terça-feira, 29 de dezembro de 2015



   " O silêncio dentro de mim" (página 23) podia ser o mote de Negro Marfim, de Victor Oliveira Mateus. É ele, a sua inquietação e o seu fundo sem fundo, que fazem ressaltar a visão "negra" mas brilhante, resplandecente, do texto do autor, um texto impiedoso e desumano, próprio de uma época que substituiu o silêncio e o desassossego da existência pelo ruído superficial e pela claridade estonteante do dia-a-adia.
   Ler este livro é fazer prova de temeridade, de suportar às avessas o peso da vida, não pelo que se passa nos jornais, nos cafés e nos bares, mas pelo que se passa no poço inconsciente da nossa escuridão quando se apagam as telas e os ecrãs e a vida, a verdadeira vida, começa dentro de nós.
   Brilhante prosa, brilhante poesia, brilhante texto, brilhante livro, ainda que tecido de pesar e sofrimento, isto é, de negridão, texto como apenas Raul Brandão, Cioran ou Kierkegaard conseguiriam escrever.


  Miguel Real in Negro Marfim de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 7.
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sábado, 26 de dezembro de 2015


        Recensão da Profª Cecília Barreira da Universidade Nova de Lisboa ao livro Negro Marfim.


   Desde muito cedo que sou leitora de trabalhos e poesias de Victor Oliveira Mateus. É um belíssimo tradutor de livros clássicos, e de alguns poetas contemporâneos. A sua poesia encontra-se espraiada por imensas antologias.
   O autor do livro Negro Marfim não publica muito, o que é uma vantagem nesta esquizofrenia de dar à estampa um livro por ano. Daí, a linguagem muito depurada e um conhecimento da língua muito interessante. Pode dizer-se, desde já, que Portugal tem imensos poetas. Mas há poetas e Poetas. E não é o número de livros publicados que delineia a diferença.
   A poesia deste autor remete sempre para temas filosóficos, ou não fosse ele licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica.
   O presente livro é constituído por vinte e nove excertos de prosa poética, um posfácio de Ronaldo Cagiano e um curto prefácio de Miguel Real. Este último remete os textos de Victor para Raúl Brandão, Cioran ou Kierkegaard. Já Ronaldo Cagiano nos remete também para essa pulsão filosófica.
   Victor Oliveira Mateus é um homem que pugna pelas grandes causas da humanidade, nunca se esquecendo dos autores clássicos e do inebriante caos que é a sociedade dos dias de hoje, desnorteada e com uma "dor intraduzível das mulheres, pedaços de brinquedos já sem dono, bocadinhos de espelhos, rombas caixas de música, pássaros desasados, barcos naufragados com pedaços de vísceras na proa" (página 30).
   O autor oferece também um vasto conhecimento de geografias humanas, de história e até de sociologia. Sendo a minha formação básica em História, fico especialmente sensível a este entrosamento entre cidades e lugares históricos com o discernimento da filosofia.
     
"Atingiu-o com aquela ostentação portentosa, com
aquela beleza podre que só as coisas grávidas do
seu fim conseguem delicadamente fingir, nestas pá-
ginas de uma história que sempre continuará fa-
lando à surda distracção dos homens." (página 44)

   Victor Oliveira Mateus é um homem da cidade, mas não compactua com ela: fala de jogos perversos, de claustrofobias, de espectros, de mesas, de desistências. É um poeta  que nunca se retira de um olhar profundamente crítico à sociedade actual. De si próprio refere-se como "um objecto sem forma definida que (...) acabará à espera numa qualquer secção de perdidos e achados" (página 20).
   Mas o poeta está atento, sempre à espera, mas atento. O poeta sabe que este não é um livro de amor "(...) penso também em ti, mas tu terás de ficar para outra noite, ou outro dia, já que não podes entrar neste tipo de poesia" (página 21).
   E realmente o prometido é devido: Negro Marfim é árido no que diz respeito ao amor ou aos afectos, mas profundamente crítico em relação às memórias presentes e passadas, a entropia da realidade, os pequenos traços humanos a que ninguém liga, as presenças e as ausências num mundo indisponível para um olhar para dentro. E Negro Marfim é isso mesmo: um olhar filosófico de dentro para fora e de fora para dentro. A cidade sempre presente, até com o cão que ladra. Às vezes lembra-me o grande Cesário, que adorava a cidade disfarçando o amor com ironia e erotismo.
  A geração de Victor Oliveira Mateus produziu grandes escritores e poetas. Nem a todos tem sido reconhecido o valor, a beleza estética, o lirismo ou a ironia. O autor, há alguns anos, passou um período onde não era muito notado. Mas, como todos os grandes poetas e romancistas, hojé é um nome sólido na literatura portuguesa contemporânea. E, assim, o livro de prosa poética Negro Marfim é mais uma achega para a aquisição, na cultura portuguesa, de um lirismo sem amores e que se pulsiona para um olhar filosófico sobre a cidade. A não esquecer, a finitude, afinal o grande dilema humano,


