sábado, 31 de maio de 2014








   Repeti então o que tinha escrito no Édito de 4 de Fevereiro. A tolerância devia ser universal. Os galileus podiam fazer o que lhes apetecesse entre os da sua espécie, embora não devessem perseguir-se mutuamente, muito menos aos helenistas (...).
- Agora quero pedir-vos que mantenhais a paz nas cidades. Se o não fizerdes, como primeiro magistrado disciplinar-vos-ei. Mas nada tendes a temer de mim como Pontifex Maximus (...). Pregai somente as palavras do Nazareno e poderemos viver uns com os outros. Mas é claro que vós não vos satisfazeis com essas palavras. Acrescentais coisas novas todos os dias. Debicais no Helenismo, apropriais-vos dos nossos dias santos, das nossas cerimónias, tudo em nome dum judeu que as não conhecia. Roubais-nos e rejeitais-nos e citais o cipriota arrogante que disse que fora da vossa fé não pode haver salvação! Será possível acreditar que milhares de gerações de homens, entre os quais Platão e Homero, estão perdidas porque não adoravam um judeu que se supõe ser deus? (...)
   Um bispo idoso pôs-se em pé. Usava as vestes simples dum homem santo e não as dum príncipe - Há um só Deus. Um só desde o começo dos tempos.
- Concordo. E pode tomar tantas formas quantas quiser, pois é omnipotente.
- O Deus Único tem uma só forma. - A voz do velho, embora fraca era firme.
(...) Fez-se uma pausa. Os bispos eram homens inteligentes e peritos em subtilezas e estavam perfeitamente conscientes de que eu lhes armara uma armadilha qualquer (...)
- Então - deixei a armadilha fechar-se - porque alterais a Lei de acordo com as vossas conveniências? Prevertestes de mil maneiras não só Moisés como o Nazareno, e fizeste-lo logo desde o dia em que o blasfemo Paulo de Tarso disse: "Cristo é o fim da Lei!" Vós não sois nem Hebreus nem Galileus mas oportunistas. (...) o bispo ancião que me tinha desafiado, cortou-me subitamente o passo. Era Maris de Calcedónia. Nunca vira tanta maldade num rosto humano.
- Estás amaldiçoado! - Quase me cuspiu na cara. O tribuno Escolar puxou da espada mas fiz-lhe sinal para se deixar ficar onde estava.
- Por ti talvez, mas não por Deus. - Fui brando, quase galileu.
- Apóstata! - Urrou-me a palavra.
Sorri: - Eu não. Tu é que és apóstata. Eu pratico o culto como os homens sempre o praticaram desde o princípio dos tempos. Tu é que abandonaste não só a filosofia como o próprio Deus.




   Vidal, Gore. Juliano. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 1990, pp 293 - 294.
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quinta-feira, 29 de maio de 2014



   Eu era um verdadeiro galileu naqueles anos de Macellum? Tem-se especulado muito acerca disso. Eu próprio me interrogo muitas vezes. A resposta nem para mim é clara. Durante muito tempo acreditei no que me ensinavam. Aceitei a tese ariana de que o Deus Único (cuja existência todos nós aceitamos) produziu misteriosamente uma espécie de filho que nasceu judeu, se tornou professor e acabou por ser executado pelo Estado por razões que nunca me foram inteiramente claras (...). Mas enquanto estudava a vida do Galileu, lia também Platão, que era muito mais do meu gosto (...). Não podia, por conseguinte, deixar de comparar a linguagem bárbara e arcaica de Mateus, Marcos, Lucas e João com a prosa clara de Platão.. Contudo, aceitava a lenda do Galileu como verdadeira. Afinal, era a religião da minha família (...). Por fim, o diácono acabou: gabei-lhe a voz.
- É o espírito que importa, não a voz - respondeu-me, agradado com o elogio. Então, não sei como, falou-se de Plotino. Para mim era apenas um nome. Para o diácono era o anátema. - Um pretenso filósofo do século passado. Um seguidor de Platão, ou disso se reivindicava. Um inimigo da Igreja, embora haja alguns cristãos bastante idiotas que o consideram grande. Viveu em Roma. Era um dos favoritos do imperador Gordiano. Escreveu seis livros praticamente ilegíveis, que o seu discípulo Porfírio editou.
- Porfírio? - Como se tivesse sido ontem, lembro-me de ouvir este nome pela primeira vez, sentado de frente para o diácono ossudo, num dos jardins de Macellum (...).
- Ainda pior que Plotino! Porfírio era de Tiro. Estudou em Atenas. Intitulava-se filósofo mas, evidentemente, era simplesmente um ateu. Atacou a Igreja em quinze volumes.
- Com que bases?
- Como posso saber? Nunca li os seus livros. Nenhum cristão deve lê-los. - Nisto o diácono foi firme.
- Mas certamente este Porfírio devia ter uma causa...
- O diabo possuiu-o. O que é causa suficiente.
   Naquele momento soube que tinha de ler Plotino e Porfírio (...).
   Para meu espanto, o bispo Jorge enviou-me imediatamente as obras de Plotino, bem como o ataque de Porfírio ao Cristianismo.(...) O que o bom Bispo não sabia era que os argumentos de Porfírio iriam ser a base da minha rejeição do Nazareno.


