terça-feira, 29 de dezembro de 2015



   " O silêncio dentro de mim" (página 23) podia ser o mote de Negro Marfim, de Victor Oliveira Mateus. É ele, a sua inquietação e o seu fundo sem fundo, que fazem ressaltar a visão "negra" mas brilhante, resplandecente, do texto do autor, um texto impiedoso e desumano, próprio de uma época que substituiu o silêncio e o desassossego da existência pelo ruído superficial e pela claridade estonteante do dia-a-adia.
   Ler este livro é fazer prova de temeridade, de suportar às avessas o peso da vida, não pelo que se passa nos jornais, nos cafés e nos bares, mas pelo que se passa no poço inconsciente da nossa escuridão quando se apagam as telas e os ecrãs e a vida, a verdadeira vida, começa dentro de nós.
   Brilhante prosa, brilhante poesia, brilhante texto, brilhante livro, ainda que tecido de pesar e sofrimento, isto é, de negridão, texto como apenas Raul Brandão, Cioran ou Kierkegaard conseguiriam escrever.


  Miguel Real in Negro Marfim de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 7.
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sábado, 26 de dezembro de 2015


        Recensão da Profª Cecília Barreira da Universidade Nova de Lisboa ao livro Negro Marfim.


   Desde muito cedo que sou leitora de trabalhos e poesias de Victor Oliveira Mateus. É um belíssimo tradutor de livros clássicos, e de alguns poetas contemporâneos. A sua poesia encontra-se espraiada por imensas antologias.
   O autor do livro Negro Marfim não publica muito, o que é uma vantagem nesta esquizofrenia de dar à estampa um livro por ano. Daí, a linguagem muito depurada e um conhecimento da língua muito interessante. Pode dizer-se, desde já, que Portugal tem imensos poetas. Mas há poetas e Poetas. E não é o número de livros publicados que delineia a diferença.
   A poesia deste autor remete sempre para temas filosóficos, ou não fosse ele licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica.
   O presente livro é constituído por vinte e nove excertos de prosa poética, um posfácio de Ronaldo Cagiano e um curto prefácio de Miguel Real. Este último remete os textos de Victor para Raúl Brandão, Cioran ou Kierkegaard. Já Ronaldo Cagiano nos remete também para essa pulsão filosófica.
   Victor Oliveira Mateus é um homem que pugna pelas grandes causas da humanidade, nunca se esquecendo dos autores clássicos e do inebriante caos que é a sociedade dos dias de hoje, desnorteada e com uma "dor intraduzível das mulheres, pedaços de brinquedos já sem dono, bocadinhos de espelhos, rombas caixas de música, pássaros desasados, barcos naufragados com pedaços de vísceras na proa" (página 30).
   O autor oferece também um vasto conhecimento de geografias humanas, de história e até de sociologia. Sendo a minha formação básica em História, fico especialmente sensível a este entrosamento entre cidades e lugares históricos com o discernimento da filosofia.
     
"Atingiu-o com aquela ostentação portentosa, com
aquela beleza podre que só as coisas grávidas do
seu fim conseguem delicadamente fingir, nestas pá-
ginas de uma história que sempre continuará fa-
lando à surda distracção dos homens." (página 44)

   Victor Oliveira Mateus é um homem da cidade, mas não compactua com ela: fala de jogos perversos, de claustrofobias, de espectros, de mesas, de desistências. É um poeta  que nunca se retira de um olhar profundamente crítico à sociedade actual. De si próprio refere-se como "um objecto sem forma definida que (...) acabará à espera numa qualquer secção de perdidos e achados" (página 20).
   Mas o poeta está atento, sempre à espera, mas atento. O poeta sabe que este não é um livro de amor "(...) penso também em ti, mas tu terás de ficar para outra noite, ou outro dia, já que não podes entrar neste tipo de poesia" (página 21).
   E realmente o prometido é devido: Negro Marfim é árido no que diz respeito ao amor ou aos afectos, mas profundamente crítico em relação às memórias presentes e passadas, a entropia da realidade, os pequenos traços humanos a que ninguém liga, as presenças e as ausências num mundo indisponível para um olhar para dentro. E Negro Marfim é isso mesmo: um olhar filosófico de dentro para fora e de fora para dentro. A cidade sempre presente, até com o cão que ladra. Às vezes lembra-me o grande Cesário, que adorava a cidade disfarçando o amor com ironia e erotismo.
  A geração de Victor Oliveira Mateus produziu grandes escritores e poetas. Nem a todos tem sido reconhecido o valor, a beleza estética, o lirismo ou a ironia. O autor, há alguns anos, passou um período onde não era muito notado. Mas, como todos os grandes poetas e romancistas, hojé é um nome sólido na literatura portuguesa contemporânea. E, assim, o livro de prosa poética Negro Marfim é mais uma achega para a aquisição, na cultura portuguesa, de um lirismo sem amores e que se pulsiona para um olhar filosófico sobre a cidade. A não esquecer, a finitude, afinal o grande dilema humano,


Cecília Barreira in Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 16 - 2º Semestre 2015. Sintra: Zéfiro Edições, 2015, pp 246 - 247.
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015


                             "  O Sebastianismo e Sampaio Bruno  "

1. Em A Ideia de Deus (1902), com elementos de fundo providencialismo messiânico em O Encoberto (1904) e no livro póstumo Os Cavaleiros do Amor, Sampaio Bruno defende quatro teses:
1.1. Uma visão heterodoxa de Deus: este não se constitui como suma perfeição moral e bem supremo a não ser como ideia e desejo na mente do Homem europeu, contaminado pela propaganda de séculos da Igreja Católica; Deus é, em si, imperfeito, sofrendo um processo de Queda, de Divisão e Cisão geradora de movimento, de matéria e de mundo e, portanto, é igualmente o criador e o responsável pela existência do Mal;
1.2. O Homem, produto dessa Queda divina, é ele próprio instrumento de regeneração dos seres e da redenção de Deus;
1.3. Deus não se revelou ao Homem de uma vez por todas como monumento bíblico; diferentemente, o Homem vai progressivamente revelando Deus a si próprio através de uma ascensão do espírito fraternal: "O fim do homem neste mundo é libertar-se a si próprio, libertando os outros seres" ( A Ideia de Deus, (1902), 1987, p. 349). A libertação do homem pelo homem significa que a face de Deus que habita o Homem se encontra encoberta, velada, desvelando-se paulatinamente: "O Homem é que é o Encoberto.";
1.4. O messianismo português, como traço essencial da cultura portuguesa, vivendo da ânsia da revelação do "Encoberto" (D. Sebastião), assume assim um papel dominante na evolução histórica, evidenciando uma nova religião (ou uma nova re-ligação) da multiplicidade e heterogeneidade dos seres à unidade irrefragável do homogéneo ou Único, eliminando-se, assim, por depurações espirituais sucessivas, a existência do Mal - "porque precisamente eliminar o Mal é o fim do homem, único e supremo" (p. 351).
(...)
4. Amorim de Carvalho, interpretando a totalidade do sistema metafísico de Sampaio Bruno, propõe um esquema de leitura de A Ideia de Deus muito correcto: ao Deus-homogéneo sucede, misteriosa e inexplicavelmente, a queda de Deus, originando o mundo em si, o Heterogéneo, dando nascimento ao mal como absoluta prova do afastamento de Deus dos seres, a que se segue a redenção destes pela consciencialização e cooperação com Deus, reintegrando-se cada ser, individualmente, em Deus, de novo Homogéneo (...).
5. Neste sentido, Sampaio Bruno desloca a essência do mito e do movimento sebastianistas para a totalidade do Homme ou da Humanidade. Na verdade, o Encoberto não seria D. Sebastião mas o Homem na sua universalidade: "Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado (...). Não é mesmo um povo (...). É o Homem" (Sampaio Bruno, O Encoberto, 1904, p 379). O sebastianismo seria, assim, a expressão em Portugal de um movimento ontológico construtivo de toda a humanidade: o messianismo.