Cecília Barreira in Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 16 - 2º Semestre 2015. Sintra: Zéfiro Edições, 2015, pp 246 - 247.
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015


                             "  O Sebastianismo e Sampaio Bruno  "

1. Em A Ideia de Deus (1902), com elementos de fundo providencialismo messiânico em O Encoberto (1904) e no livro póstumo Os Cavaleiros do Amor, Sampaio Bruno defende quatro teses:
1.1. Uma visão heterodoxa de Deus: este não se constitui como suma perfeição moral e bem supremo a não ser como ideia e desejo na mente do Homem europeu, contaminado pela propaganda de séculos da Igreja Católica; Deus é, em si, imperfeito, sofrendo um processo de Queda, de Divisão e Cisão geradora de movimento, de matéria e de mundo e, portanto, é igualmente o criador e o responsável pela existência do Mal;
1.2. O Homem, produto dessa Queda divina, é ele próprio instrumento de regeneração dos seres e da redenção de Deus;
1.3. Deus não se revelou ao Homem de uma vez por todas como monumento bíblico; diferentemente, o Homem vai progressivamente revelando Deus a si próprio através de uma ascensão do espírito fraternal: "O fim do homem neste mundo é libertar-se a si próprio, libertando os outros seres" ( A Ideia de Deus, (1902), 1987, p. 349). A libertação do homem pelo homem significa que a face de Deus que habita o Homem se encontra encoberta, velada, desvelando-se paulatinamente: "O Homem é que é o Encoberto.";
1.4. O messianismo português, como traço essencial da cultura portuguesa, vivendo da ânsia da revelação do "Encoberto" (D. Sebastião), assume assim um papel dominante na evolução histórica, evidenciando uma nova religião (ou uma nova re-ligação) da multiplicidade e heterogeneidade dos seres à unidade irrefragável do homogéneo ou Único, eliminando-se, assim, por depurações espirituais sucessivas, a existência do Mal - "porque precisamente eliminar o Mal é o fim do homem, único e supremo" (p. 351).
(...)
4. Amorim de Carvalho, interpretando a totalidade do sistema metafísico de Sampaio Bruno, propõe um esquema de leitura de A Ideia de Deus muito correcto: ao Deus-homogéneo sucede, misteriosa e inexplicavelmente, a queda de Deus, originando o mundo em si, o Heterogéneo, dando nascimento ao mal como absoluta prova do afastamento de Deus dos seres, a que se segue a redenção destes pela consciencialização e cooperação com Deus, reintegrando-se cada ser, individualmente, em Deus, de novo Homogéneo (...).
5. Neste sentido, Sampaio Bruno desloca a essência do mito e do movimento sebastianistas para a totalidade do Homme ou da Humanidade. Na verdade, o Encoberto não seria D. Sebastião mas o Homem na sua universalidade: "Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado (...). Não é mesmo um povo (...). É o Homem" (Sampaio Bruno, O Encoberto, 1904, p 379). O sebastianismo seria, assim, a expressão em Portugal de um movimento ontológico construtivo de toda a humanidade: o messianismo.


