domingo, 17 de junho de 2018


                         Voltaste


Vejo, Senhor, que não me abandonaste.
Tenho vivido distraído e alheio
como um helianto a descair da haste,
mesmo quando sopeso o cálix cheio.

Oh! vida impessoal e sem diálogo,
chupando o fumo à trela com qualquer,
mirando as coisas como num catálogo
na saga dum perfume de mulher.

Mas hoje de novo à porta me bateste.
Há brasas sob as cinzas da fogueira
à espera da chama que acendeste

e eu por medo e cómodo apaguei.
Não sou o que viste a vez primeira.
Dar-me-ás de novo teu amor de Rei?


  Enes, José. Obra Poética. Ponta Delgada: Letras Lavadas edições, 2018, p 137.
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sábado, 16 de junho de 2018


        A Meio caminho


Quando à noite insomne saboreio
o amargor mortal dos meus limites,
por mim todo se estende o receio
do destino que sem eu saber me dites.

Aonde eu via meus dias já em meio
da estrada possível? Que me fites
vendo eu só que me vês; que em cheio
me toques de presença; que me grites

um eco mais fundo mais fundo de mim?
E eu não te saiba senão presença nua
sem figura, sem palavra, sem fim;

é como se eu fosse um cão lançado à rua
e sentisses saudades de um jardim
onde houvesse um rosto a amar ao sol e à lua!


  Enes, José. Obra Poética. Ponta Delgada: Letras Lavadas edições, 2018, p 90.
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sexta-feira, 15 de junho de 2018



seguras a memória por entre os dedos
para que nada se dissipe quando
demoradamente vens destapar-me a

boca-metáfora que diz todos os nomes
ardendo dentro contra a coisa extinta
o quintal dançando com o chão

levando em direcção aos frutos
enquanto já nada se levanta nem canta
depois    um besouro misteriosamente

escondido no caderno onde
tropeço sobre o teu nome
retinindo na jugular
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 Pedro, Mbate in "a gravata preta do corvo albino". Os crimes montanhosos. Maputo: Cavalo do Mar edições, 2018, p 63.
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quinta-feira, 14 de junho de 2018


              Duas Canções

                      1

Dar ar novo ao que velho parecia:
a plástica do amor. Ciciada ocupação,
mormente a que faz da minha pele
o teu estendal, com as tuas camisas
ao vento, e a que se enleia na tua juba
cor de corvo, que me ata os olhos ao acaso
e à disciplina, dado um novo ritmo
à respiração do madala.

Issch! Só pode chorar a cabeça
do velho quando te vê, macua duma figa!
Assim me pegou o amor,
de fora para dentro, e eis-me no Índico
- planalto de flamingos e desassossegados
lírios brancos engastados em rostos
de ébano. Agradeço ao deus,
em quem descreio, o descomposto,

e também ao amor
que sigilosamente me fortalece,
porque nem suposto existe o dentro
sem o fora. Issch! Só pode chorar
a cabeça do velho
quando te vê, macua duna figa!


                     2


Foi sempre o meu oposto.
Por isso em tudo me imita.
Peço-lhe que não, Digo-lhe
"o meu amor é incomparavel-
mente maior que o meu passado."

E ela que tem postigos para tudo
abre-me o postigo dos seios
abre-me o postigo dos ombros
abre-me o postigo do umbigo
abre-me o postigo dos lábios
abre-me portão do púbis...- perdão!

Fui sempre o seu oposto.
Por isso tenho chaves
até para o que se não espera.
Nesta rua sem perspectivas,
o seguinte jogo é que mantém
vivas as nossas tochas:
enfraquecida a chuva
roçamos um no outro
em carne viva até
adormecermos o atrito.

Ela quer dizer-me "o meu amor
é incomparavelmente maior
que o meu passado",
mas eu não deixo e mordo-lho
a orelha - sangra.


