sábado, 31 de dezembro de 2016




um velho ramo de árvore
balança na brisa do rio
a tarde esconde o canto das aves



Rocha, Rui. Taotologias. Fafe: Editora Labirinto, 2016, p 23.
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Nota - A poesia do luso-macaense Rui Rocha, recusando todo o tipo de narratividade bem como uma Lógica Formal de cariz ocidental, baseia-se fundamentalmente nas filosofias do oriente, sobretudo na Zen, assim, é intento desta escrita a apreensão do resplendor dos instantes simultaneamente belos, completos e absolutos. Sobre esta poesia escreveram já: José Carlos Seabra Pereira, no seu "O Delta de Macau" - uma exaustiva e rigorosa História da Literatura de Macau -, Yvette Centeno numa postagem recente no seu blogue,,, e há também um longo artigo meu no Nº 44 da Revista de Cultura/ Review of Culture (International/ Macao).
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016


A presente obra - que engloba poemas desde o livro A Flor e a Noite (1955) até ao livro As Linhas que Perduram (2016) - foi publicada por ocasião do Doutoramento Honoris Causa atribuído a António Salvado pela Universidade da Beira Interior.
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    "O olhar de ver"


Em tudo o que tu vês    eu moro aí,
em tudo o meu olhar    a ti só vê -
conforto de presença tão contínuo
que não sabe onde surge    onde termina
dentro do modo    o tempo deste ver.

Nem eu alcanço outro horizonte além,
nem tu aqui outra maior distância -
e os olhos bem juntinhos não se lembram
de sentirem em si diverso alento
que não seja    -a tremerem-    a constância.

Por isso    como um lanço    os nossos corpos
ignoram qualquer 'spaço que os separe -
muito encostados    poros sobre poros
olham apenas o prazer que é nosso
com mais desejo encima    até fartarem.


 Salvadp, António. Poemas escolhidos. Castelo Branco: A 23 Edições, p 97 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016


  "A um poeta da estirpe de Horácio"


Fizeste um monumento
de lata    não de bronze
se bem que a tua mente
seja bronze o que esconde.
Nem a mais fina chuva
o há-de corroer
nem esse vento agudo
poderá desfazê-lo.

Com tal perenidade
a ter o monumento,
os anos não são nada
pelo fluir do tempo.
De modo que em ti vive
certa posteridade,
ó rejuvenescido
pelo brilho da lata!


  Salvado, António. Poemas escolhidos. Castelo Branco: A 23 Edições, 2016, pp 51-52 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016


   "De Dinamene a Camões"


Dentro da minha morte vive o breve
engano de teus versos magoados
e a trémula tristeza tão perene
que a vida fez mais longa de alongada

Tens nas mãos a memória quando escrevem
as secretas palavras celebradas
e nos lábios sem ânimo    apartado
o meu nome de carne e de mistério

Fui para ti o musgo sobre a pedra
a placidez das ondas entre o grito
a estrela humilde no teu céu de espera
ao sofrimento    à mágoa    à piedade

Repouso nos teus versos    Mas quem sabe
o sal maior das lágrimas vertidas?


  Salvado, António. Poemas Escolhidos. Castelo Branco: A.23 Edições, 2016, p 26 (Nota de apresentação de Margarida Gil dos Reis).
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domingo, 25 de dezembro de 2016


Há alguns anos assisti, na Bulhosa de Entre Campos e durante a apresentação de um livro, a uma discussão interessante entre o autor desse mesmo livro e o Prof. Eugénio Lisboa. Defendia este último, com aquela lucidez e o vasto saber que todos lhe reconhecemos, que apensar a um romance o rótulo de "literatura gay" seria afastar dele,, de imediato, todo um conjunto de leitores. Eugénio Lisboa ilustrou na altura a sua posição com um romance de Gore Vidal que ele considerava um excelente livro. Pessoalmente sempre me identifiquei com esta posição: nunca consegui perceber o que é literatura feminina, literatura masculina, literatura gay, literatura straight, etc.Nunca dei para o peditório de certos processos de rotulagem! Para o leitor compulsivo que sou, existem apenas temas, que são, foram e serão universais (a rejeição, o desamor, a angústia, a esperança, a melancolia, etc.) e existem igualmente procedimentos estílisticos inevitavelmente condicionados por variáveis históricas, sociais, políticas, etc. Se os grandes temas são abrangentes, já as referidas variáveis inserem-se, através de combinatórias múltiplas, em paradigmas que, teoricamente se assumem como explicativos e rígidos, mas na prática são bem mais fluídos do que aquilo porque se pretendiam. Vem isto a propósito do romance "Paris-Austerlitz" de Rafael Chirbes que aborda, através dos tais procedimentos estilísticos que não irei desenvolver aqui ( tempo narrativo descontínuo, apesar de analepses e resumos recusa de uma narração fragmentária, introspeção assumidamente proustiana do narrador, etc.,etc.), para além desses procedimentos, encontramos aqui temas que polvilham a literatura universal: o etarismo, que aqui é entre dois seres do mesmo sexo, e as condicionantes educacionais e económicas como fatores fundamentais nas ruturas amorosas. Este é o nó górdio da obra, bem como o fator que leva ao título do "El mundo": "O amor como armadilha mortal".
Estamos aqui, e no que diz respeito A UM DOS TEMAS da relação em si, longe do realismo "cru" de Michael Cunnynghan e de Edmund White; da metáfora social e política do "Line of Beauty" de Hollinghurst, do realismo decadentista e escatológico de Cyril Collard ou de Renaud Camus com o seu "Tricks". Rafael Chirbes, pela contenção e delicadeza da escrita integra-se, na minha opinião, em certas linhas do realismo lírico, onde poderemos encontrar escritores e obras como o italiano Pier Vittorio Tondelli e, o "Terre lointaine" de Julien Green, no que diz respeito àquilo a que eu chamei "o proustianismo" do narrador será interessante comparar este livro com as análises do mundo interior, feitas nos seus romances por Hervé Guibert, sobretudo no seu "A l'ami qui ne m'a sauvé la vie".


V.O.M.
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 Prometi. Regressaria a Madrid depois da vernissage. Passaria a gerir a empresa familiar. Tudo o que eles quisessem.
   No regresso, não quis contar a Michel aquela farsa, nem sequer lhe disse que daí em diante deixaria de ter problemas económicos. Não me movia qualquer vontade de ocultação. Mas a minha ausência durante as duas semanas que passei em Madrid tinha abalado fortemente a nossa relação, e imaginei que, se soubesse que eu já não estava economicamente dependente dele, Michel daria por certo que o abandonaria em breve. Esta ideia obcecava-o desde o momento em que lhe anunciara a minha viagem. Resmungava constantemente: eu sei como as coisas são. Achas que não percebo? Percebo, pois. Não é a primeira vez que isto me acontece.
   Disse para comigo que ele se iria apercebendo a pouco e pouco da questão do dinheiro e que depois haveria tempo para lhe explicar tudo com calma. A nossa despedida na gare de Austerlitz tinha sido patética: copos na buvette, olhos lacrimejantes e vermelhos, lábios húmidos, um adejar de escuros presságios. Parado junto à linha, cada vez mais diminuto à medida que o comboio ganhava velocidade, Michel pareceu-me envelhecido. Foi a primeira aparição de um Michel inseguro e trágico que tantas vezes voltaria a ver ao longo dos meses seguintes. E, possivelmente, foi também a primeira vez que me detive a pensar no facto de que vivia com um homem quase trinta anos mais velho do que eu. Je sais bien que tu ne vas pas revenir..
   Escondi entre os meus utensílios de pintor o novo livro de cheques do Banco Santander que tinha trazido de Madrid. Depositava na caixa comum em que guardávamos o dinheiro pequenas quantias que extraía dessa conta, o que me permitia comprar, cada vez com menos discrição, materiais de trabalho. Começava a ser-me indiferente que ele descobrisse a minha nova situação económica, posso até dizer que essa segurança me tornava mais afetuoso (...). Michel não compreendia que eu, podendo mudar-me, preferisse continuar a viver com ele. Eu fazia os possíveis para vencer as dúvidas que, causadas pela desconfiança dele, me assaltavam com frequência. Ocorria-me, sim, que podia viver de outra forma e libertar-me de uma situação de pobreza que me parecia cada vez mais artificial (...).
   Mas estava, ou queria estar, apaixonado por ele: que mais dá, que diferença faz, querida Jeanine? Nunca tencionei magoá-lo. Gostava de Michel. Desejava-o, as piadas dele faziam-me rir, atraía-me a carnalidade que emanava a cada movimento. Ao fim de algum tempo, já não sabia se o que sentia por ele era amor (que diabo é isso, ao certo?: à força de o analisarmos e dissecarmos acabamos por perdê-lo), mas sim,posso jurar que foi uma entrega  sem resistência, não porque não quisesse resistir, mas porque não pude. (...) Agradava-me a solidão entre aqueles móveis desengonçados. Era generosa a simples decisão de permanecer ali, quando podia muito bem mudar da casa. Foi assim. Durante alguns meses, pelo menos, foi assim.


