" Os óculos do meu vizinho"
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Num dos seus ensaios mais importantes (Hegel, Marx, Nietzsche ou o reino das sombras), Henri Lefebvre - filósofo que hoje ninguém lê - chama-nos a atenção para a estrutura triádica do pensamento ocidental: " O Ocidente europeu parece ter sido consagrado ao pensamento triádico ou trinitário.". (Lefebvre: 1975:43). Lefebvre põe como hipótese que tal estrutura do pensar tenha a ver com a geometria euclidiana e começa então a analisar os vários exemplos concretos: o Cristinianismo trinitário, que, como sabemos, não foi o modelo inicial da dita religião; a dialética hegeliana e a sua inversão segundo Marx, a lei dos três estados de Comte, etc.Por fim, e talvez ironizando, afirma que a sua tríade poderá ter alguma correspondência com a cristã: Hegel, seria o Pai, a imposição da Lei; Marx, o Filho, o acenar da práxis libertadora e Nietzsche, o Espírito e a Alegria (Lefebvre: 46). Torna-se claro que ao longo de todo o livro - de que seria exaustivo falar aqui - a supremacia libertadora é colocada em Nietzsche. Teria sido interessante o esmiuçar da importância dessa tríade no pensamento grego - exº: na visão do homem nos Pitagóricos, em Platão, etc., mas igualmente falar da importância da díade no pensamento ocidental: os que acedem ao Logos versus os cegos, os cidadãos versus os estrangeiros, os que se salvam versus os que se perderão, etc. OS ÓCULOS do ocidente estão indissoluvelmente ligados à geometrização não só do pensar, mas também do relacional, quer este surja na sua vertente moral quer irrompa na prática política - exemplo: nós, os bons, versus os russos os maus. Esta geometrização é, muita vezes, acompanhada de má fé - exemplos: mesmo que eu conheça as teorias da necessidade de cercar a Rússia e de tentar fazê-la implodir, mesmo assim urge estigmatizá-la; mesmo que saiba que a monogamia diminui na escala animal à medida que nos aproximamos dos primatas mais perfeitos, mesmo assim quero-a para mim e forçar os outros a segui-la, aliás, não é por acaso que Judith Butler, numa entrevista e relativamente a este assunto, surpreende o repórter com a pergunta: "porquê dois?". De qualquer modo, na Filosofia ocidental, bem como na Crítica Literária poucos conseguiram fugir a este modelo de ÓCULOS: o olhar racionalizável, matematizável, a vida arrumadinha: os que escrevem para o futuro versus os que se deixaram ultrapassar. Muitos foram os escritores que se deixaram enredar nesta teia dos rótulos dicotómicos e das posições bem desenhadas numa hierarquização que ninguém sabe o que seja mas que todos defendem - exº: vejam-se as preocupações iniciais de Victor Hugo, Musset, Sainte Beuve e outros ao tentarem defender a inexistência de cisão entre Classicismo e Romantismo. Seja como for os ÓCULOS do Ocidente visaram sempre a marginalização do diferente e, ao mesmo tempo, a redenção do igual. Conclusão: a tríade e/ou a díade são a ARMAÇÃO DOS ÓCULOS OCIDENTAIS, UMA PRÁTICA DE ASCENSÃO DO MESMO visando, E PARADOXALMENTE PRATICANDO JÁ, uma etapa finalizadora, uma integração salvífica em Deus ou numa sociedade sem classes ou ainda num estar-aqui onde Vida e Estética coincidam (Cf. Vergílio Ferreira). Poucos escaparam a este modelo e de entre eles talvez se possa citar Schopenhauer, que no seu "O Mundo como Vontade e Representação" deixa claro que o tão propalado grau último só é susceptível de ser alcançado pela anulação - e sua fusão - da Vontade entendida como Representação na Vontade Infinita "matéria substancial" (?) de tudo quanto que É. Mas as influências da filosofia oriental neste filósofo são demasiadamente conhecidas (Schopenhauer; 2008, 721).
A Filosofia budista parece, pois, baralhar as mentes mais formatadas pela Lógica da Identidade, primeiro porque não é um pensar da marginalização e da segregação, mas um pensar da integração (Anagarika Govinda: 1960, pp 48-52), depois porque a tríade (ou a díade) não visa alcançar nenhum Além, já que o Além e o Aqui coincidem, sendo pois OS REFERIDOS ÓCULOS meros meios para vivenciar o aqui-além, quer nos filósofos clássicos (Nagarjuna: 1995), quer nos contemporâneos (Kalou Rinpoché: 1993:324), por fim, porque a salvação não é negociável com qualquer tipo de transcendência, mas liga-se ao modo como vou aprendendo e praticando a libertação do desejo, da posse, do sofrimento e me vou integrando nesse Vazio de tudo aquilo que Enche o que me cerca e É enquanto Vazio. Por conseguinte, no pensar oriental, toda a subida é simultaneamente uma descida, toda a ascensão é uma despossessão de tudo... e de mim próprio.
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Fotos: 1, Henri Lefebvre; Foto 2, Schopenhauer; Foto 3, Kalou Rinpoché; Foto 4, Anagarika Govinda.
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