentativa de abranger numa Forma genérica as diversas espécies do sujeito a definir - reunião;

2º - a diaresis propriamente dita, uma sepação dos vários eide encontrados no eidos genérico, descendo até à ínfima espécie.

Por conseguinte, sob o aspeto formal, este método é um duplo processo: um procedimento de exibição das várias espécies, seguido pela diairesis: é a este método que Platão foi fiel toda a sua vida, já que não lhe parecia haver método que melhor clarificasse uma busca para perseguir, das mais diversas maneiras, o conhecimento de uma forma singular, e, a partir daí ordenar todas as outras em relação a esta. Toda esta tarefa aqui descrita pertence a uma ciência específica: " to divide according to kinds, not mistaking one form for another, belongs to the science of dialectic" (In A History of Greek Philosophy Vol. V de W. Guthrie. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, p 129) e esta perícia dialéctica só filósofo possui.
   Acerca da primeira fase acima descrita Platão poupa-se a pormenores, quer no que diz respeito à teoria quer à prática, e, em obras como O Sofista e o Político , apesar dos inúmeros exemplos de diairesis , não encontramos também informação precisa sobre essas questões metodológicas, embora nos seja dito (Cf. Fedro 265e) que a divisão se faz de acordo com as articulações naturais. E... o que são estas? É a partir de O Político que esta questão é explicitada, aí se conclui que as diferenças ( disphorai ) separam uma espécie da outra na forma genérica. São as disphorai que, por conseguinte, devem distinguir as espécies. Ora, tudo isto levanta uma série de interrogações, já que me parece com sentido num sistema de conceitos, mas não num sistema onde os eide são substâncias autónomas e individuais, não há lugar na teoria platónica nem para Formas genéricas nem específicas. Vemos, portanto, portanto, levantarem-se problemas de tal modo complexos que podem pôr até em causa a existência dos eide... A combinação dos eide especíificos sob os eide genéricos sugere o mesmo tipo de combinação dos eide entre si? Devem as espécies constituir o género ou são elas derivadas deste? Arístóteles afirmará mesmo a incompatibilidade entre os eide (subsistentes e individuais) e a diairesis.
   O que estou a dizer leva-nos a perguntar: "how seriously are the dicotomies of the Sophist intnended?" (In W. Guthrie, Op. Cit. p 132). As opiniões divergem; uns falam de um paradigma caprichoso e absurdo, outros que Platão jamais se comportaria de modo a que o método fosse colocado no ridículo. Temos aqui, portanto, outra questão polémica! Duas hipóteses de solução acabam por se nos colocar: seria esta uma forma de refrear o entusiasmo dos seus discípulos, que viam na diairesis e no seu processo dicotómico a chave universal de todos os problemas do conhecimento? Ou estará também contido aqui um não sei quê de auto-criticismo através do argumento contra os amigos das Formas ? Assim, após esta Introdução ao método, vejamo-o agora no Diálogo O Sofista. 

2. - Percurso para a Definição de O Sofista

2.1. - As seis definições - esquematização

   A um estrangeiro chegado de Eleia é colocada a tarefa de definir o que ele entende por Sofista, em contraste com o Político e o Filósofo. O Político será depois definido no Diálogo com o mesmo nome, enquanto que o Filósofo não chega a ser definido por Platão, daí que é bem provável que ele tenha deixado os elementos mais importantes desta problemática (teórica e mesmo metodológica) para o tal diálogo que nunca chegou a escrever, sendo assim, muitos dos problemas formulados continuaram irremediavelmente insolúveis.
  Mas, voltemos ao Diálogo de que se está a falar: colocado perante semelhante tarefa (de definir o que é um Sofista!) , o estrangeiro opta não por definir diretamente o Sofista, mas em "pôr o método à prova, procedendo a uma indagação que seja mais fácil" (In El Sofista de Platão. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Ed., 1955, p 310), sendo-se assim, defina-se o pescador-de-cana a título exemplificativo: e as dicotomias surgem!: "o pescador-de-cana é um artista ou um homem sem arte, embora dotado de alguma outra propriedade?" ( In El Sofista de Platão, Buenos Aires: El Ateneo Ed., 1955, p 311)

Esquema 1:

Pescador: artista/ Homem sem arte
Artista: arte de fazer/ arte de adquirir
Arte de adquirir: troca consentida/ com uso da força
Com uso da força: combate/caça
Caça: seres inanimados/ seres animados
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Caça de animais: que andam/nadadores
(A partir da caça aos animais que andam, o Sofista e o pescarador afastam-se!)
Animais nadadores: voláteis/ aquática (pesca)
Aquática (pesca): com redes/ que fere
Que fere: de noite/ de dia (arpão)
De dia (arpão): com arpão de cima pª baixo/ com anzol de paixo pªa cima

Eis pois o pescador definido! Mas "servir-nos-emos deste exemplo para examinar o que é o Sofista e descobrir quem é?" (In Platão, Op. cit. p 315) Evidentemente! Vimos já que pescador e sofista caminhavam a par até à "caça de animais" e que a partir daqui há uma separação: o pescador segue animais no mar e rios, enquanto o Sofista segue para terra.

Esquema 2:

Caça em terra: animais domesticados/ animais bravios
Animais domesticados: com violência/ com persuasão
Com persuasão: privada/ pública
Persuasão privada: com salário/ com presentes
Com salário: adulação e procura de prazeres/procuram-se homens para ensinar-se-lhes a virtude

Não há dúvida que acabamos de nos deparar com o Sofista e "dando, este nome ao caçador de que se trata, creio dar-lhe o nome que lhe convém" (In Platão, Op. cit. p 315). Mas acabamos de obter apenas uma das facetas daquele que procuramos e, perante esta presa tão escorregadia, torna-se-nos necessário mostrá-la através de vários ângulos. Voltemos, pois, às "artes de adquirir" (Cf. Esquema 1):

Esquema 3:

Artes de adquirir: por convénio/ por força (caça)
Por convénio: por doação/ por compra e venda
Por compra e venda: indústria própria/ comércio de 2ª mão
Comércio de 2ª mão: intra-cidade (tráfico)/ inter-cidades (negócio)
Negócio: o necessário ao corpo/ o necessário à alma
O necessário à alma: exibição de objetos (luxo)/ venda de conhecimento
Venda de conhº: referentes a outras artes/ relativos à virtude

Acabamos de encontrar a segunda definição do Sofista e parece-me que a terceira se lhe encontra bastante ligada, já que "se um homem se estabelece de uma maneira fixa na sua cidade e, ali comprando e fabricando ele mesmo conhecimentos, encontra meios de viver vendendo-los de seguida (...) a este comércio pode-se dar o mesmo nome que ao anterior" (In Platão, Op. cit. p 320).
Partamos então em busca da quarta definição, mas, para isso voltemos às artes de adquirir:

Esquema 4:

Artes de adquirir: com consentimento mútuo/ por combate
Por combate: luta de rivais/ entre inimigos
Entre inimigos: corpo a corpo/ discursos a discurso
Discurso a discurso: em largos discursos/ por perguntas e respostas (disputa)
Disputa: sobre transações comerciais/ sobre o justo e o injusto (discussão)
Discussão: a que arruína/ a que enriquece (Sofísitca)

Será depois partindo das artes de discernir que o novo processo dicotómico se irá desenrolar:

Esquema 5:

Artes de discernir: separa o melhor do pior (purificação)/ o semelhante do diferente
Separa o melhor do pior: no corpo/ na alma
Na alma: maldade/ virtude
Maldade: enfermidade (cobardia): leva à justiça/ fealdade (ignorância): leva ao ensino
Ensino: ofícios mecânicos/ educação
Educação: com método rude (admoestação)/ com métoodo doces (refutação)


5ª definição: atleta nos combates da palavra, hábil na arte de discutir;
6ª definição: purificador das opiniões que estorvam.