   Real, Miguel. Nova Teoria do Sebastianismo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2014, pp 158 - 163.
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terça-feira, 15 de dezembro de 2015



   Desde os sermões de juventude, existe uma unidade profunda no pensamento de António Vieira. Antes de mais, a sua funda religiosidade católica. Padre António Vieira não é o "político" e o "vidente" enquanto aspectos distintos da sua doutrina, mas o "político religioso" e o "vidente religioso", já que a sua visão do escravo negro ( a "teoria do resgate"), a sua visão da conversão do índio, a sua visão da história e do Império de Portugal e da Europa, possuem o selo bem distintivo da sua religiosidade católica. Todas as imagens presentes nos seus sermões possuem o distintivo do sagrado e manam desse âmago sem fundo que é a Bíblia. Todo o elemento e todo o alimento e toda a finalidade da sua vida residem no sagrado. Como teólogo, o anúncio e a interpretação da palavra de Deus constituem o sentido filosófico da sua vida e, como sacerdote, toda a sua existência foi uma plena entrega à mensagem de Cristo. Outra característica fundamentadora da sua vida e obra reside no seu estreme nacionalismo ou portuguesismo, apenas amaciado nos últimos anos de vida na Bahia, tempo de amadurecimento da escrita de Clavis Prohetarum. Vieira estatui a história de Portugal como o novo instrumento divino redentor dos vícios, defeitos e perversões da humanidade, anunciador de uma nova idade de paz, concórdia, justiça, abastança (o suficiente para todos) e amor, ou seja, o Quinto Império do Mundo. Assim, o seu nacionalismo, unido à sua vincada religiosidade, presta consciência e consistência ao seu providencialismo messiânico. (...) o cerne do discurso vieirino, até cerca dos últimos anos de vida do autor, reside na confluência entre o fervor religioso do sacerdote e missionário jesuíta e a elevação de Portugal a nação eleita por Deus, estatuindo os portugueses como segundo povo eleito da História Universal.
   Assim, providencialismo e nacionalismo contribuem para estatuir este século como o mais espiritualista dos séculos portugueses. Num jogo de espelhos reflexos, o espírito nacionalista português consolida-se por via da profunda humilhação nacional ( o decadentismo) sofrida com a perda da independência e o providencialismo como visão grandiloquente superadora da mesma. Ambos retratam um Portugal pela primeira vez culturalmente divergente com Espanha. Nasce neste século um Portugal paralelo à Espanha, que olha para mais longe - a França, a Inglaterra e a Holanda -, considerando tanto o vasto território espanhol como a política de Madrid obstáculos ao seu sucesso europeu.

   Real, Miguel.  Nova Teoria do Sebastianismo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2014, pp 64 - 66.
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sábado, 12 de dezembro de 2015

   Ler hoje Eça constitui um bálsamo para suportar a farsa, por vezes trágica, por vezes jocosa, em que Portugal se tornou desde a década de 1990, quando a direcção política dos pais fundadores da democracia foi substituída por "jovens turcos" provindos do Algarve, das Beiras e do Norte, crescidos e enformados no interior dos partidos, possuindo uma visão instrumental de acesso ao poder e de engrandecimento (e até de enriquecimento) individual, e não de nobilitação das populações. Concentremos a nossa esperança nas elites futuras e não esperemos nada de redentor das presentes senão aquilo a que um resto de pudor cristão, bom senso e a legislação europeia as obriguem a fazer.
   Entretanto, leiamos Eça, sublimando o facto de Portugal atravessar uma época de profunda mediocridade geral, onde, à semelhança do final da Regeneração, de novo impera, avassaladoramente - como Eça desmascarou -, a democracia sem valor nem mérito, a omnipotência do dinheiro, o império de uma educação sem alma, inspirada por ministros de olhos numéricos e mente vazia, e o esboroamento dos antigos valores humanistas europeus da generosidade, da honestidade e da espiritualidade.


  Real, Miguel. Portugal: Um país parado no meio do caminho 2000-2015. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015, p 146.
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015