  Chirbes, Rafael. Paris-Austerliz. Porto: Assírio & Alvim, 2016, pp 74-76 (Tradução de Rui Pires Cabral).
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sábado, 17 de dezembro de 2016


   Est-ce que ta douce maman va venir te voir?, ria-se. Tinha-me ouvido falar mal dela inúmeras vezes e parecia-lhe incrível que viesse visitar-me a Paris. Veio, de facto, mas evitei que eles se encontrassem. Pouco tempo depois; Michel começou a recriminar-me por não o ter apresentado à minha mãe (tiveste vergonha de mim), quando ele, pelo contrário, além de me levar a Lecreux para conhecer a dele, tinha-me dado guarida durante meses, tinha-me alimentado e vestido, tinha-me dado até l'argent de poche para gastar no bar, no cinema, ou para comprar roupa e tabaco. Nunca o disse exatamente assim, mas eu pressentia por detrás dessas censuras a reivindicação dos direitos que a minha dívida para com ele lhe concedia. Não era um homem mesquinho, mas as suas insinuações destilavam mesquinhez. Quando lhe disse que não suportava cenas de ciúmes, replicou: não consigo evitar, é uma coisa hereditária;(...) O alcoolismo e os ciúmes são hereditários, como a sífilis, disse-me. Fico informado, Michel, retorqui com um gesto de cansaço. Mas os ciúmes do teu pai resultavam do facto de a tua mãe ter trabalhado como puta para os invasores da pátria, e eu trabalho como desenhador numa empresa de decoração. Não é exatamente a mesma coisa. Disse-lho de muito mau modo e arrependi-me assim que pronunciei tais palavras, e nessa mesma noite fui ao bar dos marroquinos para lhe pedir desculpa. Não o encontrei, nem em casa. Sentia-me culpado. Michel jamais me trairia, era um cão fiel (igual a si próprio até ao limite do tédio). Era o mesmo petit pays en devenu prolétaire que me tinha acolhido em sua casa, e os seus modos, a sua exigência de exclusividade, e sua vontade de me possuir por inteiro e que eu o possuísse em iguais condições foram assim desde o primeiro dia. No início, esse ardor lisonjeou-me, deu-me segurança, devolveu-me um certo orgulho e salvou-me do meu próprio desamparo, mas agora já não era assim.
   A primeira vez. Noite de sexta-feira. (...) Nem sequer me ocorrera que eu pudesse interessar àquele tipo corpulento e desalinhado que fumava Gitanes como um louco, mas passámos na cama o resto do serão de sexta-feira. Fumámos, bebemos, e eu abriguei-me num corpo cuja solidez parecia capaz de suportar qualquer prova de resistência. Ele pôs a tocar no gira-discos as canções mais sentimentais de Brassens: Par le petit garçon qui meurt près de sa mère. O disco girava e eu abraçava o homem e sentia vontade de chorar, como se fosse eu a criança moribunda e ele me lamentasse muito.


 Chirbes, Rafael. Paris-Austerlitz. Porto: Assírio & Alvim, 2016, pp 51-53 (Tradução de Rui Pires Cabral).
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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016



             "  Pausa "


Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas -
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade -
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.


   Pozzi, Antonia. Morte de uma estação. Lisboa: Averno, 2012, pp 85-87 (Tradução de Inês Dias).
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016


     " Leve oferta "

Queria que a minha alma te fosse
ligeira
como as últimas folhas
dos choupos, que se incendeiam ao sol
sobre os ramos envoltos
de névoa -

Queria guiar-te com as minhas palavras
por uma alameda deserta, semeada
de ténues sombras -
até um vale de silêncio coberto de erva,
até ao lago -
onde vibra a cada sopro de ar
o canavial
e as libélulas brincam
em águas pouco profundas -

Queria que a minha alma te fosse
ligeira,
que a minha poesia te fosse uma ponte,
subtil e segura,
branca -
sobre a escura voragem
da terra.


 Pozzi, Antonia. Morte de uma estação. Lisboa: Averno, 2012, pp 81-83 (Tradução de Inês Dias).
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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016





     "Campos Cifrados"

Mesmo que esses pássaros do desejo
não nos queiram perdoar,
há que ter em mente a realidade
dos campos cifrados.

De nós mesmos, que se sabe?
De nós e das estrelas que caem,
do pó elementar dos sonhos
- que se sabe?


   Brasileiro, Antonio. Sem/título. Feira de Santana: Edições MAC Feira, 2016, p 45.
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 " A cigarra e sua guitarrinha & a formiga e sua vidinha "

Uma vez uma Cigarra
tocava sua guitarrinha
pra nada.

Mas aí veio a Formiga,
que só trabalhava e mais
nada.

E disse: "Cigarra, oh
Cigarra, olha bem como isto
acaba"

E a Cigarra tocava
que tocava sua guitarra.

Mas veio o frio
inverno e a Cigarra
se viu

num inferno: que comer,
se não juntara nada?
E foi bater

na porta da Formiga,
a precavida. E então?
"Então

- lhe disse a For
miga-, tu não
cantavas?

Agora dança." E foi
pegar sua sanfona há anos
esquecida.

Oh,
coitada da Formiga, tão
enferrujada!

Tocava tão mal e tão
desajeitada.

Como é que se perde,
assim toda uma
   vida?


Brasileiro, António. Sem/ título. Feira de Santana: Edições MAC Feira, 2016, 51-52.
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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016



  "  La muerte de Dido  "

He cruzado el desierto.
Pero nunca pasó el tiempo en mi rostro,
porque aún conservo el tibio candor
de la belleza que alguna vez me prometieran.
Nadie entenderá mi muerte justo ahora
que he visto las ciudades más hermosas,
cómo se demoraba la luz en cada flor
que nacía en los palacios de Cartago.
Pero he cruzado el desierto,
y quien ve su propria imagen durante esa travesía,
aunque sea una noche, sabe que poco importa ya
que la arena pueda convertirse en tiempo
o en camino.

Cada día sé que tengo el mismo destino que esa tierra:
esparcirme en mil pedazos y no llegar a parte alguna.


  Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartelby Editores, 2016, p 30.