   Cornford (Citado por W. Guthrie, Op. cit. p 126) parece ter julgado ver em todo este processo uma classificação dos sofistas, mas isso só pode ser mantido dentro de uma perspetiva arbitrária e bastante polémica. Platão não tinha provavelmente nenhum Sofista em mente, mas apenas a sua combinação sob um movimento comum, a Sofística. E não devemos igualmente deixar de ver todas as convergências que estas definições têm não só com os Megáricos, mas também com Sócrates e até com o próprio Platão, já que "in the early dialogues Plato frankly demonstrated his use of eristic techniques" (W. Guthrie, Op. cit. p 128)
   Recapitulemos então: encontraram-se seis definições do Sofista referentes a tantos outros aspetos que o caracterizam, temos agora de encontrar uma sétima definição que seja o elemento unificador de todas elas. É aqui que Platão faz referência à impossibilidade de alguém saber tudo e, a este propósito façamos eco do que diz Cícero acerca de Hípias: que apareceu este, certa vez, vangloriando-se de fabricar ele mesmo tudo aquilo de que precisava. Ora, é impossível saber-se tudo! Mas, então, em "que consiste, pois, este poder dos Sofistas que tanto nos surpreende?" (In Platão, Op. cit. p 334). É que, sendo impossível o conhecimento de tudo, os Sofistas revelam-se como tendo uma aparência de ciência e não uma ciência verdadeira. Sendo assim, o Sofista não passaria de um trapaceiro: "não é já claro que é um charlatão, que quer imitar a realidade?" (In Platão Op. cit. p 337). Se o Sofista é um imitador, urge portanto explicitar essa definição:

Esquema 6:

artes de imitar: fantasmagoria/ de copiar (reprodução conveniente)

   Embora nos apercebamos qual a categoria onde Platão colocaria o Sofista, a discussão é aqui interrompida, já que nos é necessário provar que uma imagem tem uma certa existência. Deixando a discussão acerca do não-ser para um tópico mais à frente, entremos diretamente no culminar da definição do Sofista e (ainda) numa perspetiva mais formal do que de conteúdos.

2.2. - Interrupção e o retomar do percurso para uma definição englobante

   Uma vez provado que o juízo pode ser falso e que é possível imitar seres (veja-se 3.2.) e que estas imitações nascem da arte de enganar, o Sofista é aí colocado sem qualquer outro comentário. E é interessante apercebermo-nos que este Sofista que nos surge agora, enquanto fazedor de imagens, não é captado por qualquer preocupação metodológica, mas antes se revela a Platão como por uma evidência que lhe é própria, é como que uma descoberta abstraindo o elemento comum ao númeor dos diversos exemplos. Assim, o Sofista enquanto fazedor de imagens pertence à outra grande sub-divisão das artes, agora produtivas não aquisitivas: "mas como agora o sofista nos aparece compreendido na arte de imitar, é claro que a arte de fazer é a que deveremos, imediatamente, dividir em dois" (In Platão Op. cit. p 389).

Esquema 7:

Arte: arte divina/ arte humana
Arte divina: de fazer as coisas mesmas/ de fazer imagens
Arte humana: de fazer as coisas mesmas (Exº: arquitetura)/ de fazer imagens (Exº: pintura)
De fazer imagens: de copiar/ fantasmagoria
Fantasmagoria: por instrumentos estranhos/ através de si mesmo (Exº: mímica)
Através de si mesmo: uns sabem o que imitam (aqui há conhecimento!)/ outros não sabem (não há conhecimento!)
Outros não sabem: de boa fé (Fáceis)/ Com consciência (Irónicos)
Com consciência: hábil em público por longos discursos (orador público)/  em particular, por discursos entrecortados (O Sofista)


  Portanto, "não poderemos, como antes, formar uma cadeia com as qualidades do Sofista? Não as abarcaremos em seu nome, remontando do fim até ao princípio (destas definições)?" (In Platão Op. cit. p 395). É evidente que isso não só é possível, como necessário a uma definição integral do sujeito que no início nos propusemos definir. As dicotomias acabaram e o Sofista é considerado por Platão fundamentalmente como um erístico, as razões que o levaram a limitar a Sofística desta maneira são mera suposição, mas é de suspeitar que ele ainda sentisse a necessidade de distinguir Sócrates da espécie de Sofistas com que ele era muitas vezes confundido.
   Se o Sofista nos parece revelar um outro Platão, o final da diairesis lembra-nos que, pelo menos, em dois pontos fundamentais ele permanece o mesmo:

a) classificando a imitação em verdadeira e ignorante, ingénua e insincera, está ainda distanciando aqueles que possuem a virtude (à boa maneira socrática) daqueles que fingem possuí-la;

b) dividindo as produções em humanas e divinas o estrangeiro salienta que os trabalhos da natureza devem ser olhados apenas como trabalhos de um Deus-artíficie atuando com razão, arte e conhecimento (Veja-se o Timeu onde se expõe a criação do cosmos por um Deus-artíficie segundo o modelo das Formas )

3. - A problemática ontológica em O Sofista

3.1. - Superação de Parménides e oposição aos Materialistas

   Debrucemo-nos agora sobre outra das traves mestras deste diálogo - a questão do Ser. Vimos anteriormente (Cf. Esquema 6) que Platão interrompera a sua investigação sob a necessidade de provar que uma imagem tinha uma certa existência, o próprio filósofo reconhece semelhante dificuldade e através do estrangeiro faz dizer: "(...) chegamos a uma indagação que não pode ser mais difícil. Parecer e assemelhar-se sem ser; falar sem dizer nada verdadeiro, são coisas contraditórias, têm-no sido mesmo antes que agora" (In Platão Op. cit. p 339).
   Assim, para provar que o falso existe é necessário provar que o não-ser tem uma certa realidade. Vejamos: ao não-ser não pode ser atribuído nenhum número, nem a unidade, nem a pluralidade. Mas quê, "como expressar com os lábios ou conceber pelo pensamento os não-seres ou o não-ser, sem fazer uso do número?" (In Platão Op.cit. 342). Estamos, pois, perante uma aporia:

Aporia:
- o não-ser não admite a unidade nem a pluralidade
- falando acerca dele não posso deixar de lhas atribuir

   Ora, entre um objeto real e a sua imagem, o primeiro é o que é verdadeiro, a segunda não sendo verdadeira tem, no entanto, uma certa existência, donde se conclui que o facto de ser "não-verdadeira" não a coloca como opositiva do "objeto verdadeiro" e confere-lhe até um certo estatuto de existente. Tipo idêntico de raciocínio pode ser aplicado ao Ser de Parménides, pelo que o seu monismo tem necessariamente de ser repensado: se o universo é uno, e Ser e plenitude são uma só coisa, então para quê dois nomes? Se o Todo não difere do Ser e desta unidade - já que se confundem-, mas um Todo (a Esfera) tendo partes não é a unidade, mas antes participa dela, e se o Ser não é um Todo mas participa da unidade, e se o Todo é alguma coisa, ao Ser falta algo de si mesmo que será o não-ser. Outras refutações se poderiam ainda buscar para os que dizem:

a) o Ser é... dois!: (visa-se aqui Empédocles e os seus conceitos de amor e de discórdia)
b) que tudo se une e desune sem cessar! (visa-se aqui Heraclito)

    Mas são também visados "those who have put the matter in another way" (Cf. W. Guthrie, Op. cit. p 138), ou seja, visam-se os "amigos das Formas" e os  Materialistas (Leucipo e Demócrito) que dizem que "só existe o que está submetido ao tacto e aos demais sentidos, confundem, ao defini-los, o corpo e a ciência..." (In Platão Op. Cit. p 355). Aqui abre-se um problema insolúvel: quem são os "amigos das Formas"? Os Megáricos? Uma fase passada do próprio Platão? Ora, este problema prende-se com uma outra questão: é o critério utilizado aqui do próprio Platão?. Mas, e voltando aos Materialistas, vejamos: um corpo animado tem alma e esta pode ser justa ou injusta, logo, para ser justa tem de possuir a justiça, sendo assim, para estar presente na alma  a justiça é algo, mas que algo é então esse que não é corpo?! Já os "amigos das Formas" distinguem geração de Ser , sendo este último imutável, mas... a alma conhece e o Ser é conhecido, sendo assim a vida, a alma e a sabedoria pertencem ao Ser que não pode continuar na sua augusta imobilidade.
   Vemos, por conseguinte, que Platão para fazer uma investigação concisa no campo do Ser, sentiu a necessidade de superar os seus antecessores, com forte insistência em Parménides, bem como de contestar outras duas posições: os Materialistas (Atomistas) que à sua conceção aristocratizante pareciam intratáveis e os "amigos das Formas" que representavam uma forma de pensar que já não lhe servia. O que é que interessa agora a Platão?

1º - atribuir o movimento às suas Formas ?
2º - alargar o domínio do Ser, para nele incluir a vida e a inteligência que não eram Formas ?
3º - vai futuramente como os "amigos das Formas" admitir a geração como parte do verdadeiro Ser ?

Se não há dúvida que Platão se preparava para modificar a sua Metafísica , fica, contudo, por responder qual a espécie de modificação que ele se preparava para introduzir.

3.2. - As Categorias do Ser 

   Convém relembrar que nos encontramos ainda dentro da questão levantada anteriormente, que arranjado o terreno para uma resposta, esta não foi ainda dada, daí a necessidade de a complementar com as Categorias do Ser , aquilo a que nos propusemos: provar que o não-ser tem uma certa existência, pois só assim o já dito ficará completamente esclarecido no assunto referente à existência das imagens (de Sabedoria) que o Sofista passa a vida oferecendo.
   Vimos já que para haver conhecimento era preciso haver movimento, mas, se este for permanente o conhecimento torna-se igualmente impossível, assim, não podemos admitir "um todo imóvil, sob a fé dos que o fazem uno ou múltiplo; como também não prestar ouvidos aos que querem que todas as coisas se movam por todas as partes e até ao infinito: é necessário que se imite os meninos nos seus desejos e se conheça quer o que é imóvel quer o que é movido, o Ser e o todo" (In Platão Op. cit. 361/2). Mas como coordenar a existência do movimento e do repouso repouso? E como articular estas com o Ser ? Ora, movimento e repouso não se poedem misturar porque diferentes e o Ser mistura-se com ambas, pois ambas são. Vemos aqui que há géneros que comunicam entre si e outros não, e, das três posições possíveis:

1º - toda a união dos seres é impossível
2º - os seres estão todos juntos
3º - uns seres unem-se enquanto outros se afastam


é a terceira a única viável, já que se todos os géneros se comunicassem o movimento estaria em repouso e vice-versa, e se os géneros estivessem numa incomunicabilidade total nem o movimento nem o repouso seriam. E, nesta terceira posição, é a imagem do alfabeto que serve de ilustração, já que também entre as letras umas se unem outras não: "as vogais têm sobre as demais a vantagem de se interporem entre todas, para lhes servir de vínculo, a tal ponto que sem vogais não haveria acordo possível entre as outras letras" (In Platão Op. cit. p 368)
   Sendo assim, é necessário saber que géneros se atraem e que outros se repelem e isso é, necessariamente, tarefa da Dialética, que, por sua vez, é tarefa do filósofo. Eis como indo em busca do Sofista se nos deparou o filósofo!
   Mas regressemos ao que estávamos tratando: encontrámos já três dos maiores géneros:

- O Ser
- O Repouso
- O Movimento

   "Cada um deles é outro que os outros dois e o mesmo a respeito de si próprio" (In Platão Op. cit. p 371), então o MESMO e o OUTRO são mais duas formas das quais as três primeiras participam. A ideia capital desta exposição é a de diferença, já que demonstrado que Ser e diferença não coincidem, Platão distingue entre a coisa que é em si e por si e quando relativa a qualquer outra coisa. A forma Ser inclui ambas: "Sócrates é (existe)" e "Sócrates não é tão novo como Platão (diferença)". Assim, a diferença é a vogal que impregna todos os outros géneros, pois cada um deles é diferente dos outros sem ser ele a Diferença-mesma. Concluindo: "o movimento é o mesmo e não é o mesmo" (In Platão Op. cit. p 373), é o mesmo para consigo próprio, não é o mesmo porque participa da diferença em relação a todas as outras Formas: Outro exemplo:

"A é o mesmo".............. A participa do mesmo em relação a si próprio
" A é diferente" ........... A participa da diferença em relação a B