   Real, Miguel. Nova Teoria do Sebastianismo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2014, pp 158 - 163.
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terça-feira, 15 de dezembro de 2015



   Desde os sermões de juventude, existe uma unidade profunda no pensamento de António Vieira. Antes de mais, a sua funda religiosidade católica. Padre António Vieira não é o "político" e o "vidente" enquanto aspectos distintos da sua doutrina, mas o "político religioso" e o "vidente religioso", já que a sua visão do escravo negro ( a "teoria do resgate"), a sua visão da conversão do índio, a sua visão da história e do Império de Portugal e da Europa, possuem o selo bem distintivo da sua religiosidade católica. Todas as imagens presentes nos seus sermões possuem o distintivo do sagrado e manam desse âmago sem fundo que é a Bíblia. Todo o elemento e todo o alimento e toda a finalidade da sua vida residem no sagrado. Como teólogo, o anúncio e a interpretação da palavra de Deus constituem o sentido filosófico da sua vida e, como sacerdote, toda a sua existência foi uma plena entrega à mensagem de Cristo. Outra característica fundamentadora da sua vida e obra reside no seu estreme nacionalismo ou portuguesismo, apenas amaciado nos últimos anos de vida na Bahia, tempo de amadurecimento da escrita de Clavis Prohetarum. Vieira estatui a história de Portugal como o novo instrumento divino redentor dos vícios, defeitos e perversões da humanidade, anunciador de uma nova idade de paz, concórdia, justiça, abastança (o suficiente para todos) e amor, ou seja, o Quinto Império do Mundo. Assim, o seu nacionalismo, unido à sua vincada religiosidade, presta consciência e consistência ao seu providencialismo messiânico. (...) o cerne do discurso vieirino, até cerca dos últimos anos de vida do autor, reside na confluência entre o fervor religioso do sacerdote e missionário jesuíta e a elevação de Portugal a nação eleita por Deus, estatuindo os portugueses como segundo povo eleito da História Universal.
   Assim, providencialismo e nacionalismo contribuem para estatuir este século como o mais espiritualista dos séculos portugueses. Num jogo de espelhos reflexos, o espírito nacionalista português consolida-se por via da profunda humilhação nacional ( o decadentismo) sofrida com a perda da independência e o providencialismo como visão grandiloquente superadora da mesma. Ambos retratam um Portugal pela primeira vez culturalmente divergente com Espanha. Nasce neste século um Portugal paralelo à Espanha, que olha para mais longe - a França, a Inglaterra e a Holanda -, considerando tanto o vasto território espanhol como a política de Madrid obstáculos ao seu sucesso europeu.

   Real, Miguel.  Nova Teoria do Sebastianismo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2014, pp 64 - 66.
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sábado, 12 de dezembro de 2015

   Ler hoje Eça constitui um bálsamo para suportar a farsa, por vezes trágica, por vezes jocosa, em que Portugal se tornou desde a década de 1990, quando a direcção política dos pais fundadores da democracia foi substituída por "jovens turcos" provindos do Algarve, das Beiras e do Norte, crescidos e enformados no interior dos partidos, possuindo uma visão instrumental de acesso ao poder e de engrandecimento (e até de enriquecimento) individual, e não de nobilitação das populações. Concentremos a nossa esperança nas elites futuras e não esperemos nada de redentor das presentes senão aquilo a que um resto de pudor cristão, bom senso e a legislação europeia as obriguem a fazer.
   Entretanto, leiamos Eça, sublimando o facto de Portugal atravessar uma época de profunda mediocridade geral, onde, à semelhança do final da Regeneração, de novo impera, avassaladoramente - como Eça desmascarou -, a democracia sem valor nem mérito, a omnipotência do dinheiro, o império de uma educação sem alma, inspirada por ministros de olhos numéricos e mente vazia, e o esboroamento dos antigos valores humanistas europeus da generosidade, da honestidade e da espiritualidade.


  Real, Miguel. Portugal: Um país parado no meio do caminho 2000-2015. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015, p 146.
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015


   É assim que o cidadão português se encontra hoje, 2015, em estado socialmente perturbado, desprovido de uma instituição em que possa confiar, disposto a tudo para conseguir sobreviver e legar aos filhos algum pecúlio e desconfiado do Estado (...). Isto é, o cidadão português encontra-se hoje em autêntico estado sonâmbulo, suspeitando de que tudo o que conseguiu como fruto do seu trabalho lhe pode ser sonegado por um acto voluntário do Estado (as pensões, por exemplo), que já provou respeitar escrupulosamente os seus compromissos externos, mas, vergonhosamente, desdenhar os seus compromissos para com os cidadãos do país que governa.
   Com efeito, o cidadão português não pode hoje confiar no seu Estado, instituição permanente cuja solidez ética deveria deixar publicamente transparecer um forte grau de credibilidade social. (...) assiste-se ao caos social e económico derivado do incumprimento da modernização de Portugal, gerando um país não só bloqueado na sua esperança de futuro como, sobretudo, arrastando uma existência sonâmbula, cujas consequências estão historicamente longe de ser consciencializadas na sua totalidade, como a diminuição de meio milhão de jovens no todo da população (uma situação com consequências nefastas até ao final do século (...).
   Portugal como país sonâmbulo significa que ficou a meio do caminho da consumação plena da modernização europeia (...) sonho não só permanente da história contemporânea de Portugal como considerado realizável no final do século XX. E não foi. Os anos recentes destruíram o sonho e abalaram as suas raízes históricas.
   Somos um país parado no meio do caminho. Um país governado por uma elite político-administrativa (...) já que guiada por uma espécie de "fanatismo orçamental": tal como os estalinistas europeus acreditavam piamente na doutrina emanada do Kremlin, tornando-se insensíveis aos crimes e assassinatos cometidos por Estaline, assim o grupo neo-liberal que tem recentemente governado Portugal acredita pia e dogmaticamente na cartilha financeira estabelecida pelos "mercados", tornando-se insensível aos índices  de pobreza da sua população.


   Real, Miguel. Portugal: Um país parado no meio do caminho 2000-2015. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015, pp 69 - 71.
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Nota - Em várias passagens deste livro o seu autor refere sempre que a sua análise se debruça apenas sobre o 2º governo de José Sócrates e os dois governos de Passos Coelho. Esta obra avança ainda com uma riquíssima bibliografia que vai do Padre Manuel Antunes a Ricardo Paes Mamede e Gabriel Magalhães.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Após a entrega dos Prémios PEN relativos às obras publicadas em 2014: Sra. Secretária de Estado da Cultura, Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, Presidente do PEN Clube Português, os autores premiados e os membros dos vários júris (Auditório Carlos Paredes da S.P.A., 4 de dezembro de 2015).
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domingo, 6 de dezembro de 2015

(Este texto foi lido pelos seus relatores no passado dia 4 de dezembro de 2015 aquando da entrega dos Prémios Literários do PEN Clube de 2014, numa cerimónia - no Auditório Carlos Paredes da S.P.A. - presidida pela Sra. Secretária de Estado da Cultura, pelo Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores e pela Presidente do PEN Clube Português. O texto fundamenta a atribuição do Prémio PEN de Poesia por um júri a que os relatores pertenceram.)
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                          Prémio P.E.N. de Poesia para obras pulicadas em 2014