          " Calipso "

Amaba las cosas que eran mías:
el silencio desnudo, salpicado de agua,
la piedra limpia donde crecían los dioses
y bajo los rios reposaba.
Nada era vencido por el tiempo
y nada era mayor que esa blancura.

Caminaba ciega por los valles,
amada por la tierra.
Recogía flores en desiertos de sombra,
con todo el fulgor de la alegría posado
en cada gesto.

No existia el principio ni el fin del vuelo de los pájaros.
Cruzaban el aire
en círculos de nieve, buscando la mañana.
Besé la claridad como bebía el agua más pura
de limpios manantiales.

Y casi te hice eterno.

Pero nunca pude adivinar
lo que la mano de la noche
estaba haciendo
- tan callada y lenta -
al fondo de esta luz,
a cada instante:
un eterno adiós de todo aquello tan hermoso
que fue mío y ya no estaba.


   Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartleby Editores, 2016, pp 41-42.
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terça-feira, 6 de dezembro de 2016



       " Calipso "

Amava as coisas que eram minhas:
o silêncio desnudado, salpicado de água,
a pedra limpa onde cresciam os deuses
e no fundo dos rios repousava.
Nada o tempo vencia
e nada era maior do que essa brancura.

Caminhava cega pelos vales,
amada pela terra.
Colhia flores nos desertos de sombra,
com todo o fulgor da alegria pousado
em cada gesto.

O voo dos pássaros não tinha princípio nem fim.
Cruzavam o ar
em círculos de neve, procurando a madrugada.
Beijei a claridade como se bebesse a água mais pura
de límpidos mananciais.

E quase te fiz eterno.

Mas não podia adivinhar
o que a mão da noite
andava urdindo
- tão lenta e calada -
por baixo desta luz,
a cada instante:
um eterno adeus de tudo aquilo, que, formoso,
foi meu, mas já ali não estava.


  Vilar, Marta López. En las aguas de octubre. Madrid: Bartleby Editores, 2016, pp 41-42 ( Tradução: Victor Oliveira Mateus).
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016



        " Vice - Versa "


Deixei há muitos anos de
ter medo do ridículo. Sorte
minha ter encontrado talvez
alguns alguéns que não acharam
muito ridículo o que eu dizia. Aliás
nada é mais ridículo do que tudo
que é muito humano: defecar
em fraldas nos primeiros tempos de
vida ( e muitas vezes nos últimos). Ter
de trabalhar para poder comer ou
vice-versa. As bodas nupciais e os
prováveis antónimos. Os exércitos as igrejas
os parlamentos e no final as nossas
necrópoles com pindéricos retratos
de esmalte apostos em tabuletas de
mármore igualmente pindéricas. E mesmo
a nova moda de derreter o morto até às cinzas
esse copianço hindu que em nós resulta
num morto mais portátil e mais fácil
de esquecer
é como todas as coisas humanas
ridícula.


   Lourenço, Inês. O Jogo das Comparações. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p 44.
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domingo, 4 de dezembro de 2016


        " Esta - Outras Vezes "

Em certas horas apetece
supor que o retorno existe. E que na próxima
vida iremos aos lugares a que não fomos
nesta: a um primitivo Ganges
à Lapónia mais distante às ilhas mais perdidas ao oceano
mais profundo ao vulcão mais feérico e fatal

E não podemos saber
se nesse tornar regressaremos tolhidos de algum
sentido, deturpadas vítimas ou escravos ou
pedintes de rua. Por isso vamos contando o decrescer
dos dias, nesta vez que nos cederam
sem garantias de regresso

Nenhuma divindade nos desvenda
o cessar do coração, a outra face
dos nomes que soam a eternidade
sempre tão distantes
do ruído do mundo.



       Lourenço, Inês. O Jogo das Comparações. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2016, p 23.
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sábado, 3 de dezembro de 2016



          " saudade definida "


e o que é a saudade
senão um poço aberto no peito
de onde içamos água de sombra?


  Mancelos, João de. O teu Nome incendiado de Azul. Lisboa: Edições Colibri, 2016, p 62.
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          " pássaro de cristal "


ainda que tenhas nascido escravo e filho de cativos,
ainda que da tua amada só restem cabelos no leito,
ainda que nenhum deus se tenha sacrificado por ti,

ainda que só conheças as pétalas apagadas de um verso,
ainda que a primeira noite de verão tenha sido a mais longa,
ainda que enterrasses teu pai, e a pá te pese como uma cruz,

ainda que tudo isto e o que ocultas tenha sido verdade,
não esqueças: algures, existe um pássaro de cristal
cantando mudamente para ti.


  Mancelos, João de. O teu Nome incendiado de Azul. Lisboa, Edições Colibri, 2016, p 36.
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quinta-feira, 24 de novembro de 2016



        " Question Sociale " (1)

Ô détresses du faible! ô naufrage insondable!
Un jour j'ai vu passer un enfant formidable,
Une fille; elle avait cinq ans; elle marchait
Au hasard, elle était dans l'âge du hochet,
Du bonbon, des baisers, et n'avait pas de joie;
Elle avait l'air stupide et profond de la proie
Sous la griffe, et d'Atlas que le monde étouffait,
Et semblait dire à Dieu: Qu'est-ce que je t'ai fait?
Dieu. Non. Elle ignorait ce mot. Le penseur creuse,
L'enfant souffre. Elle était en haillons, pâle, affreuse,
Jolie, et destinée aux sinistres attraits;
Elle allait au milieu de nous, passants distraits,
Toute petite avec un grand regard farouche.
Le pli d'angoisse était aux deux coins de sa bouche;
Tout son être exprimait Rien, l'absence d'appui,
La faim, la soif, l'horreur, l'ombre, et l'immense ennui.
Quoi! l'éternel malheur pèse sur l'éphémère!

On entendait quelqu'un rire, c'était sa mère;
Cette femme, une fille au fond d'un cabaret,
N'avait pas même l'air de savoir qu'ont errait
Dehors, là, dans la rue, en grelottant, sans gîte,
Sous le givre et la pluie, et qu'on était petite,
Et que ce pauvre enfant tragique était le sien.
Cette mère, pas plus qu'on ne remarque un chien,
N'apercevait cet être et sa sombre guenille.
Sorte de rose infâme ignorant sa chenille.

Elle-même jadis été cela.

Maintenant, Margoton changée en Paméla, (2)
Elle offrait aux passants des faveurs mal venues,
Chantante; elles étaient toutes deux demi-nues,
L'une pour les affronts, l'autre pour les douleurs;
La mère, gaie, avait au front d'horribles fleurs;
Il arrivait parfois, vers le soir, à la brune,
Que la mère et l'enfant se rencontraient, et l'une
Regardait son passé, l'autre son avenir.

Voir l'une commencer et voir l'autre finir!
Ô misère!

          L'enfant se taisait, grave, amère.
Cette femme, après tout, était-elle sa mère?
Oui. Non. Ceux qui mêlaient autour d'elles leurs pas
En parlaient au hasard et ne le savaient pas.
L'infortune est de l'ombre, et peut-être cet ange
N'avait-il même pas une mère de fange,
Hélas! et l'humble enfant, seul sous le firmament,
Marchait terrible avec un air d'ètonnement,
Elle ne paraissait ni vivante ni morte.
- Mais qu'a donc cet enfant à songer de la sorte?
Disait-on autour d'elle. - Est-ce qu'on la connait?
Non. Les gens lui donnaient du pain qu'elle prenait
Sans rien dire; elle allait devant elle, indignée.
Pour moi, rêveur, sa main tenait une pognée
D'invisibles éclairs montant de bas en haut;
Ses yeux, comme on regarde un plafond de cachot,
Regardaient le grand ciel où l'aube ne sait naitre
Que pour s'éteindre, et tout l'ensemble de cet être
Était on ne sait quoi d'âpre, de bégayant,
Et d'obscur, d'où sortait un reproche effrayant; (3)
La ville avec ses tours, ses temples et ses bouges,
Devant son front hagard et ses prunelles rouges
S'étalait, vision inutile, et jamais
Elle n'avait daignè remarquer ces sommets
Qu'on nomme Panthéon, Étoile, Notre-Dame;
On eût dit que sur terre elle n'avait plus d'âme,
Qu'elle ignorait nos voix, qu'elle était de la nuit
Ayant la forme humaine et marchant dans ce bruit;
Et rien n'était plus noir que ce petit fantôme.