   Eis-nos regressados ao início da nossa investigação, depois de todo este percurso acabamos concluindo que "o não-ser por conseguinte, se encontra por necessidade no movimento e em todos os géneros, porque a natureza do outro, presente em todos os géneros, faz que cada um deles seja outro que o ser e o faça não-ser, de modo que, deste ponto de vista, pode dizer-se com exatidão, que tudo é não-ser; assim como também, pela participação no Ser, se pode dizer igualmente que tudo é Ser" (In Platão Op. cit. 375). O não-ser deixa de ser o contrário do Ser, para se tornar em algo que é o outro, como por exemplo o não belo é apenas a oposição dum ser a outro ser, tendo portanto igualmente existência - " o não-ser apareceu-nos como um género entre os demais e espalhado em todos os seres" (In Platão Op. cit. p 381). Se o não-ser existe de certa maneira, o erro existe igualmente: há discursos falsos e pensamentos falsos. E, eis-nos atacando o Sofista no seu último reduto! Há discursos falsos sempre que reunindo verbos e nomes expressamos algo que não é como sendo e vice-versa. Mas o discurso não difere notoriamente do pensamento, este é, aliás, o diálogo interior da alma consigo mesma e, sendo assim, susceptível de verdade e de falsidade exatamente como o discurso.
   Chegamos ao fim do objetivo que nos propusemos: provámos que as imagens têm uma certa realidade e que a falsidade do discurso e do pensamento são possíveis, únicos momentos que faltavam à concretização da revelação dessa personagem que desde o início nos tem acompanhado - o Sofista.

4. - A linguagem grosseira das Formas e a refinada continuação aristotélica

   Ainda algumas palavras à guisa de conclusão: o método da diairesis tem sido frequentemente tomado como a base fundante da classificação científica e, sem dúvida, que foi a experiência de Aristóteles na Academia, bem assim como a sua inclinação natural, que o colocaram na caminho da biologia. Aristóteles poderia partir donde Platão houvera ficado, embora renunciando à grosseira linguagem das Formas que servira os propósitos pioneiros dos trabalhos platónicos.
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© Victor Oliveira Mateus (Anos 70/80).
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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018



                                    Espinosa: Ciência Intuitiva e Virtude

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1. - Introdução
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   Não podendo ser reduzida a uma mera continuação do cartesianismo, a filosofia de Espinosa chama a si a resolução de questões radicalmente distintas, embora aproveitando-se de um certo tipo de concetualização baseada na clareza e distinção, que haviam sido o suporte do pensamento de Descartes, mas, se a este era a verdade em ciência que o absorvia, a Espinosa preocupa-o antes uma outra questão, a saber: "que l'amour de Dieu, impossible sans une union nécessaire de notre être avec l'Être divin, est seul capable de nous sauver" (In Le Spinozisme de Victor Delbos. Paris: Lib. Philosophique J. Vrin, 1972, p 211). Temos assim, de um lado uma problemática de base científica, do outro uma teorização fundamentalmente religiosa, ética e política.
   Espinosa, produto de uma Holanda fervilhante social e religiosamente, expõe na Parte I da sua obra fundamental ( Ética ) a sua conceção de divindade. Essa parte da obra, de que já se falou anteriormente, pode ser considerada um autêntico tratado de Ontologia, onde esse Deus, tão polémico, constituído por atributos infinitos produz ( A Espinosa não era querida a ideia da teologia tradicional de Criação, mas antes uma outra de proveniência neoplatónica, a emanação!), produz, dizia, numa infinidade de modos. E é exatamente da forma específica de um desses modos de existir que se tratará aqui: o homem. Homem esse que não tem nenhum "privilège dans la nature et toutes ses pensées et conduites sont soumisses à des lois nécessaires, conséquences de la nature divine elle-même" ( In La Moral de Spinoza de Sylvain Zac. Vendòme: P.U.F., 1972, p 11). E, aquilo que aqui nos parece levar à negação de uma Moral em Espinosa acaba antes levando-nos a uma Moral de tipo diferente: fundada no determinismo e numa prospeção exemplar da natureza humana. Mais do que escrever um Tratado de deveres, a Espinosa impottava descortinar a essência do homem, como este habita o mundo e como finalmente se acabará unindo a esse Deus de que nos falou na Parte I da sua Ética.
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2. - Natureza da Alma e problemática do conhecimento
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    Gostaria de dar aqui ênfase a duas questões prévias que me parecem de utilidade para o assunto a abordar aqui::

a) a conceção espinosista da alma (Cf. Parte II da Ética )
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b) a íntima articulação que vejo entre uma forma de elevação da alma e o apuramento do ato de conhecer.
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   Relativamente à primeira alínea, com Espinosa rompe-se essa dicotomia de alma/ corpo, com o respetivo imperialismo da primeira sobre o segundo, aliás, nesta mesma linha e contra a ideia de Deus como puro espírito, Espinosa - no Esc. 2 da Proposição XV da Parte I da Ética - diz: "(...) desconheço a razão pela qual a matéria seria indigna de natureza divina, visto (pela proposição 14) não pode haver fora de Deus Substância alguma pela qual ela fosse afetada." Ora vejamos, na Proposição XI - Parte II da Ética, lê-se: "A primeira coisa que constitui o ser atual da Alma humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato." Vemos, pois, a alma constituída essencialmente por uma ideia, mas... pode ser esta última pura, ou melhor, pode ela ser a ideia de uma coisa inexistente? Não! Essa ideia só pode ser de algo singular existente também em ato e, mais à frente, na Proposição XII encontramos: "(...) se o objeto da ideia que constitui a Alma humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela alma e Espinosa acaba concluindo na Proposição XIII:" O objeto da Ideia que constitui a Alma humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da Extensão , existente em ato, e não outra coisa". Assistimos, por conseguinte, a uma reabilitação do corpo! Embrenhando-se depois o autor em teorizações várias em torno do corpo (duros/moles; constituição, etc.) chega-se finalmente, na Proposição XVI, à ideia de afeção, que aparece já definida na Parte III da Ética, Definição III: "Por afeções, entendo as afeções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou ou entravada, assim como as ideias dessas afecções".
   Veja-se agora como tudo isto se articula com a alínea b) desta secção: é no escólio II da proposição XL da Parte II da Ética que encontramos os vários graus de conhecimento:
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Graus de conhecimento:
- Pela experiência vaga
- Do 1º género: Opinião ou Imaginação
- Do 2º género: Razão
- Do 3º género: Ciência Intuitiva (que precede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas).

Ora, o conhecimento do 1º género é causa da falsidade, enquanto que os do 2º e 3º géneros nos ensinam a discernir o verdadeiro do falso. Vislumbra-se assim qual será a tarefa da alma, ou seja, qual o percurso que o homem terá de trilhar, através de um conhecimento que salve, para atingir a suprema virtude.
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3. - Teorização das afeções
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3.1. - Ação e Paixão
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   Para que possamos compreender até onde o homem pode chegar urge que se analise os conceitos que povoam todo esse caminho do ser humano até à sua divinização. É o que agora iremos fazer! Donde parte o homem? De que reino obscuro principia ele a sua caminhada? Que forças subreptícias o atrasam e, muitas vezes, o impedem de chegar à sua meta?
   Pela designação de afeções não se compreende um todo homogéneo, mas toda uma rede tecida através de convergências e oposições. Encontramos três afeções primárias, das quais todas as outras derivam:
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1º - Alegria: "a paixão pela qual a Alma passa a uma perfeição maior" (In Ética Parte III, Proposição XI, Escólio.