                       Sociedade Portuguesa de Autores, 4 de Dezembro de 2015
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O Júri constituído por Victor Oliveira Mateus (Presidente), Casimiro de Brito e Paula Mendes Coelho decidiu, por unanimidade, atribuir ex-aequo, o Prémio PEN 2014 de Poesia às obras O Vidro, de Luis Quintais (Assírio & Alvim) e a O Tempo é Renda, de Isabel Mendes Ferreira (Labirinto de Letras).
Trata-se de duas obras, que não obstante as diferenças óbvias existentes entre elas, se apresentam com uma forte originalidade no panorama geral da poesia portuguesa contemporânea, privilegiando acima de tudo o fazer poético, o trabalho sobre a linguagem, sem os quais a poesia não existe.
Em ambos os casos se trata de leitores cultos, que ousam entender a escrita poética como um combate, como um “campo de batalha”.
I
Ainda que Quintais tenha confessado recentemente que O Vidro resultou sobretudo de um processo inconsciente, intuitivo, enigmático, e que esse foi o seu “Dia triunfal”, bem sabemos que tal como no caso de Pessoa, tudo se passa de maneira algo diferente. Muitos outros dias de angústia e trabalho árduo, de combate com a palavra estão provavelmente na origem deste texto, que constitui uma longa revisitação ao passado, ou antes uma curiosa “entrevista”, levada a cabo por um sujeito poético arquivista, colecionador, anotador de fragmentos, tal como o trapeiro de Baudelaire, pretexto aqui para um diagnóstico lapidar dos tempos em que vivemos e que deixa o leitor sem fôlego, e sempre em alerta. A violência, a guerra, as metrópoles do asfalto e da solidão e um tempo fundamentalmente técnico que Baudelaire já tinha magistralmente intuído, de onde o afecto e o humano foram banidos, tudo isso surge numa forma condensada, intensa, dada a mestria com que sugere, mais do que diz, veiculando uma dimensão política, que nos apraz aqui sublinhar.
Apenas um exemplo da coerência e do apuramento da poética de Quintais. Se, em Depois da Música (editado em 2013), havia uma alusão bem explícita ao holocausto, por exemplo em poemas como “Noite e Nevoeiro”, aqui, nesta obra, surge apenas a alusão, a sugestão dessa atrocidade maior, agora fatalmente e
sub-repticiamente incorporada e podendo pairar sobre o tempo presente, no que pode ser visto celaniamente como uma “escrita do não escrevível”:
“[…]De estilhaços/ é a voz de vidro e o céu deglutido, esventrado,//como a rede rota que faz precipitar a história/e engole a cidade em som e fúria e lamento//e regresso: o caminho invertido das chaminés/onde o fumo se transforma em corpos//e os corpos saem dos fornos/e começam a andar de novo na estranha terra//e dos campos saem depois serenamente.” (p. 21-22)

Este longo poema “Vidro” vai ainda articular-se de maneira exímia com uma segunda parte intitulada “Ecolalia”, que tal como este título sugere, constitui um eco dos principais topoï da primeira, desta feita num conjunto de 21 pequenos textos em prosa poética, numa nova reconfiguração de experiências dolorosas presentes em filigrana na primeira parte.
De facto, se anteriormente a poesia de Quintais ainda conseguia riscar “a palavra DOR no quadro negro”, nesta última obra ela prova não ser capaz de apagar, de eliminar essa dor. A “imprecisa melancolia” (título da primeira obra de 1995) transformou-se em “negro sol”. Com efeito, o olhar melancólico e alegórico do poeta flâneur, do trapeiro baudelairiano é aqui levado às últimas consequências, restando-lhe apenas recompor os estilhaços que sabe desprovidos de significado, teimando em reconfigurá-los na esperança de algo novo, de algum consolo que todavia sabe não existir, muito menos quando o sujeito poético se imagina a responder a um filho:
“E ao teu filho?//Dir-lhe-ás que não há alma,/que um sopro suportando a coerente//carne sobre as suas espáduas/é maligno subterfúgio?”(pp.37-38)

II
Entre poesia e prosa, a escrita torrencial de Isabel Mendes Ferreira desafia a capacidade perceptiva do leitor, confunde deliberadamente a intelecção sempre tão ávida de linearidade e de um sentido a dar-se sem pejo nem véus, joga - através de um cultismo denso e de um sincretismo temático - com a propagada necessidade de univocidade e/ou de inteligibilidade imediata. A poeta retoma assim a ideia, tão cara à modernidade, de tecedura poética e, a partir daí, ensaia uma arquitectura singular e heterodoxa, pelo que não hesita em deitar mão a todo o tipo de recursos estilísticos: assonâncias e exercícios de paronímia (Cf. p 52: arrasta/ arrasa); repetição de palavras (Cf. p 170: fiz-me inóspito. fiz-me
medo); expressões rondando o jargão (Cf. p. 110: fumo de fio a pavio), contrastando muitas vezes com um registo fortemente erudito…. Aliás, não é por acidente que o título desta obra refere a imagem da renda, e essa urdidura não é apenas formal, ela remete igualmente para um trabalho da memória, simultaneamente labiríntico e aracniano, onde os temas se aprofundam, se abandonam - muitas vezes abruptamente - e se retomam como um rendilhado feito no tempo e a partir do tempo. Renda e não rede, que envolve… sem aprisionar. O tempo é, portanto, o solo matricial desta poesia, assim como o aro que emoldura toda escrita poética: "e o tempo é uma variável que não dominamos. não dominaremos nunca. como se viajássemos numa pequena barca por mar/ encapelado. umas vezes somos salvos e outras/ engolidos pelas águas."  (p.114). O tempo, ora na sua dimensão salvífica, ora como abismo destruidor, é o território onde a existência se abre - e neste ponto é impossível não nos recordarmos de algumas das principais teses de Heidegger! - como forma de “ser-para-a-morte”, provocando no sujeito poético momentos de alegria serena e - muitas vezes também - de uma angústia desintegradora: "O tempo é renda no ventre plano da saudade/ não espero nada. sou assim como a desintegração. evento/ cardume película e animal de infância " (p. 107).
Ciente de que é da “casa dos afectos que a palavra chega”, trata-se nesta escrita de “cantar os signos”, num texto sempre aberto “profano e sagrado; profundo e raso”, e de “recolher os despojos. como quem desmente o texto e a voz num deserto que já foi corpo antigo e agitação de falcões inquietos.” (p.60)
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Lisboa, 4 de Dezembro de 2015
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Relatores:
Paula Mendes Coelho
Victor Oliveira Mateus
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015


   Yves continuava a rir enquanto descia os Campos Elísios, não com um riso amargo e forçado, mas com um riso franco, que obrigava os transeuntes a voltarem-se. Tinha soado o meio-doa... Era madrugada quando subira os degraus da estação de Orsay. (...) Não tinha mais do que um esgotamento: nunca o objecto do seu amor lhe aparecera tão ridículo, tão fora da sua vida, tão reles, tão sujo, tão findo! E no entanto o seu amor subsistia: como uma mó que tivesse girado no vazio... girado... girado...
   Terminara o riso. Yves concentrava-se nesta estranha tortura do vácuo. Vivia esses momentos que todo o homem que tenha amado conhece, com os braços sempre apertados de encontro ao peito, como se não tivesse desaparecido aquilo que abraçava, apertando efectivamente, e sem exagero de expressão, o nada.
   Naquele meio-dia de um Outubro morno, sentado num banco do Rond-Point dos Campos Elísios, o último dos Frontenac não conhecia outra direcção na vida do que a dos Cavalos de Marly... Uma vez ali não sabia se iria para a direita se para a esquerda ou se até às Tulherias entrando na ratoeira do Louvre.
(...) Voltar atrás quando as forças estão no fim? Refazer todo o caminho? Que ladeira tão íngreme! E para realizar o quê? Yves errava pelo mundo liberto de qualquer trabalho humano. Nenhuma tarefa lhe exigiam, visto que acabara antecipadamente o seu dever, visto que adiara a sua cópia para ir brincar. Não tinha outra ocupação que não fosse anotar dia a dia as reacções de um espírito totalmente inocupado...
   E nada mais poderia fazer e o mundo nada mais lhe pedia.