La quantité d'enfer qui tient dans un atome
Étonne le penseur, et je considérais
Cette larve, pareille aux lueurs des forêts,
Blême. désespérée avant même de vivre,
Qui, sans pleurs et sans cris, d'ombre et de terreur ivre,
Rêvait et s'en allait, les pieds dans le ruisseau,
Némésis de cinq ans, Méduse du berceau. (4)


 Hugo, Victor. Oeuvres Poétiques, Antologie. Paris: Le Livre de Poche, 2002, pp 382 - 385.


(1) Poema do livro "La Légende des Siècles, Nouvelle Série" (1877);
(2) A mãe toma como "nome de guerra" o nome da heroína do célebre romance  sentimental de Richardson;
(3) A culpa e o medo são os sentimentos que se prendem à visão des misérables após a Comuna de Paris;
(4) A Medusa é uma das três Górgonas da Mitologia Grega, enquanto Nemésis é a deusa da vingança, mas não no sentido das Erínias ou Fúrias ou Benevolentes, que executam uma vingança cega; Nemésis apenas pune os mortais orgulhosos que tendo recebido demasiados dons se envaidessem com eles.
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quarta-feira, 16 de novembro de 2016



(1)
Demain, dès l'aube, à l'heure où blanchit la campagne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m'attends.
J'irai  (2) par la forêt, j'irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Je ne regarderai ni l'or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur, (3)
Et, quand j'arriverai, je mettrai sur ta tombe (4)
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.

                                                  3 septembre 1847.


  Hugo, Victor. Oeuvres Poétiques, Anthologie. Paris, Le Livre de Poche, 2002, p 220.

(1) Poema sem título pertencente ao livro "Les Contemplations" (1856);
(2) Esta peregrinação acaba por se transformar numa viagem metafísica;
(3) Harfleur, cidade próxima de Villequier, local onde vivia - com o marido - a sua filha preferida, Léopoldine;
(4) A morte súbita de Lèopoldine Hugo marcaria profundamente o escritor.
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domingo, 13 de novembro de 2016


(...)
Alors, oh! je maudis, dans leur cour, dans leur antre, (1)
Ces rois dont les chevaux ont du sang jusqu'au ventre!
Je sens que le poète est leur juge! je sens
Que la muse indignée, (2) avec ses poings puissants,
Peut, comme au pilori, les lier sur leur trône
Et leur faire un carcan de leur lâche couronne,
Et renvoyer ces rois, qu'on aurait pu bénir,
Marqués au front d'un vers que lira l'avenir!
Oh! la muse se doit aux peuples sans défense.
J'oublie alors l'amour, la famille, l'enfance,
Et les molles chansons, et le loisir serein,
Et j'ajoute à ma lyre une corde d'airain!


  Hugo, Victor. Oeuvres Poétiques, Antologie. Paris: Le Livre de Poche, 2002, p 103.
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(1) Final do poema "Amis, un dernier mot..." do livro "Les Feuilles d'Automne";
(2) Lembrando o verso de Juvenal: "Facit indignatio versum" (Sátiras, I, 79) e anunciando o verso de "Châtiments": "Muse indignation, viens!" ("Nox").
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segunda-feira, 10 de outubro de 2016


AQUI:

https://www.youtube.com/watch?v=Oa0GnHc9-2o&feature=share  

Youtube:  "Le paradoxe de l'écrivain M. Yourcenar sottotitolato "
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   Creio que falar da condição do artista, e por artista entendo também o escritor, aquele que faz uma obra de arte, um quadro, um livro ou uma composição musical (... ) Diderot escreveu um ensaio - se não estou em erro - que se chama "O Paradoxo do Comediante", mas há também "um paradoxo do escritor" (...) e um paradoxo é que duas coisas ao mesmo tempo são verdadeiras e contraditórias entre si: uma é que o escritor deve ser profundamente "si-próprio", mas que deve também sair de "si-próprio", fazer tábua rasa de si próprio, as duas exigências que têm o aspeto de ser contraditórias, no seio de uma realidade que compreende todas as contradições, não o são.
   A principal razão, creio, da má literatura é que o escritor (...) diz a si próprio: "eu penso qualquer coisa", "eu sinto qualquer coisa", "eu digo-me qualquer coisa", logo, isso será bom para um livro, ora, isso é falso por uma simples razão: será que ele pensa qualquer coisa? Que sente qualquer coisa? Que diz a si qualquer coisa? Ou será que o que fervilha no seu espírito são reflexões de poeira? De coisas que ele ouviu (...), de coisas que ele crê sentir, coisas em que crê crer? Então, isto quer dizer que estamos a anos-luz da realidade.
   O primeiro dever do escritor julgo ser - antes de tudo - a atenção, uma enorme atenção ao que ele sente, ao que ele experiencía, uma atenção quase terapêutica, para não se enganar a si próprio... e uma imensa atenção ao universo que o cerca. Em escritos de filósofos do Tao (...) existe uma espécie de provérbio, de máxima (...): "Governar um grande império é a mesma coisa do que fritar um minúsculo peixe", isto quer dizer que ambos exigem uma atenção completa, um atento cuidado daqueles que os executam, direi o mesmo para um grande livro: escrever um grande livro será como fritar um prato de peixe ou de legumes, será colocar toda a atenção, todo o talento, toda a boa vontade de que se é capaz numa só ação. E isso eu acredito que é, em matéria de literatura ou em matéria de arte, a base de tudo. A atenção é uma qualidade excessivamente rara... desde que se faça trabalhos de psicologia oriental (...) onde se vê a relação do homem consigo próprio e a primeira virtude aconselhada é a atenção: estar atento ao que se faz, estar atento ao movimento dos seus músculos, estar atento ao seu olhar, ver exatamente o que acontece em nós e fora de nós.... e o escritor que escreve um livro utiliza milhões de anotações que fez - muitas até sem se aperceber que as fez -, mas que passaram através desta espécie de processador que é o seu cérebro e quanto mais um livro é rico (...) melhor vemos que o mínimo detalhe tem um valor de extrema realidade: o autor partiu de um pequeno facto, de uma pequena sensação que ele conheceu verdadeiramente...: a atenção é o primeiro dever do escritor! Agora... como alcançar esse nível de atenção? Penso que será interessante citar alguns fragmentos, que não se relacionam apenas com a arte de escrever, mas com todas as artes quaisquer que sejam e com todas as formas de vida, excertos que eu encontrei num texto de Caxemira, um texto de uma tribo de Caxemira [ pega num livro e começa a ler ]  "(...) que um espírito centrado numa coisa não a larga tão cedo para se lançar na direção de outra coisa ", quer dizer que em todas as sensações, em todas as emoções, em todas as descrições de um facto há uma margem (...) é verdade que em todas as circunstâncias da vida as pessoas que pensam "comocionalmente" não veem essa margem que cada coisa comporta em si. [ Lendo outro fragmento relativo à tal tribo da Caxemira ]  "Na ansiedade, no terror (...) nos turbilhões - é preciso notar que Montaigne diz algo semelhante -, quando superamos um precipício, quando se está em perigo, quando se sente uma viva curiosidade, nos momentos em que nos apercebemos, ou apaziguamos, o fim, a existência revela-se-nos", de novo este excerto sobre a passagem de uma sensação a outra, que é de tal modo importante, mas que o escritor "comocional" apaga sempre, e que é excessivamente sensível a uma espécie de mobilidade do detalhe que existe, de facto, em todos os grandes escritores.
   Outra coisa que não se prende com a literatura, mas que se pode ligar a ela [  e volta à leitura dos fragmentos ] : " (...) pensar com intensidade o seu próprio corpo como desprovido de suporte ", quer dizer, nós cremo-nos firmemente implantados em qualquer coisa, mas nós - na realidade - não estamos fixados em absolutamente nada: os nossos caracteres, as nossas personagens, as coisas que descrevemos... é preciso não esquecer este elemento de instabilidade de base que existe sob a estabilidade! (...) quando eles [ a tribo ]  dizem: "meditar sobre o universo como sobre um turbilhão" eles querem dizer o mesmo. Outra coisa [ e lê outra passagem ]: " prestai atenção ao desconhecido, ao inapreensível, ao vazio, a tudo o que jamais acederá à existência " e, com efeito, por detrás de cada situação, por detrás de cada ser, existem todas as virtualidades, todas as possibilidades nele... que ele não revelou ainda, que talvez nunca venha a revelar, mas que estão ali, que o enriquecem sem que ele o saiba, e isso é outra coisa que nós não devemos nunca descurar quando pensamos - nós romancistas - nas nossas personagens. [ Volta a ler ]: "Não fixar o pensamento", há pouco falei de fixar a atenção, sim, mas o pensamento, não, porque o pensamento é já uma opinião, trata-se que o espírito seja sem opinião para que possa refletir todas as coisas, Stendhal dizia, numa metáfora bizarra, mas que é muitas vezes utilizada no equivalente da pintura ultramoderna  como a do pintor americano (??? ) e que é meu vizinho aqui, " o espírito é uma espécie de espelho que passeia pela estrada", um pouco surpreendente, mas o pintor americano, por exemplo, mostra as janelas dos autocarros refletindo os passantes e as outras janelas que passam [ volta a ler ] : " limitar o seu próprio si-próprio no modo de um firmamento ilimitado" , quer dizer que nós somos muito maiores do que nós, , o que não é, de modo algum, uma forma de orgulho... O escritor (...) cada vez que conclui um livro, diz: "Meu Deus, consegui escrever isto!" Ele experimenta o mesmo sentimento que se encontra na balada alemã, a do cavaleiro que atravessou o Lago Constança completamente gelado, à noite, sem se aperceber que era um lago e que cai, soluçando, do seu cavalo, quando se apercebe do que acabara de fazer; cada vez que o escritor - e posso dizer o artista (...) - termina uma obra ele tem a sensação que esteve preso longe de si e que regressa a um domínio que é o da sua vida e é aqui que eu acho que há uma nota essencialmente importante: o escritor deve viver! Alguém que diz: "Bem, vou retirar-me para escrever um livro" , esse livro será seguramente mau! Já veremos porquê! Ibsen diizia, maravilhosamente: "um escritor que recusa viver torna-se num mau escritor" (...) ele está privado de certos elementos vitais e é na linha desses elementos vitais que se trata de permanecer. Não só a vida presente, mas também a vida passada enforma um livro em muito da sua substância..... essa vida naquilo que o escritor diz, mas não como o público crê, não é necessariamente a história do escritor: depois de eu ter escrito a morte de Antínoo afogado no Nilo, várias pessoas vieram perguntar-me, com ar compadecido, se eu tinha tido amigos que se tinham afogado, mas não necessariamente, não é dessa maneira que as coisas se passam, aquilo de que se trata é de transferir tudo o que aprendemos da vida para dada personagem ou circunstâncias que descrevemos, porque as que não vivemos vemo-las sempre através de certas convenções e de certos preconceitos, é somente quando fazemos algo ou quando sofremos algo - o que muitas vezes é mais importante do que fazer - que aprendemos a ver como as coisas são. Enquanto um indivíduo não é rico, ele fala dos ricos como de uma espécie de monstros - que frequentemente até o são! - , mas sem saber exatamente o que significa a possibilidade para alguém de uma certa espera de viver como lhe apraz (...) Alguém que nunca foi pobre não conhece, de modo algum, a servidão da pobreza (...) a pobreza é para ele um estado quase místico, muito complicado, que é preciso atravessar para o conhecer e a mesma coisa para todos os estados... a doença também é um estado e aquele que nunca esteve doente é um monstro, dizia Tolstoi, seria - em todo o caso - um mau escritor, por outro lado aquele que poderá renunciar, que perdeu completamente a saúde é alguém que poderá escrever profundamente nessa direção e inscrever-se nessa onda vital, a tal ponto que as técnicas da psicologia oriental aconselham a alguém que esteja muito doente de se imaginar caminhando, de se imaginar subindo uma montanha, de se imaginar nadando, para não perder o contacto com a realidade corporal - e é esta utilização da vida pelo livro que é tão importante!