2º - Tristeza: "a paixão pela qual a Alma passa a uma perfeição menor" ( Cf. Ética Parte III, Proposição XI)

3º - "(...) o apetite não é senão a própria essência do homem (...) o desejo é o apetite de que se tem consciência" ( In Ética Parte III, Proposição IX, Escólio)

   Vê-se aqui que a tristeza "diminui ou reduz a capacidade de agir do homem" (In Ética Parte III, Proposição XXXVII), que, necessariamente, acabaria numa forma de passividade, mas a essência do homem é o desejo, o homem tende essencialmente para a ação, e esta não é mais do que a conservação do seu ser. Eis-nos chegados a uma bifurcação:

Ações: indicam a nossa potência

Paixões: indicam a nosso impotência

Concluímos, portanto:

a) Sofremos quando uma coisa externa limita a nossa atividade

b) "Pas de passion sans action" (In La Moral de Spinoza de Sylvain Zac. Vendòme: P.U.F., 1972, p 30).

Podemos, portanto, dizer, que existe uma relação dialógica entre as ações e as paixões, e, estas bloqueando os acessos do homem à virtude, impelem-no para uma passividade que é contrária à sua essência. Como superar então esta situação?

3.2. - Inadequação e passividade
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   É da essência do homem tender à conservação do seu ser, mas "o homem está sempre necessariamente sujeito às paixões" (In Ética Parte IV, Proposição IV, Corolário) e estas não são determinadas pela nossa potência com que nos esforçamos à nossa conservação, mas antes pela potência das causas externas. Um outro factor surge, pois,  responsável pelas nossas paixões: as causas externas, e, consequentemente, responsável pela tendência à passividade. Mas, a nossa alma, "enquanto tem ideias adequadas, é necessariamente ativa (...) mas enquanto tem ideias inadequadas é necessariamente passiva..." ( In Ética Parte III, Proposição I). Assim, a alma é tanto mais ativa quanto mais ideias adequadas tem e, simultaneamente, será tanto mais passiva quanto mais ideias inadequadas possua.
   Aqui prende-se uma questão já aflorada e que tem a ver com a relação alma-corpo: "se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa mesma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de pensar da nossa alma" (In Ética Parte III, Proposição XI). Vimos já que esta não é uma filosofia que conduza ao martírio do corpo para salvação da alma, mas pelo contrário, as potencialidades intrínsecas da alma têm de se desenvolver concomitantemente com a saúde do corpo - a um corpo são corresponde necessariamente uma razão apta à superação das paixões.

3.3. - Das Ideias Inadequadas aos fundamentos da Virtude

   Vemos, por conseguinte, que "la passion est symptôme d'une maladie de l?âme, dont la puissance de vivre est surmontée par la puissance des causes exterieures. L'homme, sous le régime de la passion, n'a plus à redouter l'enfer après sa mort, car il le porte en lui-même" (Sylvain Zac, Op. Cit. p 38). Ela tem efeitos a dois níveis: por um lado afasta-nos de nós próprios pela anulação da nossa parte essencial, por outro, ela dificulta uma sã sociabilidade (Acerca das paixões como fator impeditivo de um são relacionamento dos homens ver também as Proposições XXXII e XXXIV da Parte IV da Ética ), pois só a razão acaba favorecendo uma autêntica relacionação entre os homens, sendo a imagem de uma sociedade perfeita aquela que se funda na comunicação livre de ideias verdadeiras, só vivendo sobr a Razão os homens "concordam sempre necessariamente em natureza" (In Ética Parte IV, Proposição XXXV).
   Veremos à frente que é, então, procurando o que lhe é útil que o homem fundamenta a virtude que lhe é própria. Que se quer dizer com isto? Reduzindo o homem a esse desejo de busca do que lhe é útil, não enveredaremos por uma visão animalesca do homem suprimindo as suas necessidades à custa deste ou daquele bem material? De modo nenhum! Ora vejamos: pela Proposição XXIV da Parte IV fica estabelecido que o homem age por virtude, quando, como já se viu, tende à conservação do seu ser sob a direção da razão e segundo o princípio da utilidade, mas, o que é útil acima de tudo é o que conduz ao conhecimento, assim, o fundamento da virtude no homem não é algo que lhe seja exterior, mas antes é o esforço de compreender que o homem empreende o primeiro e único fundamento da virtude. E é bom tudo aquilo que nos possa ajudar a compreender, sendo o bem supremo da alma o conhecimento de Deus, portanto, a suprema virtude da alma é conhecer Deus.

4. - Superação das paixões - a Virtude

4.1. - A procura do útil e o aperfeiçoamento da Razão


   A virtude é, pois, potência, mas da inteligência. Mas, conseguirá esta última reduzir totalmente a paixão? E, em caso afirmativo, como o fará? Da seguinte forma: enquanto não somos dominados pelas afeções que são contrárias à nossa natureza, somos capazes de encadear as afeções do nosso corpo segundo a ordem da inteligência, ou seja, podemos durante esse período formular ideias claras e distintas; durante esse tempo conseguimos não ser afetados pelas más afeções, associando estas últimas a regras que as possam neutralizar, por exemplo, se alguém vê que busca demasiado a glória, pense no uso correto desta e não no seu abuso. Estamos, portanto, em pleno processo de busca daquilo que nos é útil, que mais não é do que a capacidade do homem de se elevar a Deus. Na Proposição XI de Parte V da Ética, Espinosa começa a infletir o seu raciocínio num sentido que mal se descortina, mas na Proposição XII, acerca do processo acima citado, já nos diz podermos juntar mais facilmente as imagens das coisas às imagens que se referem às coisas que compreendemos clara e distintamente, e, na Proposição XIV acaba dizendo que a alma pode fazer que todas as afeções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se refiram à ideia de Deus. Eis-nos, portanto, frente ao nó central do que temos vindo a dizer! De conceito em conceito, acabamos chegando a uma Razão  que aperfeiçoando se tenta libertar das paixões, mas, subtilmente, Espinosa  acaba dizendo-nos que este esforço do homem que se tenta compreender e si mesmo e às suas afeções de uma forma clara e distinta, desemboca necessariamente no amor a Deus, e é "este amor para com Deus que deve ocupar a alma acima de tudo" ( In Ética Parte V, Proposição XVI).