   Mauriac, François. O mistério dos Frontenac. Lisboa: Editora Ulisseia, 1956, pp 204 - 206 ( Tradução de Luís Forjaz Trigueiros).
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015


   A esperança de Yves ia baixando dia a dia, como o nível das nascentes. Tornava-se azedo. Aborrecia a família por ela não lhe descobrir uma auréola à volta do rosto. Cada pessoa, sem maldade, quebrava-lhe o orgulho dizendo: "Se te espremessem o nariz, deitava leite".
   Yves imaginava que não tinha mãe: as sua palavras afastavam-no, picadas que as galinhas vão dando aos pintos crescidos obstinados a seguirem-nas. "Se lhe tivesse explicado tudo", pensava, "ela não o entenderia. Se ela tivesse lido os seus poemas, tê-lo-ia chamado louco".
   Yves desconhecia que a pobre mulher tinha acerca do seu filho mais novo uma ideia mais acertada do que ele supunha. Não poderia dizer em quê, mas sabia que era diferente dos outros: como um cão de caça que saísse duma ninhada com marcas de cão de guarda...
  Não eram os seus que o desprezavam; era ele próprio quem se sentia miseràvelmente inferior. Aborrecia os seus ombros estreitos e os seus braços magros. E no entanto viera-lhe a tentação absurda de saltar uma noite para a mesa do salão da família gritando: "Sou um rei! Sou um rei!"
   - É da idade; isto há-de passar....- repetia a Sra. Arnau-Miqueu a Blanche, que se lamentava. Não se penteava, lavava-se o menos possível. Visto que o Mercure ficava silencioso, que Jean-Louis o abandonava e que ninguém viria a saber que um poeta admirável nascera em Bordéus, contentaria o seu desespero tornando-se mais feio, enterraria o seu génio num corpo descarnado e sujo.

  Mauriac, François. O mistério dos Frontenac. Lisboa: Editora Ulisseia, 1956, pp 67-68 (Tradução de Luís Forjaz Trigueiros).


Nota - respeita-se a grafia da época.
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sábado, 28 de novembro de 2015


SILÊNCIO E MARGINALIDADE NA POESIA DE GRAÇA PIRES

                                                Victor Oliveira Mateus

O novo livro de Graça Pires, Uma claridade que cega, afirma-se fundamentalmente como uma procura: “eu procuro de novo/ o princípio de tudo,” (p.10); “na marginalidade do sossego/ reacendo o lume…” (p.12); “escuto até à exaustão/ os rumores de um tempo mais remoto” (p.14). Vemos, portanto, que são específicas desta aventura poética três instâncias fundamentais: o sossego – muitas vezes aparecendo sob outras formas, como por exemplo a do silêncio -; a marginalidade, entendida esta não como uma vivência ostensivamente burguesa e urbana, mas tão-só como a rejeição de uma norma que impede a busca dessa claridade absoluta, fundamento do Ser e da escuta poética: “sou da estirpe dos aventureiros, dos caminhantes, dos fugitivos.” (p.30); “fujo na crina de um potro livre,/ sem jugo, em veloz cavalgada.” (p.40) e, finalmente, o alvo desta mesma procura metamorfoseado este na imagem da “fonte mais remota,/ onde a água tem o sabor/ do leite materno” (p.60). Esta associação sossego/silêncio, procura pela margem e propensão para a fonte originária ou, como neste livro se apresenta, para essa claridade que cega , tem sido uma constante na poética de Graça Pires: “nómada na noite, entro no coração do texto,/ para dizer o exílio nos olhos de Ulisses.” (in Uma certa forma de errância, 2003, p.43); “Um saber de dialectos nocturnos,/ permite-me riscar nos pulsos um silêncio de fuga.” (op. cit. p.51); “seguimos pela noite indiferentes/ a todos os ruídos que rebentam/ o rigor do silêncio.” (in Uma vara de medir o sol, 2012, p.69).
Vemos também que esta procura é não só uma inquirição em torno do princípio originário, dessa claridade primeira, como também um trabalho em torno da palavra para que dela seja removida toda a ganga do ruído e da inautenticidade:

“NOME:-
Interpelamos as palavras à procura de um nome para a casa
onde moramos. Um nome que se ajuste inteiro à memória
do olhar e do silêncio. Um nome tão secreto como as canti-
gas que as mães cantam baixinho enquanto embalam nos
braços os filhos e a noite para não perderem o poder de
repartir a sede.”

(in Caderno de Significados, 2013, p.21)

E a este almejar de uma claridade que cega, ou seja, desta beleza terrível, não é alheia a poesia de Rilke logo anunciada no quarto poema deste livro. Vejamos o que diz o poeta alemão:

“(…). Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo o podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”

(“A Primeira Elegia” in As Elegias de Duíno, Assirio & Alvim, 2002, p.39)


“Todo o Anjo é terrível. No entanto, ai de mim!
Pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,
por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,
quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada
(…)
Porém nós, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de nós,
ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasido
vamos perdendo o nosso aroma. (…)”

(“A Segunda Elegia” in As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002, p.47)

Esta antinomia Anjo/terribilidade, claridade/fulminação do olhar  na autora, alarga-a Graça Pires à presença de outros autores nomeadamente de Virgínia Woolf de quem a poeta diz, em dois versos que validam esta minha linha de leitura: “ As múltiplas faces da vida e da morte/ em diálogo secreto.” ( In Uma claridade que cega, 2015, p 35). Há ainda uma outra convergência com a romancista inglesa: em Mrs Dalloway , Clarissa Dalloway interroga-se frequentemente sobre o seu passado, o seu presente e o futuro, ora estas dimensões da temporalidade trespassam todo o livro de Graça Pires, aliás, este jogar no tempo é frequente em Virgínia woolf, veja-se, por exemplo, outro romance seu: Orlando , que, baseado na vida de Vita Sackville-West, narra a história de um jovem que certo dia acorda mulher e dotado de imortalidade, Orlando acompanha mais de três séculos da vida dessa personagem. Vemos, por conseguinte, que Clarissa Dalloway ( o livro narra apenas um dia da sua vida) vive entre a felicidade e a ideia de suicídio, Orlando entre a imortalidade e o efêmero rotineiro, ou seja, ambos desenham a sua errância entre um polo positivo e outro negativo, tal como este livro de Graça Pires entre a claridade e a cegueira. Não é despiciendo enfatizar  também aqui a riqueza imagística das autoras: a de Virgínia Woolf deu azo a riquíssimas obras de arte, como por exemplo o romance As Horas de Michael Cunningham, que, por sua vez originou o filme homónimo (2002) de Stephen Daldry com as soberbas interpretações de Maryl Streep, Nicole Kidman e Julianne Moore e ainda a película Orlando (1992) de Sally Potter com o andrógino desempenho de Tilda Swinton. Já as imagens da poesia de Graça Pires, com a sua sobrevalorização do telúrico e/ou do aquífero, bem como o chamar à liça do afetivo e do emocional, entroncando, portanto, em Pascoaes, Torga, Sophia,  Nuno Júdice e algum Ruy Belo, mas  recusando as escritas mais debruçadas sobre as vivências citadinas, corre o risco de – com as suas águas, as suas gaivotas, as suas estevas, a sua urze, etc. - , numa leitura apressada, serem remetidas para um filo passadista, todavia, uma leitura cuidada desta escrita verificará que o que existe é todo um paradigma de referentes ao serviço de intentos outros – exemplo: falar-se do envelhecimento em Outono: Lugar Frágil  (1994), dessa Odisseia que é o estar-aqui em Uma certa forma de errância ( 2003), da falsa oposição que existe entre o trabalho braçal e doméstico relativamente ao aperfeiçoamento moral e religioso em não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), etc. Um terceiro, e último, diálogo que Graça Pires mantém é com Pablo Neruda: “Hoje, que não escuto o mar/ fujo na crina de um potro livre,/ sem jugo, em veloz cavalgada. Tenho nos olhos um incêndio tangível(…)/ Doeu-me a voz quando bradei,/ sem fôlego, o verso de neruda:/ quero inventar o mar de cada dia.” , a abordagem da realidade material,  do sócio-económico, na poesia de Graça Pires é sempre feita de forma subtil, mas, paradoxalmente, forte: “Há por todo o lado palcos improvisados/ onde, em bocas distorcidas, se anunciam/ perigos e presságios, ameaças e avisos./ Este é um país de sombras tão baldias que magoa. “ (p28): “ Cravo as unhas na carne da indiferença./ Escrevo sangue/ com o lápis gasto pela culpa acorrentada/ à cegueira que desfoca os olhares/(…)/ Leio dor. Dolorosamente./ Em lugares desabrigados,/ em portas franqueadas aos rasgões/ da vida rondada pela morte.” (p 33), não estamos – nestes versos – longe de tantos poemas de Nazim Hikmet ou do Canto Geral de Neruda, onde podemos ler: “Mas tu não sofreste? Não, eu não sofri. Eu sofro/ apenas os sofrimentos do meu povo. Eu vivo/ dentro, no interior da minha pátria, célula/ do seu infinito e abrasado sangue. “ ( In Canto Geral, Campo das Letras, 1998, p 480, tradução de Albano Martins).
 O presente livro de Graça Pires ousa ainda três áreas estreitamente conectadas com tudo aquilo de que tenho vindo a falar: o plano do existencial e do dia-a-dia, o da inquirição da palavra e da poesia e, finalmente, um plano metafísico onde a esperança e o sonho teem um papel fundamental. Acerca desse primeiro plano leia-se o poema da página 39 da presente obra:

Só folheio os jornais de vez em quando.
Quase tudo o que se escreve
são golpes confusos
que abrem nas entranhas a impressão
de um mundo por entender.
A verdade chega-nos apenas
através do silêncio dos que sonharam
um tempo sem estas ruínas
que descarnam e sepultam
a mais valiosa esperança.

Este poema ilustra na perfeição o que temos vindo a dizer: primeiro, estabelece a distinção entre aparências (golpes confusos, mundo por entender) e a busca da verdade, isto é, da claridade que cega ; segundo, reafirma a importância do silêncio e do sonho para bem entender e agir, convém, no entanto, acrescentar que o sonho nunca é, na poesia de Graça Pires, sinónimo de devaneio ou alienação, ele surge sempre ou como capacidade da memória ao serviço da rememoração e do conhecer ou – como aqui – como rasgo da imaginação que alimenta a praxis ; terceiro, a recusa da poeta em integrar o coro das ruínas , em integrar o número daqueles que descarnam a esperança e a ousadia, daí o já referido colocar-se à margem da voracidade da turbamulta, daí também o termo marginalidade que usei no título deste texto ; quarto e último, a distinção acenada no sexto verso: a Graça Pires não interessam as certezas  tão operativas e eficazes nas ciências e tão úteis nos registos de tipo jornalístico, à autora importa a verdade , dito de outro modo: os seus olhares antropológico e histórico aparecem sempre alicerçados numa visão ética, assim como o sociológico se curva ante o metafísico, numa frontal recusa do injusto e do mal, entendido este no seu sentido radical: “Este mal é radical, a partir do momento em que corrompe o fundamento de todas as máximas (morais).” (Kant, In A Religião dentro dos Limites da Simples Razão , Ak.Ausg., VI). Por tudo isto, competirá à Palavra, ou melhor, à Poesia, conduzir-nos neste caminho iluminante, competirá a ela assumir-se plenamente como Uma claridade que cega. 

O verbo: clareira em cama de fenos
ou ilha oculta de ocultos silêncios.
Como se o nervo do vento
fustigasse a voz dos poetas
esmagando a rigidez dos sons.
Apta a declinar as regras do jogo
retenho, nas arestas da página,
o som do lápis, como um pião
rodopiando traços inseguros.
A película de imagens no interior do texto,
levemente aberto ao segredo das mãos
deixa que me habite um desvario
que faça regressar um verso invisível.


    ( In Uma claridade que cega, p 43)


 Livraria Ferin - Lisboa, 28 de novembro de 2015.
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sexta-feira, 20 de novembro de 2015


                   ACTE  III, SCÈNE II

(...)


MARA: Il faut bien se tourner vers Dieu quand le reste n'est plus là.

VIOLAINE: Lui du moin ne manquera pas,

MARA, doucement : Peut-être, qui le sait, Violaine, dis?

VIOLAINE: La vie manque et non point la mort où je suis.

MARA: Hérétique! est-tu sûre de ton salut?

VIOLAINE: Je le suis de sa bonté, qui a pourvu.

MARA: Nous en voyons les arrhes.

VIOLAINE: J'ai foi en Dieu qui ma fait sa part.

MARA:  Que sais-tu de Lui qui est invisible et que rien ne manifeste?

VIOLAINE: Il ne l'est pas devenu plus pour moi que n'est le reste.

MARA, ironiquement : Il est avec toi, petite colombe, et Il t'aime?

VIOLAINE : Comme avec tous les misérables, Lui-même.

MARA: Certes son amour est grand!

VIOLAINE: Comme celui du feu pour le bois quand il prend.


    Claudel, Paul. L'annonce faite à Marie. Paris: Éditions Gallimard, 2002, pp 159 - 160.
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Paul Claudel (6/8/1868 - 23/2/1955) poeta e dramaturgo francês é, ainda hoje, uma figura controversa do mundo das letras. O seu catolicismo acirrado, as suas posições vincadamente de direita: Claudel chegou a dedicar um poema - em 1940 - ao Marechal Pétain (Paroles au Maréchal) logo a seguir à derrota da França frente à Alemanha e, em 1913, tinha já sido o responsável pelo internamento num hospital psiquiátrico da sua irmã mais velha, a escultora Camille Claudel, que ali permaneceu 30 anos e que, durante todo esse tempo, o escritor visitou apenas sete vezes. No entanto, apesar do seu exacerbado conservadorismo, não consta que Paul Claudel tenha simpatizado com as ideias fascistas da época, aliás, simpatizou sim, e bastante, com De Gaulle a quem dedicou também um poema. Em L'annonce faite à Marie , Paul Claudel desenvolve uma fascinante e bem tecida intriga em torno de temas caros ao seu catolicismo: o mal, a santidade, a busca da perfeição, o milagre, a dádiva de si ao outro, etc.
Sobre estes temas poderá ver os filmes: A Paixão de Camille Claudel de Bruno Nuytten, com Isabelle Adjani e Gérard Depardieu e também A anunciação feita a Maria de Alan Cuny, filme premiado no Festival de Berlim de 1992.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

         ACTE II, SCÈNE III

JACQUES HURY: O ma  fiancée à travers les branches en fleurs, salut!       

     Violaine est au-dehors, invisible.

Violaine, que vous êtes belle!

VIOLAINE: Jacques! Bonjour, Jacques!
Ah! que vous êtes resté longtemps là-bas!

JACQUES HURY: Il me fallait tout dégager et vendre, me rendre entièrement libre
Afin d'être l'homme de Monsanvierge seul
Et le vôtre.
- Quel est ce costume merveilleux?

VIOLAINE: Je l'ai mis pour vous. Je vous en avais parlé.
Ne le reconnaissez-vous pas?
C'est le costume des moniales de Monsanvierge, à peu près, moins le manipule seul, le costume qu'elles portent au choeur. (...) Et que les femmes de Combernon ont le droit de revêtir deux fois:
Premièrement le jour de leurs fiançailles.

     Elle entre.

Secondement de leur mort.