    Vidal, Gore. Juliano. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 1990, pp 41 - 42.
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quarta-feira, 28 de maio de 2014


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" Le vol voir " canção feita ( e interpretada ) por BENJAMIN BIOLAY após tomar conhecimento da vitória, em França, da Frente Nacional. À guisa de refrão, Biolay retoma e repete o 1º verso de "Chant des partisans", hino da Resistência Francesa: " Ami entends-tu le vol noir du corbeau sur la plaine" (Amigo, estás atento ao negro voo do corvo sobre a planície?).
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domingo, 25 de maio de 2014





- Eu? - faz a Barbie piscando a coroa - Eu nada. Por que é que perguntas? Eu só conheço mulherio, só trabalho com mulherio, só vejo mulherio. Nada acontece na minha vida senão mulherio.
- Podias usar o teu mulherio lá do Quartel para alguma coisa - disse o Joca para a Barbie. Levantou-se como se fosse atiçar o fogo, depois lembrou-se que naquela casa não havia lareira, e limitou-se a deitar mais coca-cola no copo de whisky. - Podias escrever um romance pimba qualquer daqueles em que elas encontram Homem e são muito felizes para sempre.
- Não me parece que tenha muita experiência nesse campo - gemeu a Barbie.
- A experiência é o que menos interessa. Além disso, não me digas que no harém não há nenhuma com uma história interessante que possas sacar.
- Não me parece - disse a Barbie. - Assim de repente, a Susana é casada há 25 anos com o mesmo marido, tem dois filhos feios como breu e visões, a Joana é divorciada porque descobriu o marido na cama com a melhor amiga, a Lúcia está tremida com o namorado porque de mês a mês ele se apaixona por outra pessoa que não ela e ela se apaixona por outra pessoa que não ele, mas não tem coragem de o deixar porque ele já é uma pessoa da família e atão farta-se de dizer que há várias maneiras de amarmos as pessoas (...) a Sandra dorme com um gajo que tem namorada e não deixa a namorada e ela tudo bem, e a Mariana teve dois filhos de um gajo que depois lhe deu um chuto... Continuo?
- É o pior que se pode fazer, ter um filho por causa de um homem - diz a Ana Sofia com ar pensativo. - Um gajo que depois de amanhã nos dá um chuto, ou como diriam as nossas avós, um chute, e até pode continuar a ser um amor de pessoa e a ir connosco aos ciclos de Fellini da Cinemateca mas o facto é que lhe deu um chute e mais à criança. Ter um filho por causa de um homem é mau, agora ter dois filhos por causa de um homem, é excesso de zelo. Ainda se fosse dois filhos por causa de dois homens, enfim, ainda haveria uma certa lógica matemática, embora continuasse a lógica da batata, agora repetir o mesmo CD sem ganhar sequer uma faixa de bónus, é muito mau. Ainda se fosse ter um filho por causa da mãezinha que está a morrer e gostava de passar a mão pelos cabelos de mais uma criança na família, ainda se percebia. Ou se fosse pelo pai, igualmente a morrer e que gostaria de ver um neto com o seu nome, José Manuel Xoninhas, para prolongar a nobre família Xoninhas, ainda se percebia. Agora por um homem...


