terça-feira, 26 de maio de 2015

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XXIX

Atingiu o vale numa época em que tudo parecia perdido. Infiltrou-se depois cidade adentro com suas astúcias pegajosas. Construiu edifícios de altura infinita, areou campainhas e aldrabas para o endeusamento das bolsas e aperfeiçoou a volúpia dos homens, para assim cantarem hossanas à imagem de um absoluto vazio, onde a vida dos indefesos se poderia (finalmente) transacionar como bens desgarrados e dispensáveis. Atingiu o vale no perfeito lugar onde eu te havia esperado. Atingiu-o com aquela ostentação portentosa, com aquela beleza podre que só as coisas grávidas do seu fim conseguem delicadamente fingir nestas páginas de uma história que sempre continuará falando à surda distração dos homens.

  Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 44 (Prefácio: Miguel Real; Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano.
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XIX

Toda a noite o cão ladrou, ladrou. O eco entrava por mim adentro num misto de temor e raiva assassina. O arrastar da corrente aumentava também o sufoco e a impotência – minha e do cão. Quem andaria por entre as hortas? Que quereria o ladrão? Enrolei um cigarro junto à porta e ali me perdi entre baforadas e uma luz frouxa, enquanto os latidos passavam a uivos. Do chão saía um nevoeiro espesso, um ar gorduroso que se infiltrava na madeira do alpendre. Vi também as glicínias brancas e reluzentes, mas glicínias brancas e reluzentes não ficam bem neste poema gótico, portanto, opto por outra imagem: vi também umas campânulas roxas, que ondeavam ao sabor dos uivos. Os uivos não tinham descanso e ali perto havia um rugir sincopado a chapinhar no tanque. Do céu as nuvens pareciam querer cair sobre mim. Ah, tudo era negro e assustador! Depois, apaguei o cigarro e voltei para dentro. Dormias. Limpei pacientemente os óculos ao cós do pulôver, para finalmente sorrir: sem óculos tudo era diferente - e foi aqui que a realidade se tornou branca, tão branca que até me perguntaste por que não me voltava a deitar, porque não parava eu de inventar coisas.

  Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 33 ( Prefácio: Miguel Real; Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano)
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segunda-feira, 25 de maio de 2015





I

Atingiu o vale numa época em que o desacerto era coisa diária e corriqueira. Alastrou depois por entre as ervas e os animais. Apoderou-se também dos homens sentados à porta das tabernas, das mulheres que se agitavam – exaustas - em torno das selhas e de mim que te desenhava já num zelo de caçador derrotado, num torpor de animal a ver-se em toda a inutilidade que antecipadamente sabia. Atingiu o vale nas noites de inquietude com os relâmpagos a desenhar fins nesses horríficos monstros que eu fantasiava algures entre o fraquejar das lâmpadas e a tinta carcomida das paredes. Atingiu tudo, até os caminhos incontaminados e nítidos, até os umbrosos enigmas que sempre se haviam julgado protegidos. Nada escapava à sofreguidão com que devorava casas e terras. Apenas a mim resolveu deixar incólume, talvez para que assim houvesse, nesse seu meticuloso exercício de vingança, uma trémula sombra que tudo pudesse beber até aos ossos.  

 Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 11 ( Prefácio: Miguel Real;  Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano).
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sexta-feira, 22 de maio de 2015