4.2. - A Suprema Beatitude

   A beatitude não pode ser outra coisa que o contentamento do espírito frente ao conhecimento intuitivo de Deus e aperfeiçoar a inteligência é conhecer a Deus, conhecer os atributos de Deus e as ações que resultam da necessidade da sua própria natureza. O fim do homem, que é conduzido pela Razão, é conceber-se adequadamente a si mesmo e a todas as coisas que caiam sob o seu entendimento. Nada lhe é mais útil que a aproximação a Deus, processo que em Espinosa nos parece também estar intimamente articulado com a constituição de uma sociedade fundada na cooperação (Cf. "Aos homens é-lhes útil, primeiro que tudo, estreitar as relações e unirem-se pelos vínculos que melhor podem fazer deles todos uma só coisa, e de uma maneira geral, é-lhes útil fazer aquilo que serve para consolidar as amizades." In Ética , Capº XII, p 92), já que o homem vivendo em estado natural, entregue às suas paixões, e, até mesmo, à sua solidão, vê-se impossibilitado de alcançar a virtude suprema. Esta virtude primeira é ainda ação, mas ação bem original, ela é contemplação, "compréhension de la structure intelligible des choses" (In Sylvain Zac, Op. Cit. p 47) - eis a ação elevada ao seu expoente máximo!
   A Ciência Intuitiva, ou 3º género do conhecimento, é, pois, a verdadeira responsável pelo alcançar da beatitude, " o esforço supremo da alma e a suprema virtude é compreender as coisas pelo 3º género de conhecimento" (In Ética Parte V, Proposição XXV) e quanto mais a alma está apta a compreender através deste género tanto mais o desejará fazer, assim, vemos que da Ciência Intuittiva vem a maior alegria que para a alma possa existir - a Virtude suprema da alma é conhecer a Deus!

5. - Estado Natural e Sociedade

5.1. - Egoísmo versus Altruísmo

   Impõem-se-nos agora algumas considerações acerca das conceções sócio-políticas de Espinosa, aliás, neste autor as problemáticas Ética e Política correm intimamente ligadas.
   Vemos, então, que inicialmente o homem vivendo em estado natural se encontrava impossibilitado de um acesso à Virtude, aí ele procura unicamente o útil de acordo com os seus estados passionais, o que leva os homens, obviamente, ao confronto permanente. É a selva! Mas "a Razão ensina a praticar a moralidade, a viver na tranquilidade e na paz interior, o que só é possível com a existência de um poder público" (In Espinosa, Bento de. Tratado Político. Lisboa: Editorial Estampa, 1977, Capítulo 2, parágrafo 21, p 28), sabemos, por conseguinte, que a formação de um pacto, do qual saia esse poder público, impões renúncias ao homem, mas ele agora passa a ter muito mais vantagens que desvantagens, e é ainda a Razão que ensina que entre dois males há que escolher o menor. Dentro do Estado o homem apercebe-se de que "não existe nenhuma coisa singular na Natureza que seja mais útil ao homem do que o homem que vive sob a direção da Razão" ( In Ética Parte IV, Proposição XXXV, Corolário I); sob as regras da Razão os homens são utilissimos aos homens, e, se cada um o que mais deseja é compreender, desejá-lo-á igualmente para os outros homens. A busca do útil que o homem empreende para si vai a par com o útil que deseja para os outros - egoísmo e altruísmo são, pois, duas faces de uma mesma medalha.
      Há ainda um pormenor a acrescentar: é que "o homem que é conduzido pela Razão é mais livre na cidade, onde vive segundo as leis comuns, do que na solidão onde obedece só a si mesmo"" (In Ética Parte IV, Proposição LXXIII).  Importa, assim, a Liberdade, já que o próprio das Ditaduras é a coação e esta é sempre ineficaz, pois o exemplo da coragem dos mártires acaba sempre produzindo  efeitos contrários àqueles que os tiranos desejariam obter, já que "É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um só (...)" ( In Tratado Político, Capítulo VI, Parágrafo 4, p 52).

5.2. - Uma palavra não dita - Solidariedade

   Explicitando a natureza da alma embrenhamo-nos depois em todo o mecanismo das afeções e daí passámos ao que lhe é oposto: a vida sob a regra da razão!, e desta, finalmente, a uma dada forma de organização social, onde o egoísmo humano se confunde com o altruísmo, e onde a Liberdade é condição fundamental para que se exista. À medida que discorremos em torno deste texto uma ideia parece atravessar subterrâneamente toda esta Ética - a de solidariedade. À barbárie de um Estado Natural , sucede uma sociedade livre onde o homem seja capaz de compreender cada vez mais, num intercâmbio salutar com os outros homens. Se a Virtude suprema é conhecer Deus intuitivamente, urge aperfeiçoarmo-nos para o conseguir e desejar que os outros homens o consigam igualmente.

6. - Outros conceitos fundamentais (Nota: Todas as Proposições citadas neste item dizem respeito à Parte I da Ética )

6.1. - Liberdade e Necessidade

   Uma das mais radicais críticas de Espinosa dirigi-se contra o Finalismo, onde os homens acabam pensando a Natureza agindo à sua semelhança "e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim" ( In Apêndice à Parte I da Ética p 80) Tal suposição não é mais do que um preconceito derivado do intelecto humano, aliás, supor que Deus atuaria em vista de um fim seria sempre admitir-lhe um certo grau de imperfeição, já que agindo para um fim "necessariamente quereria algo de que carecia " (In História da Filosofia Vol. VI de Nicola Abbagnano, p 206). A conceção finalista é, portanto, uma ficção, um produto da imaginação dos homens que imaginam o mundo criado por um Deus exterior para seu usufruto, aí sim a Liberdade adviria de uma indiferença de Deus, que atuaria a seu belo prazer, mas em Espinosa é bem diferente o conceito de Liberdade, ela é antes o reconhecimento de uma necessidade intrínseca à Natureza - a Necessidade é interior a Deus e, longe de suprimir a Liberdade, funda-a, longe de se excluírem, elas caminham paralelamente: a Liberdade não é mais um livre decreto mas uma livre Necessidade.
   Simultâneamente à crítica do Finalismo segue-se a crítica ao Antropomorfismo, que dota Deus de vontade e intelecto à imagem da compleição dos homens, o que é, obviamente, errado. Ora, se Deus tivesse intelecto este teria de ser distinto, ou melhor, se Deus tendo consciência de si (o que lhe daria uma certa personalidade) fundamentada na existência de um intelecto, este último nunca o poderia caracterizar em si e absolutamente, já que o intelecto (mesmo infinito) não passa de um modo ( Cf. Proposição XXI: " O entendimento em acto, quer ele seja finito quer infinito, assim como a vontade, a apetição, o amor, etc., devem ser referidos à Natureza Naturada e não à Natureza Naturante" ) . O conhecimento de si, não pertencendo à definição absoluta de Deus, é uma consequência de sua natureza, da sua necessidade e isto prende-se com a questão do Realismo de Espinosa.