  Fonseca, Catarina. O Clube das Encalhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp 136 - 138.
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quinta-feira, 22 de maio de 2014



- Não é estranho tu encontrares uma pessoa e assim que olhas para ela saberes imediatamente se são almas gémeas ou não?
- O quê?, como nas 'Asas do Desejo'? Tipo, os anjos são invisíveis para todos a não ser uns para os outros?
- Exactamente. Os anjos reconhecem-se entre a multidão.
- Não sei se é estranho mas pode ser um bocado perigoso. Isso não implica estares sempre com muita atenção à cata de anjos? Imagina que olhas para um anjo que por acaso está em dia não, e o riscas imediatamente da lista e afinal ele até era a tua alma gémea só que por acaso tinha-lhe corrido mal o dia e lhe tinha fugido a anjisse toda dos olhos?
- Não sei se a anjisse é assim tão transitória. Acho que nesse caso veria apenas um anjo de cabeça perdida. Tenho que pensar melhor nesta teoria. Mas hoje estava no supermercado e de repente olhei para um rapaz na fila e ele olhou para mim de volta.
- E viste-lhe as asas, suponho.
- Sim. Enormes. A saírem-lhe do blusão de ganga. Saí do supermercado e meio esperei que ele viesse a correr atrás de mim e continuei a esperar até que já ia no metro e continuava a esperar e quando cheguei a casa já estava casada com ele.
- Sabes qual é o nosso mal? É que vemos demasiados filmes. Aliás, o nosso mal é que nos prometeram um Amor Eterno desde pequeninas. E ninguém nos disse que era tão normal que isso acontecesse como ganhar a lotaria. Imagina a tua mãezinha a dizer-te, 'minha filha, aos 6 anos vais para a escola, aos 18 tiras a carta e aos 20 ganhas o totoloto'. É ridículo. Mas foi o que fizeram e continuam a fazer connosco.
- Pois. E depois chegamos a uma desgraçada idade em que vemos que isso não é verdade mas aí já é demasiado tarde para arrancar a fé.
- Consola-te. Quem tem fé tem tudo.


   Fonseca, Catarina. O Clube das Encalhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp 81 - 82.
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terça-feira, 20 de maio de 2014

- Deves ter sido mulher do atirador de facas do Circo Chen, numa outra vida.
- E tu a Amélia do padre Amaro.
- Ai que piada tão intelectual. Olha, sabes quem vem atrás de nós? aquela que mora lá ao pé de ti e tem quatro cães todos daquelas raças que estão sempre a aparecer no telejornal porque estraçalharam criancinhas no berço. Acho que escreve num jornal e tem um blog, e é lésbica ou já matou alguém, uma dessas duas, não sei qual. Preferias ser lésbica  ou ter morto alguém? E diz-se morto ou matado?
- Acho que é matado, mas soa tão mal.
- Lésbica também soa mal. Parece um insulto ou uma doença da fala. Não ter céu da boca, ou assim. Ela é lésbica, assim como, ela é ciosa. Eu preferia ser assassina porque soa melhor. Tem um toque feminino. Mas como é que ela matou alguém e anda por aqui airosamente no meio do povo na bicha, desculpa, fila, para a praia?
- Ai isso já não sei.(...)
- Ter um blog também soa mal.
- Pois. Parece qualquer coisa tipo tumor no cérebro ou qualquer doença daquelas que dão para processar as tabaqueiras na América. ' Ela tem um blog' como em, ' coitada, fumou que se desunhou desde os sete anos e meio e agora falta-lhe o pulmão do lado esquerdo'. Olha, segura-te que isto vai andar.
- Seguro-me porquê? Vai andar mas é a 20 à hora, isto é uma fila, não é a montanha-russa.
- Deixa-me concentrar na fila.
- Já reparaste que agora dizemos sempre fila, cheias de medinho que alguém ache que estamos a falar de um gay? Como se tu dissesses. "A bicha vai andar" e eu pensasse imediatamente que havia um gajo à minha frente ataviado de camisas de palmeiras preparado para se pôr a milhas com o meu telemóvel da 'Hello Kitty'.
- Está muito calor para filosofias, especialmente as semânticas.
- Afinal para que é que serve o tal semáforo a não ser para criar gays?
- Se não houvesse este semáforo, os gajos esgalhavam-se todos uns nos outros. Prefiro gays, sinceramente.
- Eu também. Apesar de tudo.
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   Fonseca, Catarina. O Clube das Encalhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp 8 - 10.
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domingo, 18 de maio de 2014