   A vida oferece muito mais possibilidades do que aquelas que o escritor pode registar no seu livro, mas ele escolhe sempre através dessas possibilidades e a questão da escolha é extremamente misteriosa: porque é que um escritor escolhe um assunto em vez de outro? Porque há uma continuidade numa certa direção da sua obra através da diversidade? É difícil dizer e ninguém conseguiu explicar mesmo recuando às memórias ancestrais, aos genes, a certos sistemas metafísicos, o que quisermos.... que certas influências, certas impressões dominam certos seres e não dominam outros, é verdade na vida e é verdade na escrita, é isso que distingue a escrita de um Shakespeare ou a de um Tolstoi ou a de um Schopenhauer. Poder-se-ia dizer que as influências vinham dos livros lidos quando se é jovem, mas os psicólogos mais recentes não acreditam muito nessas influências da primeira juventude. Como é que se aborda a questão das influências dos outros escritores? Ela é muito sensível e, por vezes, incomodamente visível nas primeiras obras dos autores (...) quando se lê as primeiras obras de Flaubert percebe-se que ele imita os primeiros escritores "românticos negros" à maneira alemã, mas isso não dura muito, decanta-se rapidamente e Goethe disse - e muito bem - que na realidade tantas influências literárias e culturais que se exercem sobre um ser que ele mesmo é incapaz de distinguir umas das outras (...) e quanto mais um escritor é cultivado, quanto mais ele leu, mais ele sabe - se ele consegue levar a cabo essa tarefa de transformar em prestígio isso que sabe e adquirir uma espécie de vanidade da escrita, o que é bastante perigoso - se ele consegue fazer de todas essas cores misturadas uma espécie de cinzento sobre a qual ressalta a sua própria individualidade, a sua própria vida... eu não acredito nas influências nas obras dos grandes escritores, eles são assim únicos porque souberam tirar estranhamente das circunstâncias, dos factos e das emoções que foram as suas e é isso que faz com que sejam reconhecíveis logo numa primeira abordagem, nós não nos enganamos ante um verso de Victor Hugo ou ante um verso de Rimbaud e, para voltar à história das influências, sabe-se perfeitamente, porque todos os livros que Rimbaud leu entre os treze e os dezasseis anos, já que ele tinha uma biblioteca conscenciosa em Charleville que conservava as fichas, e vê-se perfeitamente como através de livros de viagens, como através dos romances populares que ele leu na época - a biblioteca não era muito rica - certas imagens do "bateau ivre" e, no entanto, o "bateau ivre" é Rimbaud, já que muitos outros alunos leram os mesmos livros de viagens, os mesmos romances populares e nenhum escreveu: " - Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,/ Million d'oiseaux d'or, ô future vigueur?", para alcançar esta aliança de imagens é necessário que tenham sido as emoções de Rimbaud e não de qualquer outra pessoa, pode então dizer-se que todo o grande escritor é inimitável, o próprio Victor Hugo dizia: "imitar Shakespeare será tão insensato, como imitar Racine seria estupidez" e em escritor sobre o qual me tenho debruçado ultimamente, pois fiz o seu elogio na Academia Francesa - e que contrariamente às asneiras que a imprensa americana tem dito tenho por ele um enorme respeito - que é Roger Caillois, dizia também ele que cada escritor era inimitável e que se produzia uma espécie de "concreção" como a das pedras submetidas à ação da água ou à ação do fogo e dizia - muito bem! - imitar Racine é uma aventura, para Voltaire - que, aliás, já ninguém lê - uma tragédia é já literatura... e para cada escritor cada livro é uma aventura e forçosamente porque não se tem duas vezes a mesma perspetiva (...) a vida é de tal modo diversificada, por exemplo, e falando de mim própria que é de quem me lembro melhor, Adriano é a história de um homem inteligente, é este homem inteligente e dono do mundo  ... e eu escrevi o livro logo após a guerra de 45, na época em que havia a ingenuidade de acreditar que um homem ou uma organização inteligente, como as Nações Unidas, poderiam ainda melhorar o mundo e houvesse um suporte para a cultura, dez anos mais tarde escrevi "L'oeuvre au noir" é de novo a história de um homem inteligente, mas este homem inteligente encontra-se numa roupagem dividida em dois por uma espécie de cortina de ferro, que no seu tempo era o catolicismo e o protestantismo, que nos nossos dias é uma cortina de ferro comunista/capitalista, e os perseguidos desconfiam de toda a gente, já que não estão de acordo com ninguém, ora, ele tem a sensação de que é vencido pelo número, seja o que for que aconteça e, por mais inteligentes que sejam as proposições que ele defende, elas jamais serão aceites (...) é quase o mesmo homem, embora não tenha o mesmo temperamento (...) mas na sua inteligência para compreender e dominar as coisas é o mesmo, com a diferença que um é imperador e dono do mundo e o outro é um médico pobre que anda de cidade em cidade. Mas falei até agora da psicologia da composição, da moral da composição, dos esforços do escritor de se impor para compreender e para voltar a sua atenção na direção do que observa, quer seja a si próprio quer seja aos outros, agora há uma questão também muito importante que é artesanal: quando somos músicos aprendemos, antes de tudo, a tocar uma escala musical e quando somos pintores devemos aprender o sistema das cores, como servirmo-nos delas ou como essas cores se combinam, como se deverão opor harmoniosamente e que cor convém para este ou aquele trabalho, a mesma coisa para o escritor. O escritor trabalha com um instrumento que é a sua língua e aí toda a espécie de dificuldades também o esperam: se ele quer ser um escritor puro, fiel à sua língua tal como a recebeu dos seus professores e dos seus mestres há uma grande hipótese de lhe faltar a liberdade, Montaigne - que é um dos grandes escritores franceses, muito maior do que aquilo que habitualmente imaginamos -  dizia que o gascão por onde vamos é o francês por onde não se pode ir, quer isto dizer que devemos aprender as palavras populares, as palavras locais, o que quer que seja, para exprimirmos o nosso pensamento e, até um certo ponto, cada escritor é muito mais livre relativamente à sua língua, é um reconstrutor ou um enriquecedor da sua língua, muitos são ousados no que diz respeito às relações entre palavras, termos, mesmo quanto à sintaxe do que um escritor - como hei de dizer? - "comocional". Por outro lado, há duas coisas a que um escritor deve ser absolutamente sensível: é necessário que um escritor seja absolutamente fiel à realidade, se ele faz falar um imperador, que pertence à tradição clássica, é preciso que o seu estilo tenha qualquer coisa da tradição clássica, se ele faz falar um operário ele tem de se precaver contra todas as palavras com mais de quatro sílabas, aliás, Roger Caillois - de quem falei há pouco- dizia: "considero que todas as palavras que têm mais do que quatro sílabas são absolutamente um anátema, é preciso serem vigiadas "(...) , se o escritor faz ainda falar um homem de origem muito simples e popular é preciso fixar-se naquilo que é bem concreto: nas exatas recordações da sua profissão, das ocupações da sua vida diária e jamais deixá-lo cair em concepções e termos intelectuais que ele não poderá possuir... e no modo de fazer falar um intelectual é preciso precavermo-nos dessa tagarelice intelectual onde quase sempre as palavras se transformam em assentos desagradáveis ou em moedas num museu, onde não se vê bem o que está escrito, já que à força do uso se acabou perdendo todo o seu sentido, isto é, portanto, uma fidelidade ao objeto através da literatura, através da escrita... e há também uma outra coisa, e aqui acredito que muitos dos nossos contemporâneos cometem - num certo sentido - um crime: é preciso ser-se claro: o escritor que acrescenta obscuridades à vida que - valha-nos Deus! - é já tão obscura e às questões e problemas da inteligência que em si já são incompreensíveis, criando obscuridades com palavras para embelezar, para tornar interessante, para encenar diversões, para fingir armar qualquer coisa de novo, está completamente fora da sua vocação de escritor, pois quando escrevemos é para sermos compreendidos e, por mais obscura ou por mais abstrusa que seja a matéria, importa então ter uma clareza quase infantil e aí - creio - há um enorme erro motivado por um certo snobismo que existe num grande número dos escritores contemporâneos, erro que desencoraja completamente o leitor: o leitor lê uma página, duas páginas que não compreende, então, diz para si: " meu Deus, olhem, paciência, deixemos isto!"... e eu fiquei sempre impressionada por algo que certo dia me disse Jean Cocteau: um escritor cuidadoso que escreveu uma carta à sua porteira, para a prevenir que não viesse na semana seguinte, verificou os pontos nos is, as vírgulas, os acentos, para que a porteira o compreendesse bem, é exatamente isto que convém manter no estilo: que tudo seja feito para que as pessoas compreendam. E, por fim, há ainda a importância assídua do trabalho, é incómodo dizer, mas a maior parte dos escritores - como talvez a maior parte das pessoas que se ocupam da vidraria ou dos que fazem objetos trabalhados em couro - incham com a importância daquilo que fazem  (...) mas consagrando os seus esforços - ou parte dos seus esforços -  ao seu trabalho é preciso não esquecer (...) que o mundo passa bem sem nós para continuar a rodar e no dia em que perdemos esse sentimentos (...) dizemos: " sim, é assim mesmo!, isto interessa-me, isto interessa a um certo número de pessoas - esperemos! -, mas a imensidão do mundo não se alterará e eu viverei com uma total liberdade no interior deste limite, dos meus modestos limites... e a honestidade artesanal e a honestidade humana é surpreendida aí: crispa-se ou incha-se!, e o mesmo para o valor das obras, para a duração das obras, há pessoas que nos dizem: "o que é que pensa? Pensa que as suas obras são demasiado importantes? Que elas irão permanecer?" etc., eu creio que isso não tem importância alguma numa época em que andamos preocupados com todo um matagal de coisas sabermos se as obras durarão ou não. E num livro de Boulgakov, "Le Maître er Marguerite", livro que acho bastante bom e que é uma espécie de cavalgada fantástica a fazer-nos lembrar a "Fantástica" de Berlioz, o personagem principal tinha uma paixão pelo seu livro, tinha-lhe dedicado a sua vida, no momento de morrer - bem, ele estava morto, mas não sabia! -  o seu espírito, que estava com ele, o génio, o anjo mau que afinal era um anjo bom, diz-lhe: "Queima isso tudo!", e então ele queima aqueles papéis aos quais tinha dado tanta importância, aos quais tinha consagrado a sua vida e, ao fazê-lo, exclama: "Ah, que belo fogo!" É o valor dos livrinhos! Ele não salvou a essência da sua escrita, mas salvou a essência da sua liberdade, do seu entusiasmo, a essência da sua vida.


