quarta-feira, 31 de dezembro de 2014



Acabou de sair em Espanha o Nº 16 da Revista Literária "Cuaderno de Creación". Esta Revista, de enorme qualidade, possui diversas rubricas: poesia, visual, tradução, entrevista, etc. Das duas páginas que me são dedicadas, segue a tradução que José Ángel García Caballero fez de um poema meu:



Lo que duele no son las rupturas, el alejamiento,
la incapacidade minando como un câncer
oculto y certero. Lo que duele no es
la poca solidez con que se dijo
esta o aquella palabra, esta o aquella frase;
con que se insistió, a pesar de recelos vários,
en la grotesca escenificación de le que se preveía
muy próximo a cualquier futuro. Lo que duele
no es la viscosidad de las emociones inscribiéndose
en algún mapa antecipadamente condenado,
ni tampoco la insistência de un indisoluble
recuerdo escapando. Lo que duele verdaderamente
es despertar un día y descubrir
que nada de eso tuvo importancia alguna.


Mateus, Victor Oliveira. Cuaderno de Creación 16. Sevilla: palimpsesto 2.0, 2014 (Traducción: José Ángel García Caballero).
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terça-feira, 30 de dezembro de 2014



Coração intratável, ainda bem
que não te quiseste acomodar, custasse
isso a dor que me custou ao desatino,
essa exausta barcaça que me leva à deriva.
Ainda bem que cercaste os sortilégios
que em ti se reuniram, alguns deles
perversos, não sei se ilegítimos para quem
aqui chegou tocado pelo fascínio.
Ainda bem que foste fonte de discórdia
e caucionaste este súbito ataque
ao esconjuro com que me confrontei,
por desabrigados vícios tutelares.
Ainda bem que no meu peito vociferas
as frágeis tempestades que aniquilam.




  Baptista, Amadeu. Vida Breve. Fafe: Editora Labirinto, 2014, p 23.
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domingo, 28 de dezembro de 2014





A minha poesia chega-me carregada
de infância, embora venha revestida
das adustas dores de eu ser adulto
há demasiado tempo, com o céu sobre
os ombros e uma carga de consumições
pesadas, como pedras sobre o espírito.
O que escrevo provém da solidão contínua
e da constante ameaça, a mesma solidão
e a mesma ameaça que me arrebatou
quando era menino e do deslumbramento
fiz, mais do que refúgio, companhia. É este
um modo de rezar, um modo de ir sobrevivendo
às quedas consecutivas, às febres, aos desgostos
que irão acabar por suprimir-me.




  Baptista, Amadeu. Vida Breve. Fafe: 2014, p 9.
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sábado, 27 de dezembro de 2014





Acreditávamos no tempo quando
o país do dragão era um espectáculo
de fronteira inviolável, e a angústia
não saía de dentro do cenário, e a
emoção era um lugar fictício:
acreditar no
tempo o erro mais terrível




    Cruz, Gastão. Fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p 47.
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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014





Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio




   Cruz, Gastão. Fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p 7.
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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Sessão prémios PEN 2014 001



Atribuição dos PRÉMIOS DO PEN CLUBE PORTUGUÊS de 2014: Narrativa (Ana Luísa Amaral e Bruno Vieira Amaral, ex-aequo), Poesia (Gastão Cruz e Golgona Anghel, ex-aequo), Ensaio (Diogo Ramada Curto), Primeira Obra ( Rosa Oliveira e João Pedro Cachoto, ex-aequo).
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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014











Honra-me com teus nadas.
Traduz meu passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.




   Hilst, Hilda. Do desejo. São Paulo: Editora Globo, 2014, p 111.
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Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.


Carrega-me contigo.
No amanhã.




  Hilst, Hilda. Do desejo. São Paulo: Editora Globo, 2014, p 42.
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Aquele Outro não via minha muita amplidão.
Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.
E agora vã, te pareço soberba, magnífica
E fodes como quem morre a última conquista
E ardes como desejei arder de santidade.
E há luz na tua carne e tu palpitas.


Ah, por que me vejo vasta e inflexível
Desejando um desejo vizinhante
De uma Fome irada e obsessiva?




  Hilst, Hilda. Do desejo. São Paulo: Editora Globo, 2014, p. 22.
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domingo, 14 de dezembro de 2014



Nunca digas amor,
sem saberes que os vermes
nascem na ressaca do paraíso.
O tempo tem essa essência de falésia,
fazer do céu
o ígneo chicote para as lágrimas.


Já imaginaste o tecto a descer os degraus,
a entrar-te pela cidade
com pálpebras esmagadas?
O cume a ser o solo?
Pisas então essa palavra
que dizia alucinações aos órgãos.
Muros como se fossem as teclas magnólias.


Escreveste com a língua tantas coisas,
imitaste com ela as ondas.
O mar cabia na boca sem margens.
Às vezes,
largas planícies demoravam fábulas na saliva.
Os beijos realizavam as aves.
E depois dos beijos,
as facas prometiam dias capazes de palácios,
fidelidade sem vento,
ouro com lisura infantil.


O ferrão é o testemunho tardio do mel.




  Pereira, Alberto. Poemas com Alzheimer. Lisboa: Glaciar, 2013, pp 42 - 43.
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sábado, 13 de dezembro de 2014



(...)


A cidade é uma casa de putas.
Os homens procuram o seu signo.
Apanhar o táxi até ao veneno,
seduzir ancas fretadas por outras erupções.