JACQUES HURY: Il est donc vrai, c'est le jour de nos fiançailles, Violaine? (...) Que vous êtes belle, Violaine! Et que ce monde est beau où vous êtes.
Cette part qui m'avait été réservée!

VIOLAINE: C'est vous, Jacques, qui êtes ce qu'il y a de meilleur au monde.
(...)
JACQUES HURY: Et quant à moi, Violaine...

VIOLAINE: Ne dites rien. Je ne vous demande rien. Vous ètes là et cela me suffit.
Bonjour, Jacques!
Ah, que cette heure est belle et je n'en demande point d'autre.


   Claudel, Paul. L'annonce faite à Marie. Paris: Éditions Gallimard, 2002, pp 97 - 100.
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sábado, 14 de novembro de 2015

A apresentação pública do livro Efeitos de Captura de Luís Filipe Sarmento realizou-se, no dia 3 de outubro de 2015, no Café Império em Lisboa e a ela assistiram cerca de duas centenas de pessoas. Falaram acerca da obra - e do autor -, da esquerda para a direita: Virgínia do Carmo, José Pinto Bandeira, Victor Oliveira Mateus, Maria João Cantinho, Luís Filipe Sarmento, Casimiro de Brito e Mário Contumélias (Foto gentilmente cedida pelo fotógrafo Vasco Ribeiro).
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quarta-feira, 11 de novembro de 2015


Foto da representação - com assinalável sucesso - da peça Don Carlos de Schiller no Blue Elephant Theatre de Londres em 2011 (observe-se, em cima da mesa, o mapa de Espanha).


         CENA FINAL

(...)
ISABEL

Não façais caso das minhas lágrimas:
queria tanto não chorar neste momento,
mas não consigo, é mais forte que eu.
Mas quero dizer-vos isto: admiro-vos.

CARLOS

Fostes vós a confidente daquela amizade,
entre ele e mim: foi por meio dele
que pude aproximar-me de vós em Aranjuez;
foi por meio dele que agora estamos
de novo juntos, sós. Ele morreu;
eu venho aqui correndo perigo de vida.
Sereis sempre para mim a única mulher...

(entram, silenciosos, Rei, Inquisidor, Alba, Lerma, Domingo. Rei, Alba e Lerma de espadas empunhadas. Carlos e Isabel não se apercebem da presença dos intrusos)

Fujo agora de Espanha. Nunca mais verei
o meu pai. Odeio-o. Tudo o que por ele
eu sentia morreu. Perdeu o único filho.
Parto, então, para salvar o mundo
de tiranos como ele. Adeus!

(Carlos e Isabel beijam-se)

ISABEL

Carlos... que será de mim nesta Corte?
Eu que não posso aspirar a um heroísmo
como o teu e o de Rodrigo?
Mas volto a dizer: admiro-te.

(...)
( avançam rápidos Rei e fidalgos, de espadas apontadas para Carlos)

FILIPE (voz terrível)

É o último engano da tua vida!
(...)
Senhor Cardeal Inquisidor!
O meu dever está cumprido!
Cumpri agora o vosso.  

  
  Schiller, Friedrich. Don Carlos. Lisboa: Edições Cotovia, 2008, pp 166 - 168 (recriação poética de Frederico Lourenço).
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terça-feira, 10 de novembro de 2015





O Don Carlo de Verdi: Don Carlos (Kaufmann) e Rodrigo, Marquês de Posa (Hvorostovsky). Uma das árias mais libertárias desta ópera e que segue muito de perto a peça de Schiller.

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       ACTO 3, CENA 6

(...)
RODRIGO

O que recebestes de Deus, meu Senhor, todo este vasto império:
terdes recebido a custódia dos homens faz de vós
rei e imperador, mas perante Deus sois, como nós, um homem.
Também vós sofreis como homem mortal, também amais
e desejais! Mas com quem partilhareis a vossa humanidade?
Se rebaixais os outros homens a instrumentos da vossa vontade,
como fruíreis (homem que sois!) daquela harmonia
- tão humana porque divina! - que soa apenas
quando todos se juntam no desejo de sentirem
como se em vez de muitos fossem um só?

FILIPE (para si)

Meu Deus, ele toca-me a alma...

RODRIGO

Senhor, cheguei há pouco da Flandres e de Brabante,
Províncias florescentes do vosso império!
Grande e honroso povo - povo cheio de valor
e de bondade, povo que em vós põe os olhos
como num pai. Pensei em vós, na missão divina
que vos é outorgada pelo governo de um tal povo.
Mas depois olhei à minha volta: vi cadáveres,
homens e mulheres queimados em autos-de-fé;
vi enforcamentos na praça pública, sangue, morte, destruição.
Onde podia haver paz, há só ódio, conflito, tumulto.

FILIPE (defensivo)

Olhai, no entanto, para a Espanha, Marquês.
Aqui floresce a paz como nunca outrora
no passado. É a mesma paz que quero para a Flandres.

RODRIGO (exaltado)

Paz? Chamais a isso paz? A paz de um cemitério!

(...)

FELIPE (calmo)
(...)
por isso vos digo, pela estima que fizestes nascer em mim:
acautelai-vos e tende prudência,
para que vos não vejais enredado
nas malhas da Santa Inquisição.


   Schiller, Friedrich. Don Carlos. Lisboa: Edições Cotovia, 2008, 121 - 124. (recriação poética de Frederico Lourenço).
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Friedrich Schller (10/11/1795 - 9/5/1805) foi, juntamente com Goethe e com Herder, uma figura maior do Romantismo Alemão e do Classicismo de Weimar. Da sua obra, literária e filosófica, ressalta a peça de teatro Don Carlos. Este texto, cuja ação decorre no século XVI desenvolve-se segundo duas linhas de força: primeiro, o mau relacionamento de Don Carlos ( 1545-1568) com o pai, Filipe II de Espanha (21/5/1527 - 13/9/1598), motivado sobretudo pelo autoritarismo do rei e pela forte repressão que exercia sobre a Flandres, mas também pelo facto de Filipe ter casado com Isabel de Valois, princesa francesa que inicialmente rumara a Espanha para casar com o Infante; segundo,  a forte oposição entre os ideais progressistas de Carlos, e do seu amigo maior - Rodrigo, Marquês de Posa -, e a repressão exercida pelo poder real poderosamente apoiado pela Inquisição. A partir daqui cresce uma enorme tecedura de paixões, ódios e traições, que culminam na morte de Carlos e de Rodrigo. Aliás, os historiadores ainda hoje não se entendem quanto à morte do Infante, que, para uns - devido ao seu temperamento fortemente emotivo e instável - se teria suicidado na prisão, mas para outros estar-se-ia perante um assassinato político. A peça inclina-se para a segunda opção, vejam-se as páginas 156-163.da edição aqui usada.
Acrescente-se ainda o soberbo uso que desta peça faz Verdi na ópera com o mesmo nome. As óperas de Verdi, numa Itália fortemente ocupada pela Áustria, teem todas um enorme cunho político, de rejeição de tudo o que é opressão e autoritarismo, assim, a sua Don Carlos, não foge à regra, veja-se, por exemplo, a ária em que Filipe II fala com Rodrigo e a nítida inflexão da música quando Rodrigo diz que o rei constituiu, sim, um reino de paz, mas que essa paz é a paz dos sepulcros. Sugere-se (até) uma análise comparativa das duas obras: a peça de Schiller e a ópera de Verdi.
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domingo, 8 de novembro de 2015