Cinquenta poetas de 18 países ibero-americanos rendirán homenaje a Léon Felipe y Juan Ruiz Peña.
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El Encuentro de Poetas Iberoamericanos llega este año a su XVIII edición y se celebrará en el Teatro Liceo los días 7 y 8 de octubre, recordando al poeta hispano-mexicano León Felipe y el centenario de andaluz-salmantino Juan Ruiz Peña. Participarán poetas de Argentina, Paraguay, Cuba, Bolivia, Costa Rica, México, Uruguay, Colombia, Portugal, Ecuador, Brasil, Honduras, Perú, Venezuela, Chile, Sefarad (Israel), Guatemala y España. Italia está como país invitado. El destacado poeta paraguayo Jacobo Rauskin, Premio Nacional de Literatura de su país, recibirá la distinción de Huésped Distinguido de la Ciudad de Salamanca, conjuntamente con el poeta chileno Juan Cameron, reciente Premio Internacional de Poesía Pilar Fernández Labrador
El Teatro Liceo recibirá, los días 7 y 8 de octubre, la XVIII edición del consolidado Encuentro de Poetas Iberoamericanos coordinado por el poeta peruano-español Alfredo Pérez Alencart, profesor de la Universidad de Salamanca, y realizado en colaboración con la Fundación Salamanca Ciudad de Cultura y Saberes.
Si el año pasado el encuentro se dedicó al centenario del cubano-español Gastón Baquero, en esta oportunidad cincuenta poetas y músicos de dieciocho países iberoamericanos se reunirán para dar tributo y celebrar a uno de los grandes nombres de la poesía en lengua castellana, León Felipe, tan español como latinoamericano, como él mismo se sentía: “América es la patria de mi sangre./ He muerto… y he resucitado./ ¿Entendéis ahora?”. También se rescatará del olvido a un excelente poeta andaluz-salmantino, Juan Ruiz Peña, quien fuera profesor de la Universidad de Salamanca y cofundador de la Revista Álamo.
Algunos poetas participantes
Entre los poetas iberoamericanos que intervendrán o formarán parte de las antologías, están Jacobo Rauskin (Paraguay), Antonio Colinas (España), Juan Cameron (Chile), Victor Oliveira Mateus (Portugal), Ana María Rodas (Guatemala), Álvaro Alves de Faria (Brasil), Marisa Martínez Pérsico (Argentina), Álvaro Mata Guillé (Costa Rica), Paura Rodríguez Leytón (Bolivia), Minerva Margarita Villarreal (México), Jesús Hilario Tundidor (España), Laura Cracco (Venezuela), Salvador Madrid (Honduras), José Antonio Mazzotti (Perú), Margalit Matitiahu (Israel), Ramón Fernández Larrea (Cuba), Gaetano Longo (Italia), José Eduardo Degrazia (Brasil), Eduardo Espina (Uruguay), Paulo de Tarso Correia de Melo (Brasil), Ana Cecilia Blum (Ecuador), Marcelo Gatica (Chile), Miguel Aguilar Carrillo (México) o David Leite (Brasil).
Otros poetas españoles de diferentes regiones son: Luis Carnicero, Carlos Aganzo, José María Muñoz León, Jesús Fonseca y Fernando Gil Villa. También María Gª Díaz, Ángel de la Torre, Angélica Morales e Isabel González Gil, estos últimos, finalistas del Premio Internacional de Poesía Pilar Fernández Labrador, que anualmente se concede en Salamanca.
Por Salamanca estarán los poetas Ignacio González, María del Carmen Prada, José Amador Martín, Marian de Vicente y Sofía Montero, entre otros, junto al Grupo Musical “Concierto 3”, liderado por Ángel Luis Delgado.
Mención especial es la participación del músico chileno Héctor “Titín” Molina, quien celebrará sus tres décadas como artista interpretando poemas de autores de América y España.
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terça-feira, 19 de maio de 2015



Apresentações: a 23/5 em Lisboa e a 7/10 na Universidade de Salamanca

Em Lisboa: 23 de maio (sábado) pelas 16:00H

Local: "Saber Sabor & Arte" na Rua da Junqueira, 438 - Lisboa

Título: Negro Marfim

Texto Introdutório: de Miguel Real

Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano

Capa: Foto de Nuno Fernandes

Apresentação da Obra: por Ricardo Gil Soeiro

Leitura de Textos: por Julião Bernardes


Locais de venda do livro: em Lisboa - Livraria Pó dos Livros, Saber Sabor & Arte, Livraria Ferin (por encomenda), Livraria Bulhosa (por encomenda); no Porto - FNAC ; Braga - Livraria Centésima Página ou por encomendas feitas diretamente à Editora.
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   "  Desfolhado Jaz um Deus  "


Com teus órgãos genitais
também se brinca
sem pedir licença
a ninguém,
como se chocalhasses
ovos de ouro
num colchão de penas,
rei da tua
solidão.