   É assim que o cidadão português se encontra hoje, 2015, em estado socialmente perturbado, desprovido de uma instituição em que possa confiar, disposto a tudo para conseguir sobreviver e legar aos filhos algum pecúlio e desconfiado do Estado (...). Isto é, o cidadão português encontra-se hoje em autêntico estado sonâmbulo, suspeitando de que tudo o que conseguiu como fruto do seu trabalho lhe pode ser sonegado por um acto voluntário do Estado (as pensões, por exemplo), que já provou respeitar escrupulosamente os seus compromissos externos, mas, vergonhosamente, desdenhar os seus compromissos para com os cidadãos do país que governa.
   Com efeito, o cidadão português não pode hoje confiar no seu Estado, instituição permanente cuja solidez ética deveria deixar publicamente transparecer um forte grau de credibilidade social. (...) assiste-se ao caos social e económico derivado do incumprimento da modernização de Portugal, gerando um país não só bloqueado na sua esperança de futuro como, sobretudo, arrastando uma existência sonâmbula, cujas consequências estão historicamente longe de ser consciencializadas na sua totalidade, como a diminuição de meio milhão de jovens no todo da população (uma situação com consequências nefastas até ao final do século (...).
   Portugal como país sonâmbulo significa que ficou a meio do caminho da consumação plena da modernização europeia (...) sonho não só permanente da história contemporânea de Portugal como considerado realizável no final do século XX. E não foi. Os anos recentes destruíram o sonho e abalaram as suas raízes históricas.
   Somos um país parado no meio do caminho. Um país governado por uma elite político-administrativa (...) já que guiada por uma espécie de "fanatismo orçamental": tal como os estalinistas europeus acreditavam piamente na doutrina emanada do Kremlin, tornando-se insensíveis aos crimes e assassinatos cometidos por Estaline, assim o grupo neo-liberal que tem recentemente governado Portugal acredita pia e dogmaticamente na cartilha financeira estabelecida pelos "mercados", tornando-se insensível aos índices  de pobreza da sua população.


   Real, Miguel. Portugal: Um país parado no meio do caminho 2000-2015. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015, pp 69 - 71.
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Nota - Em várias passagens deste livro o seu autor refere sempre que a sua análise se debruça apenas sobre o 2º governo de José Sócrates e os dois governos de Passos Coelho. Esta obra avança ainda com uma riquíssima bibliografia que vai do Padre Manuel Antunes a Ricardo Paes Mamede e Gabriel Magalhães.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Após a entrega dos Prémios PEN relativos às obras publicadas em 2014: Sra. Secretária de Estado da Cultura, Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, Presidente do PEN Clube Português, os autores premiados e os membros dos vários júris (Auditório Carlos Paredes da S.P.A., 4 de dezembro de 2015).
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domingo, 6 de dezembro de 2015

(Este texto foi lido pelos seus relatores no passado dia 4 de dezembro de 2015 aquando da entrega dos Prémios Literários do PEN Clube de 2014, numa cerimónia - no Auditório Carlos Paredes da S.P.A. - presidida pela Sra. Secretária de Estado da Cultura, pelo Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores e pela Presidente do PEN Clube Português. O texto fundamenta a atribuição do Prémio PEN de Poesia por um júri a que os relatores pertenceram.)
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                          Prémio P.E.N. de Poesia para obras pulicadas em 2014

                       Sociedade Portuguesa de Autores, 4 de Dezembro de 2015
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O Júri constituído por Victor Oliveira Mateus (Presidente), Casimiro de Brito e Paula Mendes Coelho decidiu, por unanimidade, atribuir ex-aequo, o Prémio PEN 2014 de Poesia às obras O Vidro, de Luis Quintais (Assírio & Alvim) e a O Tempo é Renda, de Isabel Mendes Ferreira (Labirinto de Letras).
Trata-se de duas obras, que não obstante as diferenças óbvias existentes entre elas, se apresentam com uma forte originalidade no panorama geral da poesia portuguesa contemporânea, privilegiando acima de tudo o fazer poético, o trabalho sobre a linguagem, sem os quais a poesia não existe.
Em ambos os casos se trata de leitores cultos, que ousam entender a escrita poética como um combate, como um “campo de batalha”.
I
Ainda que Quintais tenha confessado recentemente que O Vidro resultou sobretudo de um processo inconsciente, intuitivo, enigmático, e que esse foi o seu “Dia triunfal”, bem sabemos que tal como no caso de Pessoa, tudo se passa de maneira algo diferente. Muitos outros dias de angústia e trabalho árduo, de combate com a palavra estão provavelmente na origem deste texto, que constitui uma longa revisitação ao passado, ou antes uma curiosa “entrevista”, levada a cabo por um sujeito poético arquivista, colecionador, anotador de fragmentos, tal como o trapeiro de Baudelaire, pretexto aqui para um diagnóstico lapidar dos tempos em que vivemos e que deixa o leitor sem fôlego, e sempre em alerta. A violência, a guerra, as metrópoles do asfalto e da solidão e um tempo fundamentalmente técnico que Baudelaire já tinha magistralmente intuído, de onde o afecto e o humano foram banidos, tudo isso surge numa forma condensada, intensa, dada a mestria com que sugere, mais do que diz, veiculando uma dimensão política, que nos apraz aqui sublinhar.
Apenas um exemplo da coerência e do apuramento da poética de Quintais. Se, em Depois da Música (editado em 2013), havia uma alusão bem explícita ao holocausto, por exemplo em poemas como “Noite e Nevoeiro”, aqui, nesta obra, surge apenas a alusão, a sugestão dessa atrocidade maior, agora fatalmente e
sub-repticiamente incorporada e podendo pairar sobre o tempo presente, no que pode ser visto celaniamente como uma “escrita do não escrevível”:
“[…]De estilhaços/ é a voz de vidro e o céu deglutido, esventrado,//como a rede rota que faz precipitar a história/e engole a cidade em som e fúria e lamento//e regresso: o caminho invertido das chaminés/onde o fumo se transforma em corpos//e os corpos saem dos fornos/e começam a andar de novo na estranha terra//e dos campos saem depois serenamente.” (p. 21-22)