Não deve ser fácil para um ator interpretar um papel, sobretudo se esse papel for de uma obra clássica, sabendo que tem atrás do seu desempenho toda uma plêiade de representações impolutas e de referência. Mesmo assim alguns decidem ousar! Joseph Fiennes (na foto com James D'Arcy fazendo de Gavestone) avança - em 2001 no Crucible Theatre Sheffield - com a sua interpretação de Eduardo II, mesmo sabendo que tinha de "terçar armas" com interpretações paradigmáticas como as de Derek Jacobi, Ian McKellen (1970) e a de Steven Waddington (1991) no filme homónimo de Derek Jarman. Pelos vistos não se saiu mal, pois o crítico do The Guardian escreve, em 15 de março de 2001, e depois de atribuir quatro estrelas ao espetáculo: " Finne's true gift is for inwardness, and, through his graceful stealth, he elevates Marlowe's rhetorical homily into true tragedy."
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                     ACT TWO, SCENE TWO
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(...)
QUEEN ISABELLA: Sweet husband, be content; they all love you.
KING EDWARD: They love me not that hate my Gaveston.
I am that cedar; shake me not too much;
And you the eagles, soar ye ne'er so high,
I have the jesses that will pull you down;
And AEque tandem shall that canker cry
Unto the proudest peer of Britainy.
Thou that compar'st him to a flying-fish,
And threaten'st death whether he rise or fall,
'Tis not the hugest monster of the sea,
Nor foulest harpy, that swallow him,
YOUNGER MORTIMER: If in his absence thus he
favours him,
LANCASTER: That shall we see: look, where his lordship comes!
    ( Enter Gaveston )
KING EDWARD: My Gaveston!
Welcome to Tynemouth! Welcome to thy friend!
Thy absence made me droop and pine away,
For, as the lovers of fair Danae,
When she was lock'd up in a brazen tower,
(...)
GAVESTON: Sweet lord and king, your speech
preventeth mine;
Yet have I words left to express my joy,
The shepherd, nipt with biting winter's rage,
Frolics not more to see the painted spring
Than I do to behold your majesty.
KING EDWARD: Will none of you salute my Gaveston?
LANCASTER: Salute him! Yes, Welcome, Lord Chamberlain!
YOUNGER MORTIMER: Welcome is the good Earl of Cornwall!
WARWICK: Welcome, Lord Governor of the Isle of Man!
PEMBROKE: Welcome, Master Secretary!
KENT: Brother, do you hear them?
KING EDWARD: Still will these earls and barons use me thus?
GAVESTON. My lord, I cannot brook these injuries.
QUEEN ISABELLA (aside) : Ay me, poor soul, when these begin to jar!


     Marlowe, Cristopher. The Complete Plays. London: Penguin Books, 1986, pp 465 - 466.
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sábado, 7 de novembro de 2015


                           ACT ONE, SCENE ONE

(...)
KING EDWARD: Well, Mortimer, I'll make thee rue these words.
Beseems it thee to contradict thy king?
Frown'st thou thereat, aspiring Lancaster?
The sword shall plane the furrows of thy browns,
And hew these knees that now are grown so stiff.
I will have Gaveston; and you shall know
what danger 'tis to stand against your king.
GAVESTON (aside) : Well done, Ned!
LANCASTER: My lord, why do you thus incense your peers,
That naturally would love and honour you,
But for that base and obscure Gaveston?
Four earldoms have I, besides Lancaster, -
Derby, Salisbury, Lincoln, Leicester;
These will I sell, to give my soldiers pay,
Ere Gaveston shall stay within the realm,
Therefore, if he be come, expel him straight.
KENT : Barons and earls, your pride hath made me mute
But now, I'll speak, and to the proof, I hope,
I do remember, in my father's days,
Lord Percy of the North, being highly mov'd,
Brav'd Mowberay in presence of the kinf;
(...)
Brother, revenge it! And let these their heads
Preach upon poles, for trespass of their tongues!
WARWICK: O, our heads!
KING EDWARD: Ay, yours! And Therefore I would wish you grant...
(...)
KING EDWARD: I cannot brook these haughty menaces;
Am I a king, and must be over-rul'd?
Brother, display my ensigns in the field;
I'll bandy with the barons and the earls,
And either die, or live with Gaveston.
GAVESTON: I can no longer keep me from my lord.  (come forward).
KING EDWARD: What, Gaveston! Welcome! Kiss not my hand
Embrace me, Gaveston, as I do thee.
Why shouldst thou kneel? Know'st thou not who I am?
Thy friend, thyself, another Gaveston!
Not Hylas was more mourned of Hercules
Than thou hast been of me since thy exile.
GAVESTON: And since I went from hence, no soul in hell
Hath felt more torment than poor Gaveston.
KING EDWARD: I know it. Brother, welcome home my friend.
Now let the tracherous Mortimers conspire,
And that high-minded Earl of Lancaster;
I have my wish, in that I joy thy sight;
(...)
GAVESTON: It shall suffice me to enjoy your love;
Which whiles I have, I think myself as great
As Ceaser riding in the Roman street,
With captive kings at his triumphant car.


  Marlowe, Christopher. The Complete Plays. London: Penguin Books, 1986, pp 438 - 440.
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( Nota - o termo "brother" aparece sempre como grau de parentesco, e nunca referindo um qualquer relacionamento amistoso, já que Eduardo II e Lord Kent eram irmãos).
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sexta-feira, 6 de novembro de 2015


Christopher Marlowe (26/2/1564 - 30/5/1593) representou, juntamente com Shakespeare (-/4/1564 - 23/4/1616) e com Ben Jonson (11/6/1572 -  6/8/1637), o período áureo do teatro isabelino. Marlowe terá mesmo influenciado Shakespeare quer introduzindo o verso branco na estrutura das peças quer pela importância dada às figuras históricas enquanto tema central de várias peças. A sua morte está envolvida num certo mistério, já que Marlowe terá sido assassinado numa briga numa taberna, em 1593, com apenas 29 anos de idade, dando depois o caso origem à tese de que se tratou de um assassinato político devido ao facto de Marlowe ser um agente secreto ao serviço de Francis Walsingham (chefe da rede de espiões de Isabel I). Aliás, a própria vida de Marlowe será também ela marcada pelas célebres "teorias da conspiração", pois autores existem que defendem que a morte de Marlowe não foi devidamente comprovada, pelo que Shakespeare não será mais do que um pseudónimo que o autor teria depois adoptado. Enfim, acabaram surgindo teorias para todos os gostos...
"Eduardo II" tem um lugar importante na produção literária de Marlowe, sobretudo pela forma como ele alia a qualidade da escrita à cuidada narrativa do reinado em causa. A peça inicia-se com o regresso do exílio de Gaveston, o preferido do rei, e com o episódio em que o monarca cumula o amigo com cargos e benesses suscitando assim invejas e ódios de nobres e da própria rainha, Isabel de França. Após várias pressões e intrigas, Gaveston é de novo exilado da Corte, contudo, a rainha e aquele que viria a tornar-se o seu amante - Mortimer - bem como certos nobres decidem fazer regressar (de novo) Gaveston a Londres, onde se tornará mais fácil o seu assassinato. Facto que será concretizado com eficácia. Eduardo II, desesperado com esta perda, consegue executar dois dos assassinos, mas a conjura torna-se incontrolável e o rei acaba encarcerado, assumindo a rainha o poder, embora fortemente condicionada pela influencia de Mortimer. O despotismo de Mortimer e de Isabel de França torna-se insustentável levando mesmo ao assassinato do irmão do rei, Lord Kent, e do próprio Eduardo II barbaramente executado nas masmorras onde se encontrava. Isabel de França coloca no trono o filho que tivera de Eduardo II, um jovem com apenas 15 anos, mas pensando continuar a exercer o poder juntamente com o seu atual amante, todavia os seus planos não resultam: o novo rei, Eduardo III, ao saber do assassinato do pai, manda executar Mortimer e enclausura a mãe numa das suas residências onde esta ficará até à morte. O rigor e o realismo desta peça, o poder de análise de alguns mecanismos comportamentais e sociais, como o poder, a inveja, a ambição, etc. e a estupefacção perante o destino sumamente infeliz de um Eduardo II que decide trocar o reino, a família e a própria vida para poder ter Gaveston a seu lado, tornam esta obra um dos momentos altos da produção literária de Marlowe, bem como de todo o teatro isabelino.
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quinta-feira, 5 de novembro de 2015



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A Fedra de Racine ( aqui a Cena V do Acto II) na encenação de Patrice Chéreau (2003). Na magistral interpretação de Dominique Blanc (Fedra) e de Eric Ruf (Hipólito).