Com os órgãos genitais
dos outros
também se brinca
mas é da praxe
mútuo consentir
a tesão.
De qualquer modo, tua
cabeça se enche
de pássaros e peixes,
suruma cresce depressa
entre teus dentes.
A meio do tomatal
dançam
diamantes. Acima
do céu, desfolhado
jaz um deus
mortal e
cego.


 
  Lemos, Virgílio de. A Dimensão do Desejo. Maputo: AMOLP, Associação Moçambicana da Língua Portuguesa, 2009, p 17.
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domingo, 17 de maio de 2015

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XII 3

  Sentada, nem sibila nem cartomante, nem tão-pouco de futuro
inquieta, tece cêntimos no colo frouxo, meneando os dedos
qual seta. Sentada, entre universitários passantes que a olham
com desdém, estacionando seus carros topo de gama, larga os
olhos vítreos naquele pouco que tem como de um grande fogo
a parca chama. Sentada, a cega altera-me o rumo do livro, sem
que disso se aperceba, imprime-lhe agora uma pausa romântica
e chã, mas eu não me importo serei moderno (e metafísico)
amanhã. Os universitários é que se divertem: gozam-lhe os
cabelos desgrenhados, a bata já sem bolsos, os chanatos por um
fio, enquanto eu altero de novo o livro, reatualizo o poema e
mando-os para o negro que os pariu.


   Mateus. Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 25 (Prefácio: Miguel Real; Inventário de inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano).
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" A morada da alma "


através dos sinuosos caminhos da vida
procuro-te na tranquilidade do olhar interior
um fragmento de lua nas alturas do céu dá-me
incertezas de manhã a manhã

a madrugada rubra adia a partida da esperança
na realidade não nos saudamos no coração
estou farto de falar sozinho
plantando a intifada no ribombar da chaga
quanto mais pressiono, quanto mais sussurro
quanto mais insisto mais se alarga
então onde estás?
não chegas não vens para casa
a alma que construímos
as suas portas abrem-se o chão une-se à chaga
ninguém bate ninguém entra
entretanto eu espero na escada


Hamama, Fatin. Kumpulan Puisi: Indonesia, Portugal, Malaysia - Antologia de Poéticas. Jakarta: Penerbit PT Gramedia Pustaka Utama, 2008, p 309 (Disusun Oleh/ Coordenação: Maria Emília Irmeler e Danny Susanto).
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sexta-feira, 15 de maio de 2015



" Indonésia, um dia "

um programa de rádio, matinal, os jornais sobre a mesa
não ouço e não leio. o toque do telefone
e as cartas
de seguida estilhaços de espelhos.
leio a agenda das moradas e os cartões de visita.

viver do nascer do sol até à obscuridade
e acordar no mundo do sonho.
tudo se transforma em apontamentos enfadonhos.
fragmentos de lixo ansiosos por desaparecerem.

a vida verdadeira é um sonho inocente.
tão curto e exasperante. ou sobressalto
estranho e ridículo.

mas o mundo onde vives
é uma consciência enganadora
que mais tarde se transformará num episódio
com pouco de interessante para contar.