Este longo poema “Vidro” vai ainda articular-se de maneira exímia com uma segunda parte intitulada “Ecolalia”, que tal como este título sugere, constitui um eco dos principais topoï da primeira, desta feita num conjunto de 21 pequenos textos em prosa poética, numa nova reconfiguração de experiências dolorosas presentes em filigrana na primeira parte.
De facto, se anteriormente a poesia de Quintais ainda conseguia riscar “a palavra DOR no quadro negro”, nesta última obra ela prova não ser capaz de apagar, de eliminar essa dor. A “imprecisa melancolia” (título da primeira obra de 1995) transformou-se em “negro sol”. Com efeito, o olhar melancólico e alegórico do poeta flâneur, do trapeiro baudelairiano é aqui levado às últimas consequências, restando-lhe apenas recompor os estilhaços que sabe desprovidos de significado, teimando em reconfigurá-los na esperança de algo novo, de algum consolo que todavia sabe não existir, muito menos quando o sujeito poético se imagina a responder a um filho:
“E ao teu filho?//Dir-lhe-ás que não há alma,/que um sopro suportando a coerente//carne sobre as suas espáduas/é maligno subterfúgio?”(pp.37-38)

II
Entre poesia e prosa, a escrita torrencial de Isabel Mendes Ferreira desafia a capacidade perceptiva do leitor, confunde deliberadamente a intelecção sempre tão ávida de linearidade e de um sentido a dar-se sem pejo nem véus, joga - através de um cultismo denso e de um sincretismo temático - com a propagada necessidade de univocidade e/ou de inteligibilidade imediata. A poeta retoma assim a ideia, tão cara à modernidade, de tecedura poética e, a partir daí, ensaia uma arquitectura singular e heterodoxa, pelo que não hesita em deitar mão a todo o tipo de recursos estilísticos: assonâncias e exercícios de paronímia (Cf. p 52: arrasta/ arrasa); repetição de palavras (Cf. p 170: fiz-me inóspito. fiz-me
medo); expressões rondando o jargão (Cf. p. 110: fumo de fio a pavio), contrastando muitas vezes com um registo fortemente erudito…. Aliás, não é por acidente que o título desta obra refere a imagem da renda, e essa urdidura não é apenas formal, ela remete igualmente para um trabalho da memória, simultaneamente labiríntico e aracniano, onde os temas se aprofundam, se abandonam - muitas vezes abruptamente - e se retomam como um rendilhado feito no tempo e a partir do tempo. Renda e não rede, que envolve… sem aprisionar. O tempo é, portanto, o solo matricial desta poesia, assim como o aro que emoldura toda escrita poética: "e o tempo é uma variável que não dominamos. não dominaremos nunca. como se viajássemos numa pequena barca por mar/ encapelado. umas vezes somos salvos e outras/ engolidos pelas águas."  (p.114). O tempo, ora na sua dimensão salvífica, ora como abismo destruidor, é o território onde a existência se abre - e neste ponto é impossível não nos recordarmos de algumas das principais teses de Heidegger! - como forma de “ser-para-a-morte”, provocando no sujeito poético momentos de alegria serena e - muitas vezes também - de uma angústia desintegradora: "O tempo é renda no ventre plano da saudade/ não espero nada. sou assim como a desintegração. evento/ cardume película e animal de infância " (p. 107).
Ciente de que é da “casa dos afectos que a palavra chega”, trata-se nesta escrita de “cantar os signos”, num texto sempre aberto “profano e sagrado; profundo e raso”, e de “recolher os despojos. como quem desmente o texto e a voz num deserto que já foi corpo antigo e agitação de falcões inquietos.” (p.60)
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Lisboa, 4 de Dezembro de 2015
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Relatores:
Paula Mendes Coelho
Victor Oliveira Mateus
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015