© Marquerite Yourcenar e programa "Propos et Confidences" (3/4/1983) da Televisão Canadiana..
© Tradução, a partir do monólogo oral (cerca de 30 mns), de Victor Oliveira Mateus.
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sábado, 8 de outubro de 2016



                     "  Poema  "

tu que não cais nunca tudo
cai ao redor e talvez não
nos fira
tu que trazes em silêncio o
aroma das manhãs e o lume do fogo
sorvo-te as lavas mais espessas
estamos em bicos dos pés e é
tão pesado segurar-te as mãos
como a canção nos olhos é
quase madrugada
ó amado que me levantas a
saia até à nudez necessária e
ao centro de mim
lugar onde a escuridão
alumia
mas que esperas tu do corpo em
desacerto? o
poema é alérgico à voz
que sai de dentro de si tu
que não cais cai ao
redor
e talvez não nos fira nunca o
amor é uma doce queda ao
alto da montanha ó
amado que me levantas a
saia até à nudez necessária
ergue-me impura
para o teu chão
onde escondes a tua ausência
leva-me à janela do teu
nome
como a poesia
ao poema adentro


   Pedro, Mbate. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio Nº 1, setembro 2016. Fafe: Editora Labirinto, 2016, pp 75 - 76 (Coordenação de Victor Oliveira Mateus).
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terça-feira, 4 de outubro de 2016




                     " Março 10, NY "


                        1.

Silêncio branco, sem pássaros.
Árvores ao sopro das nuvens
ferem o ritmo da paisagem.
Entre o que surge e o que parte,
a neve dissolve a rocha. E o som do vento,
vozes incertas
que gelam
nossas inúteis ações.
Um sinal (um disparo) afasta-nos da Ideia.
Desliza na direção do nada: o deserto
pressente já o tremor.


                        2.

Nossas vidas transformam-se noutras vidas,
inacabado brilho de cristal.
A frescura do orvalho
é já folha quebradiça.
Somos história? Não, mancha,
fumo
de impossível transcendência,
água entre os carvalhos. Enquanto
bebemos uma chávena de um amargo café
em que nos detemos, inclinados os rostos.


                        3.

Não história, apenas alento na procura
de reverdecidas ramas.
Choraste perdido o fulgor
e tive medo de no escuro ver
com gélidos olhos,
barca vazia num lago sem água.
Das tuas pupilas vi nascer o mar: claridade inefável.
Anos, túneis, torres eletrificadas
percorrerias
para encontrar minhas mãos.


                           4.

O medo é encontrar a própria semelhança.
Interpretar os sonhos
constitui o nosso pior pesadelo.
A quem representamos? Que parte do inseto
encerra em si tal veneno?
Cada estação, como cada palavra,
traz a sua morte
- ao de leve sugerida -
remanso
de festivas violetas. E o Logos?
Para que quero eu um Logos se o que busco
é
alojar a luz dentro d'outra luz?
Ali, para que se aninhe o escuro.


                            5.

Encontrar a outra parte do fogo,
a agulha no palheiro, olho
vislumbrando
a textura, solto o alinhavo
entrar
e sair, quase sem pegadas.
Angelina conseguiu-o na sua escrita
sob a espada de São Miguel - a céu aberto -
nas altas mansões de candeias apagadas.


                            6.

Refletida nos vidros, a ameixoeira,
caindo o outono,
gravidade e desejo, contradição
da natureza
regressando à imagem primeira:
e o cachorro, sua intensa ternura no prado,
à beira da floresta; a saliva
na língua da leoa, círculos de fogo
meus olhos. Existir é sempre casual.


                             7.

Sílabas com aroma de jasmim. Semeei palavras
em vasos cansados.
Raízes
tentando reviver. Que casa desabitada?
Às cinco o vazio do sacrifício
e em cima o galo, sinos;
húmido pasto, insetos entre folhas
e o grito da pega. Ecos
de Deus a vida. Morremos
muito abaixo do céu, medo
que nos submerge
na primeira e única origem.
Céu como um espelho, terra de sepulcro,
não há conclusão, não há um final. Fio
e textura,
a luz do fruto, fria, dentro de mim.


                                8.

Melhor ceder ao resplendor
do horizonte.
Sonho de Deus a vida, sem paz os deuses
que inventaram a palavra e a guerra.
O fogo nomeia. Com ele falamos
de luz, expressamos
o silêncio de luz.
O amanhecer desvela o primeiro raio
sobre o ocre acastanhado
do galo.
Deus, não sei onde está.


                             9.

Acaso não haverá medida para o tremor da alma?
Poder-se-á medir nossos sentires?
A luz progredia, irreversível.
O colibri alimenta-se da flor, nós
do desejo. Olho o céu em silêncio.
Um voo ocasional perturba o violeta da paisagem
para um sol que de súbito se afunda
sem ter tempo de perceber que antes ascendia.


                              10.

De raízes nos fala esta luz,
cujo fulgor se vai perdendo
no frio coração da água.
Oiço e não oiço, entro sem entrar
no outro lado de um mar
que se esconde
na direção do silêncio ou do abismo da noite.
Declina a lua de agosto,
voo de uma ave, 
tudo se aproxima. Realidade que não alcançam
nossas vidas.

                                                               Março 10, 2003
                                       Iniciam-se os bombardeamentos dos Estados Unidos sobre Bagdad.


Clariond, Jeannette L. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 1, setembro 2016. Fafe: Editora Labirinto, 2016, pp 44 - 48 ( Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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segunda-feira, 3 de outubro de 2016



    " A poesia é quem cria o poeta "


Deveras, a poesia não se pode inventar.
Ela é que a si mesma se modela, vinda de longe,
Por entre frondes de sinapses e neurónios.

E começa a escavar sulcos no silêncio saturado:
Neles semeia sílabas, que se tornarão palavras
De onde florescerão hálitos luminosos,
favos de sonhos e o pão solene do núbil amor.

Depois toma conta da febre inocente do poeta
E faz o esconjuro do espectro das certezas
Que, no apelo da lua, lhe tolhe as frágeis asas.

Então escreve usando a mão livre do poeta.
Abre-lhe a boca flagelada pelo tédio
Para que brotem margens de oiro em suas feridas.

Por fim, retira-se ligeira.
E uma brisa sopra do canto perfumado.


 Alves, Adalberto. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio Nº 1, setembro 2016. Fafe: Editora Labirinto, 2016, p 9 (Coordenação: Victor Oliveira Mateus).
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domingo, 2 de outubro de 2016



Jessica Falconi e Victor Oliveira Mateus na lançamento de "Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio", Nº 1, Setembro 2016.
A sessão decorreu em Lisboa, na Livraria "Pó dos Livros", no dia 1 de outubro de 2016.
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segunda-feira, 19 de setembro de 2016



"Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio ", Nº 1 setembro 2016.