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                                    Acto II, Cena V


FEDRA:

(...)
Mas não, fora antes eu primeira nesse intento:
inspiraria amor logo o meu pensamento.
Sim, eu, Príncipe, sim, eu com útil socorro
a vós do Labirinto ensinaria o forro.
Quantos desvelos meus por vossa formosura!
A amante um fio só não faz sentir segura.
Companheira do risco a que íeis prontamente,
eu mesma quereria andar à vossa frente.
E Fedra ao Labirinto então sendo descida
seria já convosco ou achada ou perdida.

HIPÓLITO:

Deuses!, o que ouço eu? Senhora, heis esquecido
que Teseu é meu pai e que é vosso marido?

FEDRA:

E porque é que julgais que eu perco tal memória?
Senhor? Terei também perdido a minha glória?

HIPÓLITO:

Senhora, perdoai. Confesso, penitente,
que acusei sem razão falas de uma inocente.
À vossa vista em mim vergonha não resiste
e eu vou...

FEDRA:

                   Ah!, tu, cruel, me ouviste e bem ouviste.
O que te disse é mais do que esclarecedor.
Pois bem! Fedra já vês em todo o seu furor.
Amo. E não vás pensar que a amar-te em tal momento
a mim vou aprovar enquanto me inocento.
Nem que do louco amor, veneno da razão,
cobarde e complacente eu nutri poção.
Infortunada sou: vinganças são celestes,
e abomino-me mais que quanto me detestes.
Testemunham-mo o Céu e os Deuses que em meu flanco
põem meu sangue a arder nesse fatal arranco,
os deuses de quem foi só glória e cruel mal
trazer a sedução a um coração mortal.
Na mente agora tu recordes o passado.
Fugir-te pouco foi, cruel, foste expulsado.
(...)
E eu sofri, eu sequei, a arder em fogo e pranto.
Bastava o teu olhar para te convencer
se um momento esse olhar a mim pudesse ver.
(...)
Coração que tanto ama é fraco a projectar!
Ai de mim!, só de ti é que eu pude falar.
Vinga-te a castigar-me um odioso amor.
Digno filho do herói de teus dias autor,
ao universo tira um monstro que é insólito.
Viúva de Teseu ousando amar Hipólito!
Crê-me, esse monstro atroz não pode já fugir.
Eis o meu coração. E o podes atingir.
Impaciente expia assim ofensa tanta
e já para teu braço eu sinto que se adianta.
Fere. Ou se acaso crês o golpe indigno fosse,
se teu ódio me inveja um suplício tão doce,
ou se de um sangue vil a mão te era manchada,
na falha de teu braço empresta-me essa espada.
Dá.

ENONE:

         Que fazeis, Senhora? Ó vós, ó Deuses rectos!
Mas vem gente. Evitai olhares indiscretos.
Vinde, entrai e fugi vergonha assegurada.


  Racine, Jean. Fedra. Lisboa: Bertrand Editora, 2005, pp 85 - 89 (Edição bilingue com tradução de Vasco Graça Moura).
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quarta-feira, 4 de novembro de 2015


Helen Mirren (Fedra) e Dominic Cooper (Hipólito). Antigo Teatro de Epidauro, 2009. A célebre cena V do Acto II da Fedra de Racine. ( Foto de Tristam Kenton).
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A representação pública da peça La ville dont le prince est un enfant foi seguida (e precedida também) de um coro de críticas e opiniões grande parte das quais apontava as analogias da obra com o grande teatro do século XVII, nomeadamente com a Fedra de Racine. O próprio Montherlant escreve no Posfácio do texto: " La Ville est de ces pièces qui, comme les pièces des tragiques grecs ou celles du XVIIe siècle français, s'appuient sur deux psychologies: une psychologie qui est d'époque, et une psychologie qui est de toutes les époques. La seconde fait passer la première." ( in Posface p 189).
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- HENRIET: Est-ce que tu as tenu ta mère au courant?

- SEVRAIS: A moitié.

- HENRIET: Tu me rappelles de Linsbourg quand je lui ai demandé s'il disait tout en confession. Il ma répondu: "Je dis tout, mais pas les détails." Alors, ta mère supporte Souplier?

- SEVRAIS: Elle le suporte pour que je la supporte.

- HENRIET: Je pige pas.

- SEVRAIS: Je ne pouvais m'empêcher de prononcer le nom de Souplier, c'était plus fort que moi, et comme je rougissais en le prononçant, elle s'est mise à me picoter. D'ailleurs avec gentillesse, de sorte que je me suis découvert un peu. Un jour elle s'est écriée qu'elle savait tout. Elle voulait me faire voir qu'elle est fine, mais elle me faisait voir qu'elle n'est pas fine, car tout de suite je me suis refermé, et ce n'était pas ce qu'elle voulait. Elle a fouillé dans mon cartonnier, en forçant la serrure, et na rien trouvé. Moi, tu le devines, toujours de plus en plus fermé. Alors volte-face: elle s'est remise à me parler de lui gentiment, et moi je me suis rouvert. Avant tout, maintenant, ma mére veut garder ma confiance, et que je reste gai et ouvert avec elle. Nous parlons de Souplier presque tous les jours. Elle l'a appelé: "Ton petit copain." Je n'aime pas quand elle l'appelle comme ça. Ma mère n'as pas le ton. C'est difficile, de trouver le ton, quand on est parent. (...) Par lui, elle demeure dans ma vie. Par lui, elle me conserve. Et elle sacrifierait tout à cela. Elle est comme Agrippine avec Néron.

- HENRIET: Et du même coup, elle te rapproche de lui. Ça, c'est costaud.

- SEVRAIS: Une mère, c'est la langue d'Ésope: le meilleur et le pire. Mais, cette fois, je voulais être en paix avec tous, autant qu'avec moi-même (...).


  Montherlant, Henry de. La ville dont le prince est un enfant. Paris: Folio/ Gallimard, 1997, pp 75 - 76.
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terça-feira, 3 de novembro de 2015


                                         Acte I, scène III

- L'ABBÉ, souriant : Décidément, je vois que l'histoire nous en veut et ne nous lâchera pas! (Temps.) Je ne voudrais pas que vous continuiez de dissimuler, comme vous seriez peut-être tenté de le faire. Il y a aussi de la loyauté en vous: votre présence ici le prouve. Dans ces conditions (souriant), l'alliance serait peut-être plus heureuse que la guerre. Des circonstances se présentent quelquefois où nous devons accepter de bon coeur le risque d'être trompés; je veux dire: où cela est préférable à donner l'impression que nous avons l'obsession du mal. Il n'est pas impossible que je mise sur votre loyauté. In n'est pas impossible que je vous permette de continuer à voir Souplier, mais avec votre promesse solennelle - encore une! c'était bien la peine! - avec votre promesse solennelle que vos relations seront irréprochables.

- SEVRAIS : Monsieur l'abbé, je vous donne cette promesse solennelle!

- L'ABBÉ : Je crois, je crois infiniment au pouvoir de l'affection vraie. Je crois que l'affection vraie est le plus puissant levier qui existe sur la terre. Le bon Dieu nous fait une grâce en nous accordant d'aimer quelqu'un - Ce petit Souplier, ah, qu'il y aurait à faire en lui! (...).


Montherlant, Henry de. La ville dont le prince est un enfant. Paris: Folio/ Gallimard, 1997, p 45.


( A publicação é de 1997, mas seguiu a edição de 1967).
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