   Yves continuava a rir enquanto descia os Campos Elísios, não com um riso amargo e forçado, mas com um riso franco, que obrigava os transeuntes a voltarem-se. Tinha soado o meio-doa... Era madrugada quando subira os degraus da estação de Orsay. (...) Não tinha mais do que um esgotamento: nunca o objecto do seu amor lhe aparecera tão ridículo, tão fora da sua vida, tão reles, tão sujo, tão findo! E no entanto o seu amor subsistia: como uma mó que tivesse girado no vazio... girado... girado...
   Terminara o riso. Yves concentrava-se nesta estranha tortura do vácuo. Vivia esses momentos que todo o homem que tenha amado conhece, com os braços sempre apertados de encontro ao peito, como se não tivesse desaparecido aquilo que abraçava, apertando efectivamente, e sem exagero de expressão, o nada.
   Naquele meio-dia de um Outubro morno, sentado num banco do Rond-Point dos Campos Elísios, o último dos Frontenac não conhecia outra direcção na vida do que a dos Cavalos de Marly... Uma vez ali não sabia se iria para a direita se para a esquerda ou se até às Tulherias entrando na ratoeira do Louvre.
(...) Voltar atrás quando as forças estão no fim? Refazer todo o caminho? Que ladeira tão íngreme! E para realizar o quê? Yves errava pelo mundo liberto de qualquer trabalho humano. Nenhuma tarefa lhe exigiam, visto que acabara antecipadamente o seu dever, visto que adiara a sua cópia para ir brincar. Não tinha outra ocupação que não fosse anotar dia a dia as reacções de um espírito totalmente inocupado...
   E nada mais poderia fazer e o mundo nada mais lhe pedia.


   Mauriac, François. O mistério dos Frontenac. Lisboa: Editora Ulisseia, 1956, pp 204 - 206 ( Tradução de Luís Forjaz Trigueiros).
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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015


   A esperança de Yves ia baixando dia a dia, como o nível das nascentes. Tornava-se azedo. Aborrecia a família por ela não lhe descobrir uma auréola à volta do rosto. Cada pessoa, sem maldade, quebrava-lhe o orgulho dizendo: "Se te espremessem o nariz, deitava leite".
   Yves imaginava que não tinha mãe: as sua palavras afastavam-no, picadas que as galinhas vão dando aos pintos crescidos obstinados a seguirem-nas. "Se lhe tivesse explicado tudo", pensava, "ela não o entenderia. Se ela tivesse lido os seus poemas, tê-lo-ia chamado louco".
   Yves desconhecia que a pobre mulher tinha acerca do seu filho mais novo uma ideia mais acertada do que ele supunha. Não poderia dizer em quê, mas sabia que era diferente dos outros: como um cão de caça que saísse duma ninhada com marcas de cão de guarda...
  Não eram os seus que o desprezavam; era ele próprio quem se sentia miseràvelmente inferior. Aborrecia os seus ombros estreitos e os seus braços magros. E no entanto viera-lhe a tentação absurda de saltar uma noite para a mesa do salão da família gritando: "Sou um rei! Sou um rei!"
   - É da idade; isto há-de passar....- repetia a Sra. Arnau-Miqueu a Blanche, que se lamentava. Não se penteava, lavava-se o menos possível. Visto que o Mercure ficava silencioso, que Jean-Louis o abandonava e que ninguém viria a saber que um poeta admirável nascera em Bordéus, contentaria o seu desespero tornando-se mais feio, enterraria o seu génio num corpo descarnado e sujo.

  Mauriac, François. O mistério dos Frontenac. Lisboa: Editora Ulisseia, 1956, pp 67-68 (Tradução de Luís Forjaz Trigueiros).


Nota - respeita-se a grafia da época.
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