Coordenação: Victor Oliveira Mateus

Data da Apresentação ao Público: dia 1 de outubro (sábado), 16:00, na Livraria "Pó dos Livros" - Avenida Duque de Ávila 58 A Lisboa

Apresentação: Jessica Falconi


COLABORADORES:

Adalberto Alves, Albano Martins, Alberto Pereira, Alberto Riogrande, Alexandre Bonafim (Brasil), Alice Fergo, Amadeu Baptista, Amadeu Liberto Fraga, Ana Mafalda Leite, Ana Maria Puga, André Alves, António de Almeida Mattos, António Cândido Franco, Antonio Carlos Sechin (Brasil), António Ferra, António José Queiroz, António Salvado, Artur Coimbra, Carlos Afonso, Casimiro de Brito, Cecília Barreira, César A. Miranda de Freitas, Cláudia Lucas Chéu, Cláudio Lima, Daniel Gonçalves, Ernesto Rodrigues, Eugénia Bettencourt, Iacyr Anderson Freitas (Brasil), Inez Andrade Paes, Isabel Cristina Pires, Jeannette L. Clariond (México), Jessica Falconi ( Itália ), João Rasteiro, Jorge Velhote, José Jorge Letria, José Viale Moutinho, Julia Barella (Espanha), Julio Ferreira Leite, Luís Aguiar, Luís Fernando Chueca Field (Peru), Luís Filipe Pereira, Luís Filipe Sarmento, Luís Quintais, Maria Augusta Silva, Maria José Quintela, Maria Quintans, Marisa Martinez Pérsico (Argentina - Itália ), Mbate Pedro (Moçambique), Montserrat Villar González (Espanha), Orlando Barros, Paulo Inocêncio Moreira, Paulo Pêgo, Pompeu Miguel Martins, Renata Pallottini (Brasil), Renato Epifânio, Ricardo Gil Soeiro, Ricardo Marques, Rui Rocha (Macau), Ruy Espinheira Filho (Brasil), Samuel Pimenta, Sergio Laignelet (Colômbia - Espanha), Vicente Alves do Ó, Xavier Oquendo Troncoso (Equador), Xosé Lois Garcia (Espanha - Galiza).
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Nota - os poetas de Língua Castelhana foram todos traduzidos para Português por Victor Oliveira Mateus à excepção do poema de Montserrat Villar González que foi traduzido por Jorge Fragoso. O poema de Xosé Lois Garcia virá em Língua Galega, O ensaio de Jessica Falconi foi escrito diretamente em Português
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domingo, 21 de agosto de 2016


          "  L'enfant  " (1)


Les Turcs ont passé lá. Tout est ruine et deuil.
Chio, l'ile des vins, n'est plus qu'un sombre écueil,
    Chio, qu'ombrageaient les charmilles,
Chio, qui dans les flots reflétait ses grands bois,
Ses coteaux, ses palais, et le soir quelquefois
    Un choeur dansant de jeunes filles.

Tout est désert. Mais non; seul près des murs noircis,
Un enfant aux yeux bleus, un enfant grec, assis,
    Courbait sa tête humiliée;
Il avait por asile, il avait pour appui
Une blanche subépine, une fleur, comme lui
    Dans le grand ravage oubliée.

Ah! pauvre enfant, pieds nus sur les rocs anguleux!
Hélas! pour essuyer les pleurs de tes yeux bleus
    Comme le ciel et comme l'onde,
Pour que dans leur azur, de larmes orageux,
Passe le vif éclair de la joie et des jeux,
    Pour relever ta tête blonde,

Que veux-tu? Bel enfant, que te faut-il donner
Pour rattacher gaiment et gaiment ramener
   En boucles sur ta blamche épaule
Ces cheveux, qui du fer n'ont pas subi l'affront,
Et qui pleurent épars autour de ton beau front,
    Comme les feuilles sur le saule?

Qui pourrait dissiper tes chagrins nébuleux?
Est-ce d'avoir ce lys, bleu comme tes yeux bleus,
   Qui d'Iran borde le puits sombre?
Ou le fruit du tuba (2), de cet arbre si grand,
Qu'un cheval au galop met, toujours en courant,
  Cent ans à sortir de son ombre?

Veux-tu, por me sourire, un bel oiseau des bois,
Qui chante avec un chant plus doux que le hautbois,
    Plus éclatant que les cymbales?
Que veux tu? fleur, beau, fruit, ou l'oiseau merveilleux?
- Ami, dit l'enfant grec, dit l'enfant aux yeux bleus,
    Je veux de la poudre et des balles.


(1) Um dos poemas mais divulgados do livro "Les Orientales" (1829) e que fala da guerra de independência da Grécia relativamente ao império turco.  Nesta guerra rapazes jovens lutavam ao lado das forças independentistas;

(2) Árvore mítica pertencente ao paraíso muçulmano, simboliza a felicidade e a abundância.


  Hugo, Victor. Oeuvres Poétiques, Anthologie. Paris: Le Livre de Poche, 2002, pp 55-56.
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sexta-feira, 19 de agosto de 2016


   
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                  "  UMA VOZ SOLITÁRIA "

  
                                ) 1 (

Solidão.
          Couraça.
                     Sou um teu sobrevivente.

O outro que restava
morreu lá longe
quando viu os pássaros acasalarem.

Solidão.
          Amarra.
                    Sou o teu salvo-conduto.

Vou, transido de medo,
por essas veredas
onde apenas parece ouvir-se
como imploram, no vento,
as brisas que insistem em amar-se.


                         )  2  (

Acompanho-me.
Faço-me outras gentes.
Vou-me repartindo.

Dou-me medo neste só
e procuro-me, sabendo
que não há forma
de que as mesas, por exemplo,
me sejam companhia.

Nem que o amor o seja.
Só este corpo inaudito em que sou
como carne
a que este sangue acrescenta o que sou
como vinho.


                        )  3  (

Passo a noite no cais
junto ao cão de três cabeças.
Caminhamos firmes
rumo à estação seguinte
onde ainda permanecem as folhas
do último outono.


                       )  4 (

Vale mais estar só do que muito só.
Demora mais o só a sair de sua ausência
do que uma agulha a atravessar os poros de uma palha.


                       ) 5 (

Nos dias de hoje até o céu
anda com uma solidão de tal modo azul
que se dispersa.


                        ) 6 (

Aqui me reconheço: sou como barro
que quis ser vasilha e acabou testemunho
de um ser em mim feito postigo
nesta portinhola a que me amarro

Aqui sou outra coisa que tanto temo.
Sou uma solidão que grita desenfreada,
que vibra como o mar enquanto te apequenas
em plena tempestade de um céu ameaçador.

Vejo-me como vala de uma esquina
enredada ao longo da espinha
para iludir a emoção.

E no meio deste frio que é a vida
através da minha sombra ainda indefinida
cresce-me este outro eu no coração.


                         ) 7 (

Tudo: as malas. Os corpos.
As tapeçarias. A areia. Os risos.
O condor. O jaguar. Os vasos com sede.
A sede dos castanheiros.
A macieira fustigada pelo inverno.
Tudo: até o mosquito que nos perturba
o sono, tudo se vai, definitivamente,
para a teia sem saída da solidão.


                        )  8  (

Que o solitário abra o mar de Moisés
e se afogue
nesse acontecimento.
Que nem sequer tenha tempo de olhar para trás
porque aí se converteria em estátua de sal
e estaria mais só do que nunca.
Mesmo que por pombas estivesse acompanhado.


                       ) 9 (

Virá a morte
        e a solidão far-se-á
        o menos profundo dos mistérios.



  Troncoso, Xavier Oquendo. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 1 setembro 2016.. Fafe: Editora Labirinto, 2016, pp 91 - 94  ( Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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