 
 
     Era assim que o homem que era o chefe e cheirava a colónia de pinheiro bravo achava que tudo tinha acontecido.(...) Antes de seguir para casa dera ordens para continuarem a interrogar a mulher e para não a deixarem dormir.(...)
     A cadeira em que ela estava sentada balançou. Ficaste com medo de que a miúda fosse contar ao padrasto, o cabrão do drogado não tem bom feitio, não ia gostar nada de saber que o cunhado lhe andava a comer a mulher. (...) A miúda queria fugir-vos pelas traseiras, mas vocês apanharam-na na cozinha, não foi? Aposto que nem tiveste tempo de vestir as cuecas. O homem da aliança grossa apertou com toda a força o pescoço da mulher até ela ficar com os olhos esbugalhados. Era tão mais fácil confessares, o que é que te custa, não custa nada, era um favor que fazias a todos, principalmente a ti, que nós temos tempo, falta-nos é paciência, vá lá, confessa, a miúda entrou e apanhou-te a foder com o teu irmão. (...). O homem da fivela com uma caveira deu um pontapé na barriga da mulher. A mulher dobrou-se e ele deu-lhe uma joelhada. A cabeça da mulher fez um barulho esquisito ao bater de encontro ao chão. Como se alguma coisa se tivesse partido lá dentro. Foi então que a mulher começou a falar.
 
 
  Cardoso, Dulce Maria. tudo são histórias de amor. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2014, pp 104 - 105.
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sexta-feira, 16 de maio de 2014


Até aos livros do doutor, só tivera nas mãos livros de aprender a ler. Nunca tinha visto livros sem desenhos, só com letras. Li uns bocadinhos ao acaso. Estranhei. Parecia-me um disparate utilizarem-se as palavras para contar coisas que não tinham acontecido. Para inventar. Para mentir. Não percebia o interesse de usar as letras sem ser para o que era importante e que não devia ser esquecido, por nós ou por outros. Mas o certo é que no dia seguinte me lembrava de forma mais precisa de algumas das mentiras que tinha lido do que da maior parte do que tinha acontecido na vida. O que li fez-me magicar quase tanto quanto magicara para coisas importantes como o assalto. Comecei a usar as mentiras como companhia e gostava mais delas do que das conversas com os outros presos. (...) Comecei a ler os livros do princípio até ao fim. Foi o doutor que me sugeriu para fazer assim. Nem isso sabia. (... ) Quando se lia da primeira à última página, as mentiras encaixavam-se umas nas outras e passavam a verdades tão autênticas, que não tinha como não me entregar a elas. E quando nos entregamos com esta fé a alguém ou a alguma coisa já não podemos matar-nos. Foi assim que os livros me salvaram.
 
 
  Cardoso, Dulce Maria. tudo são histórias de amor. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2014, p 48.
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domingo, 11 de maio de 2014

Em Setembro!



Poetas Ibéricos e da América Latina traduzidos para italiano e publicados por COMISO EDITORE.
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Coordenação da obra e tradução dos textos a cargo de MARCELA FILIPPI PLAZA.
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Juan Carlos Abril (España)
Andrea Victoria Álvarez (Venezuela)
Luz María Astudillo (Chile)
Ricardo Juan Benítez (Argentina)
José Cereijo (España)
Nélida Cañas (Argentina)
Olalla Castro (España)
Lily Chavez (Argentina)
Luis Chueca (Chile)
Rafa Correcher (España)
Ana María Diaz Velo (Argentina)
Andrés Fisher (Chile)
José Ángel García Caballero (España)
Myriam Iturra Ampuero (Chile)
Marta López Vilar (España)
Emilia Marcano Quijada (Venezuela)
Rita Martín (Cuba)
Silvia Montenegro (Argentina)
Ernesto Oliveira Castro (Cuba)
Victor Oliveira Mateus (Portugal)
Raúl Ortega Alfonso (Cuba)
Estela Port (Argentina)
Mara Romero (México)
Francisco Romano Pérez (Argentina)
Maria Isabel Saavedra (Argentina)
Enrique Solinas (Argentina)
Víctor Toledo (México)
Veronika Volkow (México)
Alexander Zanches (Panama)
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sábado, 10 de maio de 2014