6.2. - Causalidade

   No segundo diálogo (In "Court Traité", p 63) levantando-se a questão que as coisas criadas diretamente pelos atributos de Deus têm existência para toda a eternidade, não deixa de ser dito que também as outras (que requerem intermediários diversos) não deixam de ser produzidas por Deus imediatamente. Para além desta causa imanente, Deus é ainda aqui considerado como causa emanativa (Cf. o que anteriormente se disse acerca das influências neoplatónicas!) , causa livre, principal, primeira, geral, ele é ainda causa por si mesmo e não por acidente e ainda causa próxima. Mas, reconheça-se, a exposição do Tratado Breve não vem dotada de qualquer preocupação de demonstração nem de qualquer princípio de unidade sistemática, esta só surge na Ética, aí Deus apresenta-se nos seus diversos modos de causalidade: causa emanativa/ativa (Props. XVI, XVII), causa imanente (Prop. XVIII), causa por si, não por acidente (Prop. XVI, Corol, 2), causa principal (Prop. XVII), causa livre (Prop. XVII, Corol 2), causa primeira (Prop. XVII, Corol. 3), causa universal (Prop. XVI), causa próxima (Prop. XXVIII e seu Escólio)

6.3. - Unicidade e Panteísmo

   Parece-me, para concluir, e mantendo-me na Parte I da Ética de Espinosa que aborda a problemática da Substância , chamar a atenção para uma consequência que daqui deriva: a especificidade do seu Panteísmo.
   Tínhamos visto anteriormente que os atributos existiam em Deus não como componentes, mas como constituintes; por mais que se recue buscando a causa de uma ideia chegar-se-á sempre e só ao Pensamento, por mais que se recue buscando a causa de um corpo chegaremos sempre à Extensão - dois atributos irredutíveis! Vemos que Deus começa sendo uma certa unicidade, ou melhor, a unidade intransponível do diverso.
   Agora, baseando-nos em duas das Proposições de Ética Parte I, tentemos reconstituir o Panteísmo de Espinosa (Joaquim de Carvalho chama-lhe um Panteísmo de Razão - não de Intuição sensível -, já que, segundo ele, a identidade de Deus seria apenas com os géneros de seres inteligíveis, In Prefácio à Ética, p 28):

Proposição XIV: "Afora Deus, não pode ser dada nem ser concebida nenhuma Substância"

Proposição XV: "Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido"

Logo, imanência das coisas a Deus (Panteísmo), que arrasta Deus para uma causalidade imanente, ou antes, para que ele seja imanente às coisas. As coisas finitas estão em Deus como essências finitas e Deus está nas coisas finitas, já que estas são infinitas quanto à sua causa. Assim, teremos que a imanência das coisas a Deus é uma propriedade de sua essência, a imanência de Deus às coisas é uma propriedade do seu poder (Cf. o parágrafo deste artigo onde a questão das Propriedades é abordada!).

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© Victor Oliveira Mateus (Anos 70/ 80).
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domingo, 11 de fevereiro de 2018

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                           Espinosa: a problemática da Substância
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 1. -  A especificidade de uma posição e o seu contexto sócio-cultural.
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   Não acreditando numa interpretação mecanicista em que o homem, mais ou menos passivamente, acaba refletindo o meio circundante, inclino-me antes para uma relação dialógica homem-meio, onde, contudo, este poderá ter um papel importante. Assim, podemos ver, no tempo da formação intelectual de Espinosa, uma Holanda como um país buliçoso, onde o comércio e a liberdade caminhavam lado a lado, liberdade essa não só civil mas também religiosa. A tolerância religiosa ali praticada valia mesmo ao país o privilégio de se tornar em refúgio de adeptos das mais diversificadas crenças religiosas. Encruzilhada de tradições que o comércio rapidamente divulgava, porto de abrigo da heterodoxia religiosas, a liberdade deste estado encontra, se me é permitido dizer, no espinosismo a sua correspondente consciência filosófica.
   Sem entrar nas influências do cartesianismo no pensamento de Espinosa, assunto de que falarei mais à frente dada a sua importância, quero apenas focar aqui as diversas influências na formação intelectual de Espinosa: a) a Teologia tradicional; b) a Ciência da Natureza (ambas as vertentes fundir-se-ão no conceito de Substância); c) Uma componente neoplatónica (exº: o conceito de Deus como Causa Única, direta e necessária de tudo o que existe); d) Alguns filósofos da Renascença como Giordano Bruno (exº: anulação da distinção entre Natureza e Deus). Note-se, no entanto, que esta última temática não nasce com Giordano Bruno (Cf. La Philosophie de La Renaissance de Ernest Bloch. Paris: Petit Bib. Payot, p 37: "A noção de natura naturans foi-lhe fornecida pelos filósofos árabes da Idade Média"). Por tudo isto, se a filosofia de Espinosa não pode ser entendida fora de um contexto sócio-religioso, também o não pode se a libertarmos das preocupações teóricas que a precederam e a que está indelevelmente ligada.
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2.- Cartesianismo e Espinosismo
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   Se o problema para Descartes era acima de tudo o problema da verdade em ciência e as exposições filosóficas tinham um mero papel coadjuvante, em Espinosa o que importava era a saúde da alma , a liberdade verdadeira e a beatitude. Assim, a uma preocupação pela ciência contrapõe-se uma busca de cariz religioso, ético e político.
   A tese corrente nesta questão visa enquadrar o espinosismo no prolongamento lógico do cartesianismo, mas mais do que uma continuidade e subordinação a uma filosofia anterior, aquele aparece-nos antes como um conjunto de intuições primitivas com validade interna específica, que vai buscar ao cartesianismo "a conceção de uma verdade objetiva pura" (Cf Le Spinozisme de Victor Delbos, p 213). Uma validação clara e distinta de cariz cartesiano acaba por abolir as formas puramente imaginativas das crenças judaicas e as expressões irracionais do neoplatonismo teológico. Mas poder-se-á unicamente falar de continuidade na medida em que Descartes falando de Deus como uma Substância Infinita o coloca à parte das outras duas substâncias: a res extensa e a res cogitans, deixando contudo por resolver a articulação entre estas duas formas de substancialidade. A partir do momento em que Espinosa priva "as duas realidades da Natureza Naturante de propriedade ontológica de substâncias, para lhes conferir a de atributos" (Cf. Joaquim de Carvalho, in "Prefácio à Parte I da Ética de Espinosa", p 46) acedemos a um monismo substancialista que se pode traduzir por: Substância igual a Deus igual a Natureza.
   Mas, embora através da forma expositiva da Ética, possamos pensar que Espinosa parte da Substância para uma posterior identificação com Deus, a mais recente investigação inverte o vector desta temática, e a concepção de Natureza bem como a de Deus surge, pois, como a intuição primeira e fundamental. Assim, poderemos concluir dizendo que a característica fundamental da Substância espinosana " é a coincidência e a identidade da Natureza com Deus) (In "História da Filosofia Vol VI" de Nicola Abbagnano. Lisboa: Ed. Presença, p 208).
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3 - O Deus de Espinosa
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   3.1 - A Natureza Naturante: os atributos

...Sem entrar nas questões relacionadas com a forma e o método da Ética de Espinosa, que fogem um pouco ao âmbito deste texto, centremo-nos nas temáticas que nos parecem fundamentais, e, segundo uma ordem aqui estabelecida, entremos na problemática dos atributos, para posteriormente se poder falar - comparativamente - das propriedades da Substância. O que são, pois, os atributos?
   Encontramos nas primeiras formulações de Espinosa explicações como esta: " Mas de extensão que é uma substância, não se pode dizer que tenha partes..." (Cf. Court Traité, p 55), é exatamente isto que permite a Delbos (Cf. Victor Delbos, op. cit. p 43) falar de uma certa indiferenciação na génese destes conceitos. Mas, refinada toda uma concetualização, esta aparece já na Ética com uma certa consistência - os atributos passam a exprimir funções da Substância na produtividade dos modos, ou seja, na factualidade do Universo:

Proposição XIV: "Afora Deus não pode ser dada nem ser concebida nenhuma outra Substância."
Corolário I: Deus é único (...) na Natureza só existe uma Substância (...) Infinita.
Corolário II: A coisa extensa e a coisa pensante são (...) atributos de Deus...