Herliany, Dorothea Rosa. Kumpulan Puisi: Indonesia, Portugal, Malaysia - Antologia de Poéticas. Jakarta: Penerbit PT Gramedia Pustaka Utama, 2008, p 261 ( Disusun Oleh/ Coordenação: Maria Emília Irmler e Danny Susanto).
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quarta-feira, 13 de maio de 2015





      "  Eu  "


Se chegar o meu momento
Não quero que ninguém me seduza
Nem tu
Não preciso desses soluços
Sou um animal selvagem
Rejeitado do rebanho
Deixa a bala perfurar a minha pele
Vou defender-me e espernear
Corro levando a ferida e o veneno
Corro
Até não sentir dor
Escarnecendo
Eu ainda quero viver mil anos




    Anwar, Chairil. Kumpulan Puisi: Indonesia, Portugal, Malaysia - Antologia de Poéticas. Jakarta: Penerbit PT Gramedia Pustaka Utama, 2008, p 194 ( Disusun Oleh/ Coordenação: Maria Emília Irmler e Danny Susanto).
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segunda-feira, 11 de maio de 2015





    " A Magnólia "


A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor.


Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.


A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,


um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.


  Jorge, Luiza Neto. Kumpulan Puisi: Indonesia, Portugal, Malaysia - Antologia de Poéticas. Jakarta: Penerbit PT Gramedia Pustaka Utama, 2008, p 134 ( Disusun Oleh/ Coordenação: Maria Emília Irmler e Danny Susanto).
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domingo, 10 de maio de 2015





    " Creio nos Anjos "


Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;


Creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve antes,


Creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro.


ÁMEN


Correia, Natália. Kumpulan Puisi: Indonesia, Portugal, Malaysia - Antologia de Poéticas. Jakarta: Penerbit PT Gramedia Pustaka Utama, 2008, p 140 (Disusun Oleh/ Coordenação: Maria Emília Irmler, Danny Susanto).
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sexta-feira, 8 de maio de 2015

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Clara Janés foi eleita para a REAL ACADEMIA ESPANHOLA, passando a ocupar a Cadeira U deixada vaga por Eduardo García Enterría falecido em setembro de 2013. Janés passará a ser a sétima escritora numa ACADEMIA dominada predominantemente por homens.
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quarta-feira, 6 de maio de 2015





Neste inverno, num dia em que, cheio de gripe, observava do meu leito o mais desolado céu que se possa imaginar, apercebi-me de dois pássaros (que outra coisa poderia ser?) perseguindo-se um ao outro, num perfeito ritual amoroso sobre aquele fundo lúgubre. Um tal espetáculo acaba por nos reconciliar com a morte, e talvez mesmo com a vida.

   Cioran. Cahiers 1957 - 1972. Paris: Gallimard, 2002, p 34 (Tradução minha).
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terça-feira, 5 de maio de 2015

Foi eleita a Lista A dos Órgãos Associativos do P.E.N. Clube Português (lista única) para o triénio 2015-2017.
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É composta pelos seguintes membros:
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Direção :
Teresa Salema (Presidente)
Maria João Cantinho (Secretária)
Victor Oliveira Mateus (Tesoureiro)
António Carlos Cortez (Vogal)
Rita Taborda Duarte (Vogal);
José Viale Moutinho (Suplente) 
Ricardo Gil Soeiro (Suplente)
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Mesa da Assembleia Geral:
Paula Morão (Presidente)
Francisco Belard (1º Secretário)
Paula Mendes Coelho (2ª Secretária)
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Conselho Fiscal:
José Manuel Vasconcelos (Presidente)
António Graça de Abreu (Vogal)
Manuel de Queiroz (Vogal)
Isabel Cristina Pinto Mateus (Suplente)
João David Pinto Correia (Suplente).
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A lista teve como Delegado Mário de Carvalho e os seguintes sócios apoiantes: Ana Luísa Amaral, Cristina Carvalho, Ernesto Rodrigues, Fernando J.B. Martinho, Gastão Cruz, Hélia Correia, Inês Lourenço, Isabel Allegro de Magalhães, Jaime Rocha, João Barrento, José Pedro Serra, José Tolentino de Mendonça, Lídia Jorge, Luís Filipe Castro Mendes, Manuel Gusmão, Maria Velho da Costa, Nuno Crespo, Ricardo Marques, Rosa Maria Martelo, Teolinda Gersão, Teresa Martins Marques, Vítor Viçoso.
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segunda-feira, 4 de maio de 2015