 
 
   Não apresento qualquer desculpa por repetir que Gaia é um sistema evolucionário, em que qualquer espécie, incluindo os seres humanos, que persista em provocar mudanças de ambiente que reduzam a sobrevivência da sua descendência, está condenada à extinção. Ao utilzarmos maciçamente a terra para alimentar pessoas, e ao poluirmos o ar e a água, estamos a dificultar a capacidade de Gaia em regular o clima e a química da Terra, e, se continuarmos a fazê-lo, ficaremos em risco de extinção. Num certo sentido, envolvemo-nos numa guerra com Gaia, uma guerra que não temos qualquer esperança de ganhar. Tudo o que poderemos fazer é estabelecer a paz enquanto formos ainda fortes e não uma multidão enfraquecida.
   Como alguém que se considerava a si mesmo um Verde, fiquei alarmado com as provas recentes do prejuízo causado pelos pesticidas agrícolas. No local onde eu vivia, em Wiltshire, toda a terra em volta estava a ser esterilizada por empresários agrícolas jovens e entusiastas. Desaparecendo rapidamente estava a rica e diversificada paisagem de pequenos prados e sebes; a substituí-la surgiam campos enormes de monocultura de cevada e de colza, e todos eles estavam agora vedados com arame farpado. (...) Em dez curtos anos tudo mudou; as quintas passaram a ser trabalhadas por mão-de-obra contratada, trazida de fora, o preço da habitação aumentara muito além da capacidade de os aldeãos em poderem pagá-a, e a própria aldeia transformou-se numa colónia urbana, periférica, habitada  pela rica classe média. Esta dessacralização da paisagem rural, que está a ocorrer em todo o sul e no leste da Inglaterra, passou quase despercebida e foram poucos os que lamentaram a perda da biodiversidade e das comunidades das aldeias. (...) Os que sofreram foram as aves, os animais e as plantas silvestres do campo; os campos com sebes antigas, cheios de cor na Primavera e ressoando com os cantos das aves, eram agora uma extensão vazia de cereal de monocultura.
 
 
   Lovelock, James. A Vingança de Gaia. Lisboa: Gradiva, 2007, pp 158 - 159.
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Sabia também que o mundo natural acolheria bem os resíduos nucleares como um perfeito guardião contra os especuladores ambiciosos, e que qualquer que fosse o ligeiro prejuízo que eles pudessem representar seria um preço pequeno a pagar. Uma das coisas espantosas dos lugares fortemente contaminados pelos núcleos radioactivos é a riqueza da vida selvagem desses lugares. Isto é verdade para os terrenos à volta de Chernobyl, para os locais de ensaios de bombas no Pacífico e para as áreas perto das instalações de armas nucleares da Segunda Guerra Mundial, no rio Savannah, nos Estados Unidos. As plantas e os animais selvagens não se aperceberam de que a radiação fosse perigosa, e qualquer ligeira redução do tempo de vida que possa ter causado é muito menos arriscada do que a presença de pessoas e dos seus animais domésticos. É fácil esquecer que presentemente somos tão numerosos, que quase tudo o que se faça a mais em termos de agricultura, floresta e construção de casas é prejudicial à vida selvagem e a  Gaia. A preferência da vida selvagem pelos locais de resíduos nucleares sugere que os melhores locais para a sua deposição são as florestas tropicais e outros habitats que necessitem de um guardião de confiança contra a sua destruição por ávidos agricultores e produtores.
    Uma vantagem notável do nuclear sobre a energia de combustíveis fósseis é a facilidade em lidar com os resíduos que produz. A queima de combustíveis fósseis produz vinte e sete mil milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano (...). A mesma quantidade de energia produzida a partir de reacções de fissão nuclear daria origem a resíduos dois milhões de vezes menores e ocupariam dezasseis metros cúbicos. O resíduo de dióxido de carbono é invisível, mas tão mortal que se as suas emissões não forem detectadas matarão quase toda a gente. Os resíduos nucleares enterrados em poços nos locais de produção não constituem qualquer ameaça para Gaia e só são perigosos para aqueles que imprudentemente se expõem às suas radiações. (...) Acho triste, mas demasiado humano, que haja inúmeras burocracias preocupadas com os resíduos nucleares, organizações complexas dedicadas a desactivar as centrais nucleares, mas nada que se compare a lidar com esse resíduo maligno que é o dióxido de carbono.
 