Ou ainda:

Definição IV: "Por atributo entendo o que o intelecto percebe da Substância como constituindo a essência dela".

   Vincada esta evolução concetual, adivinha-se qual a relação existente entre a Substância e os seus atributos. Espinosa admite uma infinitude a atributos (exº: Proposição XI - "Deus, ou por outras palavras, a Substância, que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente"), atributos esses dos quais só conseguimos perceber dois: Extensão e Pensamento, que produzem respetivamente os corpos e as ideias. Mas, qual é então a relação que se estabelece entre Extensão e Pensamento por um lado, e Deus por outro?:

a) aqueles não podem ser anteriores a este, porque se pudessem ser-lhe-íam ontologicamente superiores;
b) Deus não é também um composto, já que uma parte componente teria de ser finita, logo, os atributos não são componentes mas antes constituintes.

   Concluindo: Deus existe por si, constituído por substâncias que existem por si, mas que não têm existência separada daquilo que constituem. Deus e atributos são simultâneos e a unidade destes últimos não é em nenhum atributo englobante mas na substância que constituem. Enfatizemos ainda o facto da Extensão ter aqui uma certa especificidade, como já disse anteriormente ela não é constituída por partes, ideia que horrorizava Espinosa. E, voltando a Descartes que considerava uma Extensão divisível, Espinosa opõe-lhe energicamente uma Extensão em si mesma infinita, e que, portanto, não poderia ser constituída por partes finitas, sendo, por conseguinte, indivisível.
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   3.2 - Atributos e Propriedades
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   Campare-se agora o que se viu acerca dos atributos com o que se entende por propriedades da Substância. Foi propositadamente que utilizei acima as Proposições XI e XIV da Ética . As propriedades não são mais do que adjetivações incompreensíveis sem os respetivos substantivos, quero dizer, Deus sem elas não seria verdadeiramente Deus.
   Na estrutura do Tratado Breve temos o capítulo III onde Deus é analisado como causa de tudo; o cap. IV que fala da ação necessária de Deus; no Cap. V aparece a segunda propriedade (Cf. Op. Cit. p 71: " O segundo atributo a que chamamos propriedade é a Providência, a qual não é para nós mais que a tendência que nós encontramos em toda a natureza (...) à conservação do ser.") e no Cap. VI fala-se da terceira propriedade, a predestinação divina. Ora, esta posição não é alterada na Ética, mas antes aprofundada, assim, Gueroult (In "Spinoza - Dieu, Ethique I" p 243) enunciando as propriedades, leva-nos à seguinte esquematização:

Propriedades da essência de Deus:
Prop. XI - Causa Sui
Props. XII e XIII - indivisibilidade
Prop. XIV - unicidade e infinitude

Já a Proposição XV: "Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido", tem a ver com o Panteísmo de que falaremos em breve, e ela opera, por assim dizer, a transição para um outro tipo de propriedades - as do poder de Deus, quer dizer, da Substância:

Proposição XVI - causa de todas as coisas
Prop. XVII - livre e toda poderosa
Prop. XVII - imanente
Props. XIX e XX - eterna
Corolário II da Proposição XX: "(...) Deus, ou, por outras palavras, todos os atributos de Deus, são imutáveis - imutabilidade.
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   3.3. - Natureza  Naturada: os modos
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   Tendo falado já de Deus-Causa ou Natureza Naturante, passo agora ao Deus-efeitos ou Natureza Naturada (Cf. Proposição XVI: " De necessidade da natureza divina devem resultar coisas infinitas em número infinito de modos, isto é, tudo o que pode cair sob um intelecto infinito."). Aquilo que se produz não é exterior a Deus, nem este é jamais causa afastada do produzido, dos modos, que, por sua vez, acabam introduzindo-se numa trilogia concetual: Substância, atributos e modos. E, quanto à diversidade desses mesmo modos, Espinosa já no "Tratado Breve dizia: "Quanto à Natureza Naturada, dividi-la-emos, em duas, uma universal e outra particular. A universal compõe-se de todos os modos que dependem imediatamente de Deus (...) A particular compõe-se de todas as coisas particulares que são causadas pelos modos universais" (Cf. Op. Cit. p 80). Esta formulação será depois aprofundada na Parte I da Ética, já que a parte universal da Natureza Naturada é subdividida em dois outros grupos:

A) Modos Infinitos - Imediatos: a.1.) Intelecto Infinito (Pensamento)
                                                 a.2.) Movimentos/ Repouso (Extensão)
                                Mediatos:  b)Face de todo o Universo (Ordem
                                                 total das almas eternas)

B) Modos Finitos ------------- Coisas particulares.


   Perante este quadro, a primeira exclamação que faço é a sua nítida influência neoplatónica. Vejam-se, por exemplo, os modos infinitos imediatos que servem, por assim dizer, de veios transmissores entre os modos seguintes e os atributos de Deus. Também em Plotino os seres intermédios eram necessários, e para o processo de emanação se dirigir do Uno à matéria (que em Plotino também não era um mal!) seriam precisas a Inteligência e a Alma (Cf. Op. Cit. p 80), igualmente as propriedades dos modos estão sujeitas a uma degradação conforme o grau hierárquico que ocupam, assim, a eternidade da coisa particular vêm-lhe não de si mesma, mas "ela só lhe pode ser atribuída sob uma forma derivada, enquanto é efeito necessário e incondicionado de uma causa existindo por si necessariamente, infinita e imutável" (In Martial Gueroult, Op. Cit. p 309).


©  Victor Oliveira Mateus ( Anos 70/ 80)
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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

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A Apresentação da Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 2, 2017/2018 publicitada também em Espanha. Ver aqui:  http://salamancartvaldia.es/not/171146/traducen-publican-versos-alfredo-perez-alencart-revista/
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A dita apresentação estará a cargo de António Carlos Cortez e ocorrerá no dia 10 de fevereiro, 16:00H, na Livraria Leituria, Rua Dona Estefânia, 123 A - Lisboa.
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