      
              Diego Nogueira: a insustentável negritude do horizonte

 
     Acervo de pássaros em desuso, recente poemário de Diego Nogueira surge-nos, num primeiro momento, como um percurso marcado por uma certa negatividade ante o acontecer. É neste aqui onde somos chamados a estar que se desenrola não só o caminho de um dado eu-existencial, mas também as lucubrações do eu-poético. A melancolia e o desalento apresentam-se, por conseguinte, como traços fundamentais deste universo poemático: “E manhãs vigiam o sono / de uma alma enraizada numa precária geografia.” (p. 7); “Pouco a pouco vai engolindo a terra / sua física sem luz, seu estado de morte.” (p. 9); “Morre a cor de excessiva luz. / Meninos lamentam a tortura da carne / é o pecado a penetrar a raiz.” (p. 22). Neste solo eivado de uma melancolia por vezes sem remissão irrompem – em pouquíssimos casos – sinais de persistência: “É tarde e minhas mãos ainda trabalham / na tentativa de traçar o caminho / dos espíritos.” (p. 34) e de imprecação por uma certa positividade: “Poder cantar tuas águas / nas mãos reter toda a vida. / (…) Inaugurar gozo e caule / ser de jasmins, gerânios, túlipas.” (p. 5), no entanto, estes elementos agora focados possuem um carácter acidental e são aquilo que, por contraste, vinca  o carácter nostálgico e de ferida desta poética. Aliás, essa mesma ferida bem como a falha e a dor atravessam todo este livro de Diego Nogueira Silvério: “O salão é deserto e a lembrança sem pátria. / De nada ficou – um simples ruído nos porões / das árvores, uma inofensiva luz de um sol / que se retira.” (p. 38). A dor é, em Diego Nogueira, um espaço de silêncio cercado pela incomunicabilidade ou por um certo ruído que, apesar de comunicacional, mutila a autenticidade do dizer, aproximando assim este poeta de autores que tão bem abordaram estes temas, como por exemplo Marguerite Duras: “Elle vous demande la couleur de la mer. / Vous dites: Noire. / Elle répond que la mer n’est jamais noire, que vous devez vous tromper.” (in La Maladie de la Mort. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982, p. 46), ou Nathalie Sarraute “Ai, isto misturou-se tudo (…) Estou a ser castigado. Mais do que merecia. Por ter falhado. Faltou-me o pudor. Foi esse o meu erro (…) Eu descaí-me, foi isso… Tu não suportas. (…) Sou ridículo. Já não sei o que digo.” (in O Silêncio. Lisboa: Livros Cotovia, 2012, p. 14). Este hiato entre o eu e o outro, quer ao nível dos afectos quer ao nível do dizer, brota na escrita de Diego Nogueira nos mais singulares momentos: “Feliz do homem que sobe os degraus / da solidão e no último andar dessa serpente / encontra um lugar para expandir seu silêncio,” (p. 32); “Em tuas américas cresci / - e mesmo sendo uno - / morei entre dois continentes: / palavras.” (p. 35). É neste território, e consciente do que tudo nele é efémero e lacunar, que o poeta firma a ousadia da sua arte. O poema 4 do ciclo 15 Poemas sobre Rosas enfatiza o papel desse ser condenado a escutar e a burilar não só o que vivencia, mas sobretudo o que a memória lhe testemunha como Acervo de pássaros em desuso:

 

4

 
Rosa, isolada arquitectura

               tudo que padece na língua do poeta.

  E manhãs que vigiam o sono

               de uma alma enraizada numa precária geografia.