 
  Lovelock, James. A Vingança de Gaia. Lisboa: Gradiva, 2007, pp 134 - 135.
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quarta-feira, 7 de maio de 2014




           MARIA TERESA HORTA: A LUMINOSA INSURREIÇÃO DA EROS

 ( Pode também ser lido AQUI:  http://zonadapalavra.wordpress.com/  )
  
 
 
   No âmbito da poesia portuguesa, irrompem – no início dos anos sessenta - dois movimentos cujos pressupostos teórico-estilísticos colocariam em questão não só os modos vigentes de conceber o fazer poético, mas igualmente a relação deste com o todo social. Para esses dois grupos de autores – o Poesia 61 e o Experimentalismo - surgem como marcos originários e fundantes a preocupação com a linguagem, a recusa da discursividade e do sentimentalismo, assim como a rejeição da tese da eficácia do discurso poético. Este enfatizar do universo linguístico e o privilegiar da materialidade do texto conduz, nestes dois grupos de poetas, a uma substantivação da poesia naquilo que a demarca, ora de um subjectivismo impressionista ora de concepções que subalternizam o poético em virtude de aspectos normativos extrínsecos à própria poesia. Todavia, e no que diz respeito à Poesia 61, estes autores logo se demarcam de toda e qualquer estridência formalista, enveredando antes por um dizer que assume a palavra na sua relação dialógica com a História que dela é solo vitalizador e terra de acolhimento.

     A poesia de Maria Teresa Horta é, por conseguinte, uma emanação necessária do referido percurso: escrita fortemente centrada no feminino, a mulher de que insiste em falar não é jamais uma construção abstracta que uma inócua prestidigitação discursiva coloque levitando num qualquer mundo fantasiado. A mulher que transpassa o dizer poético de Maria Teresa Horta é um ser real e concreto intimamente relacionado com o seu contexto histórico, cultural e sociopolítico; ela é, e ao invés do que vinha sendo veiculado pela tradição poética, uma mulher activa que ousa escolher, e construir, o seu destino e que por tal assunção se pretende responsável, este posicionamento aparece-nos logo no livro Tatuagem (1961) em Poema para a noite:

 

Beijo-vos

prolongada de gerações

em silêncio

 

é para nós agora

a vez

das planícies que erguemos

pelas ancas

na curva onde o hálito

é ansiedade no homem

 

   Este facto da mulher se apresentar como estruturalmente activa, pode, no entanto, parecer contraditado por poemas como Cativa e Crueldade ambos do livro Candelabro (1964), Chicote de Jardim de Inverno (1966) e ainda muitos outros como, por exemplo, Poema de Muito Amor de Minha Senhora de Mim (1971), no entanto, urge dizer que, se em muitos poemas o arrebatamento, o “cativeiro” e a veemência das invocações atingem uma estridência iniludível, isso não anula o facto de tais atitudes e comportamentos terem a sua raiz em deliberações e decisões que partiram exclusivamente da própria mulher. No entanto, este primado do feminino, intimamente relacionado com um léxico e com um processo de metaforização alicerçados, muitas vezes, no anatómico e no bio-fisiológico (veja-se, por exemplo, o poema A Doença do livro Educação Sentimental, 1975, onde são referidas, em analogia com elementos do mundo natural, partes do corpo e mesmo secreções), pode trazer o perigo de visões reducionistas, onde a mulher se veja circunscrita ao erótico ou ao intento de suplantar o estatuto do masculino. Todavia, são bem mais abrangentes as inquietações desta escrita: a mulher, enquanto ser individual, vai sempre, ao longo da poesia de Maria Teresa Horta, mantendo uma dialogal relação com as outras mulheres e com determinados valores ético-morais, observe-se isso em Mulheres de Abril (1977), no poema Em Liberdade:

 

Em Liberdade

somos

nós mulheres o cimo

da raiz

(…)

No ventre das mulheres

o sossego é fértil

 

em nós cresce o amor

 

Vemos, por conseguinte, que a procura de uma comunhão amorosa, se, por vezes, nos aparece como mais extensa e mais intensa quando dirigida ao Outro-amado, não é menos verdade que ela a tal não se limita, mas acaba alcançando um carácter abrangente e englobante: em Minha Mãe Meu Amor (1986) o vector do amor encontra-se apontado à mãe:

 

 

Respirar-te o sangue

bebendo-te o perfil

 

bordando-te o perfil

(…)

a ponto-pé-de afago

 

minha mãe

meu amor

 

mas, em Cronista Não é Recado (1967), já é para o seu país que a poeta aponta esse mesmo vector, como no poema Peso de Campo:

 

Varejar país doente

é cultivar no silêncio

um fruto que não de medo

 

Se a isto confirmarmos que na poesia de Maria Teresa Horta ao mesmo tempo que pululam os vocábulos (até então banidos da lírica amorosa) ligados ao corpo, à sexualidade e ao desejo, outros também se levantam, apesar de aparentemente emudecidos pelos anteriores: “a chuva crucifica”, “catedrais de nós” In poema Reflexo de Cidadelas Submersas (1961); “no retábulo místico dum templo”  e “vela cansada/ e gasta numa missa” In Candelabro (1964); “Lembro-me do paraíso (…)/ E havia também a maçã/ do teu útero/ sítio: da tentação no início” In Minha Senhora de Mim (1986); “ Abro-te as portas querendo/ a tua luz (…)/ Desejo o teu incêndio/ queimando a minha alma” In Inquietude (2006), etc. São, como vemos, inúmeros os poemas onde se tangencia (exemplo: o tema da Visitação - “ A parte que é/anjo/do teu corpo// e me visita/ de madrugada” In Anjos,1983) ou mesmo se enuncia toda uma imagética de índole religiosa. Assim, este amor que dizíamos não exclusivo do Outro-amado, mas que se propaga agora pelo Todo que envolve a poeta, e do qual ela fala, surge-nos geminado com o sagrado, não aquele sagrado das religiões tradicionais e institucionalizadas, mas antes uma sacralidade antiquíssima a fazer-nos lembrar esse campo onde dialogam e se interpenetram não só as teses de Empédocles, mas também os ritos onde o dizer, o corpo e um dado solo originário se firmam:

 

 

  Meu claustro de musgo

e de fermento

onde o ferro se perde de humidade

 

Onde o tempo se inventa

noutro tempo

feito de musgo – framboesa

e carne

 

    Laranja In Educação Sentimental (1975)

 

   Esta partilha amorosa, esparsa pelos territórios já referidos, e que se diz, na poesia de Maria Teresa Horta, através dos mais diferentes vocábulos (altar, anjo, cilício, grinaldas…), desemboca necessariamente na mais nítida e contundente religiosidade pagã, que mais não é do que húmus e fermento de um amor – em autenticidade - pela escrita e pelo corpo do texto, ou melhor: retira-se assim esta poesia, sem a privar da sua autonomia estética, das leituras exclusivistas baseadas no erótico, no ético-moral e no ideológico, e recolocamo-la num solo essencial e eminentemente ontológico, do qual todos os outros olhares são vertentes e derivações, até porque o amor primeiro não é mais do que o amor pela Palavra: o Amor, que ante a poeta se Abre e É, é acima de tudo Poema:

 

Deixo que venha

se aproxime ao de leve

pé ante pé ao meu ouvido

 

Enquanto no peito o coração

estremece

e se apressa no sangue enfebrecido

(…)

Do poema que cresce e o papel absorve

verso a verso primeiro

em cada desabrigo

(…)

Sinto-o quando chega no arrepio

da pele     na vertigem selada

do pulso recolhido

 

 

À medida que escrevo

e o entorno no sonho

o dispo sem pressa e o deito comigo

 

    Poema In Inquietude (2006)

 

    Mesmo nos livros onde a nostalgia e um certo desalento campeiam, como por exemplo Destino (1997), o arrojo da entrega ao Outro-amado nunca é anulado (cf. poema Ponto de Pérola), nem tão-pouco o saber que o Amor, essa divindade simultaneamente luminosa e insurrecta, simultaneamente intensa e abrangente, jamais deixará de se impor à poeta com a segura convicção de que “O lugar destes sítios/ chama-se destino”.