  Cabrita, António. in "o branco colarinho dos corvos". Os crimes montanhosos. Maputo: Cavalo do Mar edições, 2018, pp 42-44.
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quarta-feira, 13 de junho de 2018


          Pastagem com homens dentro


Os pastores são os depositários plenos dos planos de viagem,
adormecem a dor medem amarrados à estaca entre a erva e o esterco.
Eles abrem a manhã no estertor dos guizos
e dos chocalhos    essa a única música a rasgar o deserto
de bosta que desce até ao mar    mastigam com dentes de fome
a fome que cresce nas pastagens besuntam-se na humidade
que se desprende dos pastos e das palavras empestadas
e empastadas de mágoa e névoa: por elas
ou dentro delas se desemboca nas docas e canarias de San Diego
nos estaleiros navais de San Diego    dentro delas o corpo
se depreda nos prados da Califórnia.
Com navalhas por dentro e navios nos olhos eles assinam
assim o ponto no dorso da ilha e cavalgam as aves as nuvens
com elas fogem para oeste à frente da fome e do frio. Deste modo
pervertem as distâncias e investem os sonhos amealhados
no desespero de causa com que se espetam nas cabras
e nos cabritos.


  Bettencourt, Urbano. outros nomes outras guerras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2013, p 12.
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terça-feira, 12 de junho de 2018


                Os drogados


Cemitério dos Remédios, Inverno de noventa e seis.
Ela assobia a um cão que desaparece entre as flores secas.
Um campo de seringas e jornais estende-se à tua frente
até à linha do nevoeiro,
destroços
de uma batalha para sempre adiada.

Continuas a fitar os vultos que atravessam em silêncio a gradaria
coberta por uma lâmina de ferrugem.

Foi quando descobriste que as crianças
habitam
uma espécie de pesadelo contínuo.

São os rostos da cegueira.

As ervas estalam nos olhos de uma gárgula
e tu dizes tenho frio, não vês
que estes mortos nos vigiam.

Mas é pela mão dela que vais contornando os labirintos
entaipados,
que então dariam
- hoje não -
para algum lado.

São os poços invadidos pelos drogados.
Olhas o seu rosto, o olhar humedecido.

Repetes tenho sede, deve haver
um caminho para voltar.

Ela nunca te dirá uma palavra.

Há um cão
morto que fareja as mãos dela.


   Miguel Filipe Mochila in Tempo da impaciência. Lisboa: Artefacto, 2016, pp 57-58.
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domingo, 3 de junho de 2018


         Distância, Bibelôs, Páginas Brancas


Não é só já a casa que responde
exacta e banal com um silêncio sobre tudo,
no quarto em que ela se deitava sobre as coxas
na falda onde abrigava um gato mudo.

Também as coisas se desprendem ininterruptas
da pedante condição de utensílios:
são os postais diários de um futuro
onde toda a noite é consumível.

Não é só já a casa que em silêncio te devolve
distância, bibelôs, páginas brancas.
Na própria malha há da madrugada
correntes de ar, camas abertas, provas, nada.


  Mochila, Miguel Filipe. Tempo da impaciência. Lisboa: Artefacto, 2016, p 44.
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sexta-feira, 1 de junho de 2018

 
                               

                        *

Queria um portão de aço colorido, mas já não sei onde guardei as aguarelas. De resto, já devem ter secado com o tempo e os azuis são trémulos e baços.
  Como se fosse possível pintar a ferrugem das grades sobre os lagos de onde partiram as aves.
  Queria regressar ao meu país e ver os jogos coloridos numa qualquer sport tv que engane os sábados onde se esconde a alma de um músico maior.

                      *

(...)

                     *

O deserto sobe a rua, pedaços de sol incendeiam a pregação dos sábios que só levam a palavra a quem habita a areia.
   Muitos desistiram da procura de caminhos para a terra prometida, tal a força do vento e do atrito.
   Na rua onde moro faltam as pedras necessárias para a manhã subsistir.
   Bastava-me um café, um copo de água para enganar a luz.

                   *


   Ferra, António. AlterCações Climáticas. S/c.: S/ Editª, 2018.
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