O que não renega a memória.

              Quem só negoceia com pássaros.

Trágico disfarce

              de se ter em múltiplas primaveras.

 

                             (p 7)

      A tragicidade e o desalento deste mercador de pássaros aparece-nos ainda em poemas como “Rouxinol” (p 19) e “Cigarra” (p 25); o horizonte deste almocreve de sentires e inquietações é, portanto, um “ horizonte de enferma claridade” (p 24), um alvo com sabor a precipício e onde até o próprio sol se afoga (cf. “O Poente”, p 41). Assim, à consternação e ao desalento de um mundo que aparece ao olhar do poeta como uma insuportável evidência de imperfeição e mácula acaba necessariamente por corresponder, neste livro, uma visão da poesia, e até do próprio poeta, como algo cuja “eternidade é o mar, sem fim próximo.” (p 25): “ (…) O peito do poeta/ é um cemitério onde o girassol sepulta seu/ último incêndio. “ (p 21). Esta correspondência aqui focada, bem como a doçura nostálgica da escrita e do território poético trilhado por Diego Nogueira Silvério, podem ser igualmente encontrados em muita da poesia portuguesa da última década, escutemos, por exemplo, um excerto do excelente O Que Dói às Aves de Alice Vieira:

 

  É preciso agora ter muito cuidado com as palavras

  pronunciá-las olhando sempre    demoradamente para o lado

  como se fossem os nomes escancarados

  de amantes clandestinos

         

  ouve:

 
    também tu morres agora todas as noites

  um pouco mais

 

  e em todos os lugares que te perderam

  é triste o som das águas.

 

            (cf. op. cit. pp 47 – 48 )

 Repare-se na intertextualidade entre as imagens de Alice Vieira e tudo o que temos vindo a dizer acerca de Acervo de pássaros em desuso e repare-se igualmente no que peremptoriamente se investe em certos referentes, como por exemplo “as águas”, conotadas, em ambos os poetas, com o devir e com uma cadência onde a tristeza e lassidão imperam. Todavia, são outras as influências desta poética: se de Dora Ferreira da Silva, Diego Nogueira não recolhe a irrupção de um certo desrespeito pela Lógica da Identidade e por um universo, por vezes mágico-animista características da obra desta autora acerca das quais escrevi já (cf. “Devir e Mesmidade na Poesia de Dora Ferreira da Silva”, in Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências. Nova série 2011, Nº 14), até porque a tecedura poética de Diego se encontra fortemente marcada por uma imagética de cariz judaico-cristão (exº: pecado, inferno, Lázaro, juízo final, etc.), no entanto, este poeta partilha com Dora Ferreira da Silva a tese da modernidade que vê o poeta como tecelão de palavras e imagens, é mesmo interessante analisar neste livro como a arquitectura do poema se funda inicialmente na palavra, que, antecipando-se ao conceito, edifica a consistência da imagem – apelo fulgurante ao som e a um ritmo sincopado a fazer-nos lembrar outros pássaros: os da música de Olivier Messiaen -, e só num momento segundo o sentido nos interpela e, mesmo assim, recusando a linearidade discursiva; a legibilidade das imagens desta poesia e, como dissemos já, a cognoscibilidade do seu sentido, são muitas vez conseguidas através de subtis associações paronímicas: “(…) nas cinzas que o inverno/ deixou para trás…” (p 8); “ Deste-me a um rio e eu me fiz águia” (p 35), muitas vezes as transfigurações semânticas no interior dos versos surgem com o intuito de fixar o leitor ao acto que leva a cabo, veja-se, por exemplo, o verso: “Sereno aquário em que padece tua ceda, tua vinha” (p 17), aqui quando se espera a concordância aquário/sede, é-se fustigado por uma concordância de outro tipo: aquário/prendimento/cerda, e o verso de imediato inflecte noutra direcção, pois não enuncia a “tua vinda”, mas sim a “tua vinha”, já que em ambos os casos é de um prenúncio do colher aquilo de que se fala. Mas em Dora Ferreira da Silva, passando esta ideia da tecedura poética, Diego Nogueira Silvério vai sobretudo encontrar a acutilância do olhar e o cuidado no dizer: pessoalmente não consegui ler Acervo de pássaros em desuso sem recordar o ciclo poemático doriano “Garças” (cf. “Poesia reunida”. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, pp 273 – 280) e o ciclo “Transparências” (cf. “Poemas da Estrangeira”. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1995, pp 38 – 40). Mas outra referência desta poesia é também João Cabral de Melo Neto com a sua opção por um dizer “enxuto” e “que no seu ínfimo traço,/ exibe a proa e não a água” (p 26), no entanto, apesar da preocupação com a forma do poema estar mais interligada com o intento comunicativo em Melo Neto do que no presente poemário, tal se deve à necessidade sentida de se operar aqui uma equilibrada miscigenação de vozes tão díspares como são as de Dora Ferreira da Silva e de João Cabral de Melo Neto, e tal ponto - que é simultaneamente de união de influências e de criação de uma voz própria e autónoma - encontra-o Diogo Nogueira naquilo que Rosa Maria Martelo diz ser intrínseco ao segundo poeta influenciador e que, agora, podemos generalizar aos três autores: “(…) escrever não é dissociável de ver – como se o poeta escrevesse porque vê e para ver e dar a ver.” (in “A Forma Informe”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 60).