    Diremos, pois, que se o ato amoroso, quando partilhado com o Outro-amado, é pleno, excessivo e gratificante, não é menos verdade que, quando se engrandece e propaga, incorpora armadilhas e desvios tornando-se numa urdidura da alma (cf. poema Versos In Inquietude ), que mais não é do que a própria Poesia a dizer-se na sua caligrafia cruel. Ele é, nesta poesia, inclusivo mas também ramiforme, ele é despojamento mas também vocação própria de plenitude, dito de outra forma: o ato amoroso é aquele que, ultrapassando uma sensualidade gratuita, infringe assumidamente o principio da não-contradição, pois nele o eu-poético mantém a sua individualidade, ao mesmo tempo que, partilhando o amor do Outro, se acrescenta, isto é, no topo da partilha alcança-se um solo fusional onde o eu é simultaneamente um si-próprio e ser-através-do-Outro. Esta a mestria desta paisagem poética, aliás, a imagem da urdidura, e da tecelã, aparece com insistência metamorfoseada ao longo de toda a obra poética de Maria Teresa Horta em versos que referem atos de prender, fazer/refazer, embrulhar, entrançar, desatar, etc. Esta vasta tecedura poética diz-se, inconfundivelmente, através de uma voz original e una, que, no entanto, nessa unicidade integrou e fez seu todo um vasto conhecimento dos poetas que a antecederam, pois aqui podemos vislumbrar marcas da lírica medieval (cf. poema Minha senhora de mim, mas também o Verde-Pinho do livro Só de Amor, 1999, a fazer lembrar-nos a Cantiga de D. Dinis  Ai flores, ai flores de verde pino); podemos encontrar um subtil diálogo com a lírica camoniana (comparar o último verso de Delírio do livro Só de Amor, 1999, com o último verso do soneto de Camões Sete anos de Pastor); podemos até recordar-nos de Soror Violante do Céu ou das ultra-românticas ao aproximarmo-nos das repetições, do esquema rimático e da contradição no fecho do poema Carmim de Inquietude (2006). Nada é deixado ao acaso na poesia de Maria Teresa Horta: a um intento globalizador terá de corresponder uma técnica que de tudo se assenhoreia e tudo incorpora, para que mais autênticas sejam a luminosidade e a insurreição com que Eros desde os primórdios vem abraçando o mundo.

 

            

 

 

Bibliografia:

 

- Gastão, Ana Marques. Maria Teresa Horta: corpo solar e lunar no corpo do texto. In: Revista de Cultura Agulha Nº 46. Fortaleza, São Paulo: Julho de 2005.

- Gubar, Susan. A “Página em branco” e questões acerca da criatividade feminina. Trad. Francesca Rayner. In Ana Gabriela Macedo, org., Género, Identidade e Desejo: Antologia crítica do feminismo contemporâneo. Lisboa: Livros Cotovia, 2002, 97-124.

- Gusmão, Manuel. Tatuagem & Palimpsesto: da poesia em alguns poetas e poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

- Horta, Maria Teresa. Antologia Poética. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.

- Horta, Maria Teresa. Destino. Lisboa: Livros Quetzal, 1997.

- Horta, Maria Teresa. Inquietude. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006.

- Horta, Maria Teresa. Poesia Reunida. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009.

- Horta, Maria Teresa. As Palavras do Corpo, Antologia de Poesia Erótica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012.

- Klobucka, Anna M. Poetas, Feminino Plural (Sobre Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge). In: O Formato Mulher, A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editora, 2009.

- Martins, Manuel Frias. 10 anos de poesia em Portugal, 1974 – 1984: leitura de uma década. Lisboa: Editorial Caminho, 1986.


  Mateus, Victor Oliveira. " Maria Teresa Horta - A luminosa insurreição de Eros " in " Cintilações da Sombra III ". Fafe: Editora Labirinto, 2015, pp 81 - 88.
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