     No périplo poético de Diego Nogueira, assumidamente nostálgico e sofrido, onde a “identidade é descendente” (p 10) e “desfalecendo na partida” (p 4) - embora por breves instantes marcado pela persistência “imóvel, em píncaros” (p 4) ou onde “nada interfere a um vigoroso voo” (p 12) - o que predomina é o simultaneamente delicado e vigoroso solo da incompletude, da falha, motivada sobretudo pela estrepitosa luta entre duas instâncias: a do eterno e a do efémero (cf. poema 10 do ciclo poemático 15 poemas sobre rosas e o ciclo Lêdo Ivo ) e é exactamente aqui que a memória vai tentando atenuar essa falha, essa iniludível incomunicabilidade (cf. a epígrafe do livro) que nem o cuidar do ver e do dizer consegue superar: “ Lado a lado, meus senhores dormem./ Vivemos separados pelo plano que/ traçado foi no dia do dilúvio” (cf. poema “Juízo Final”), e é essa mesma memória que, dia-a-dia, insiste em respigar e recompor gestos, imagens e afectos, isto é, voos que o tempo tem vindo a depositar nesse Acervo de pássaros em desuso. 

 

 

         Mateus, Victor Oliveira. In acervo de pássaros em desuso de Diego Nogueira Silvério. Fortaleza: Projeto Gráfico/ Editoração e Diagramação, 2015, pp  9 - 15.
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sexta-feira, 1 de maio de 2015




  " Santa Maria Madalena "  (1)


Não queiras que receba em
sofrimento. Não apareças nunca
nem me escolhas. É verdade
muitas vezes te procurei
quase sem conta
ao ardente entardecer desejei
teu lado.
Que tenho hoje para te oferecer?
O vento lá fora leva-te em
minha memória pelo escuro
penitente pl'abstracção da noite
antes de embarcares na remota
viagem.

À luz desta candeia
erra em recado o
fantasma
de onde vinha? Desde
o que se esconde e protege
na crueza do sexo -
  para o morrão da luz do
azeite me quiseste, vínculo que
estremece ao menor sopro
segreda verga o
junco na areia das dunas -
  a esta luz temo
a erva do verão que nasce
à minha porta.


(1) Óleo sobre cobre. Josefa de Óbidos. C. 1650



     Jorge, João Miguel Fernandes. Mirleos. Lisboa: Relógio D'Água, 2015, p 76.
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