Não lhes falem dessa sarjeta lamechas,
sentimentos.
O que importa
é o sismo que se atinge no colchão.


A cidade é uma casa de putas.
As mulheres vão executando orações,
os maridos fuso horário repetido.
As revistas ensinam,
um só corpo a vida inteira,
antes a morte.
É preciso ser palco para muitas neblinas,
sentir os aplausos da bruma,
e dizer no fim,
por hoje és o Olimpo.


A cidade é um oceano
quando os colchões deixam de palpitar.


 
  Pereira, Alberto. Poemas com Alzheimer. Lisboa: Glaciar, 2013, p 25.
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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014



        " Escrita Criativa "


Havia ainda os pequenos
marçanos de bata de riscado, que dormiam
nas caves das mercearias entre os fardos de
bacalhau e polvo seco. Cruzavam-se na rua
com as aprendizas de modista que começavam
por apanhar alfinetes do chão no atelier, entregar figurinos
às freguesas, encerar os soalhos da mestra e só depois
iniciar bainhas e alinhavos.

Os mestres da escrita criativa
ensinam aos já adultos marçanos
e às prováveis costureiras
a talhar sublimes arroubos ou memórias
porque é bonito ser artista, conhecer as surpresas
da sintaxe, o encanto da melancolia ou o poder, dizem eles, do verbo.

Entretanto esses mestres
da palavra
transmitem os seus belos ofícios, sem a metonímia
de fardos de bacalhau ou polvo seco. E nem
sequer apanharam alfinetes em Ítaca ou
enceraram o soalho do Mestre Caeiro.


  Lourenço, Inês. Telhados de Vidro Nº 19 Maio 2014. Lisboa: Averno, 2014, p 47.
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014




     "  Penélope  "


Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais uma
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.


   Lourenço, Inês. O instante anterior. Porto: Texto Sentido, 2014.
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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014



             "  Monumentos à barbárie  "
                        (toda parte)


sobra sobre sobra -
assim se desdobra a
intraduzível sombra
que ombro a ombro
assombra a estranha
soma que escombra
os monumentos;

pedra sobre pedra -
assim se manifesta,
à margem da imagem,
no abismo de uma fresta,
a larva que infesta a cesta,
a malha que a lama
orvalha.


  Zeytounlian, William. Antologia Poética, É que os hussardos chegam hoje. São Paulo: Editora Patuá, 2014, p 162.
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   " M. António was here  "




Agora estamos quites
Manuel António,
Eu aqui, você, sabe-se lá
Qual é a diferença
Entre o depois e o que há?


Nenhum real e todo o real
Isto: uma arte da memória?
                 Escuto a mim e ao mundo
O logro do além e do aquém
                      O lugar sem qualquer lugar
Manuel António




  Bueno, Danilo. Antologia Poética, É que os hussardos chegam hoje. São Paulo: Editora Patuá, 2014, p 43.
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terça-feira, 9 de dezembro de 2014



                                " Place des Vosges "


Futuro era o de antes, o do tempo dos meus quinze anos. Todas as noites gasto as solas dos meus sapatos caminhando até a praça Matriz, e me sento a esperar o futuro. Venha, compre amendoins com chocolate e sente-se. As mulheres que fumam já me conhecem. Eu não, ainda não me conheço. E também não olho para ninguém, nem para nada. Como amendoins com chocolate. Espera alguém? Sim, o futuro. Respiro fundo, sentado do lado da Catedral, de costas à rua Sarandi. Todas as noites, sou assíduo e pontual. Sei que quando o futuro aparecer, virá voando por trás do Cabido. Uma rajada, e eu o agarrarei em meus pulmões e me levará leve como num globo, longe da praça. A noite está fresca, choveu à tarde. E hoje, chegou? Não, deve estar atrasado, vem de muito antes. Os amendoins com chocolate me pesam como uma pedra. E eu olho para os meus sapatos, desamparados.



 Fressia, Alfredo. Antologia Poética, É que os hussardos chegam hoje. São Paulo: Editora Patuá, 2014, p 9.
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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014



"REVISTA TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciência " nova série/ número 49/ dezembro 2014 - janeiro 2015.
O meu texto, "O real poético e o real da poesia: algumas considerações ", que serviu de base à exposição de 25 de outubro deste ano, nas "Raias Poéticas".
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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014







   
       " Estrada e fim "



Por espaços sem fim brandimos esperanças
- mas o que há é o chão rudimentar.
O corpo frágil. O pó a que voltamos.
A mente móvel sabe-se estranha:
inventar é preciso, monstros nos espreitam.
Monstros nos espreitam no beco - e estamos sós.
Definitivamente estamos sós, ó deuses,
   tíbios deuses!


Por espaços de ouro caminhamos.
Projetos, sonhos, partituras:
ó música inacabada dos sentidos,
por que não me ensinaste que só há fim?


Estrada e fim. Toda estrada é fim
   e nunca sabemos nada.
Vagamos, só, de infinito a infinito,
bilhões, trilhões de tudo que não conhecemos.
Bilhões, trilhões de ilhas solitárias, ventos
temíveis ventos soltos no amplo espaço, tudo
por um triz nada é seguro
   nada.


Só a esperança. O homem e sua desesperada
   esperança.




  Brasileiro, Antonio. Desta varanda. Salvador: P55 Edições, 2011, p 36.
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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Nota - A Batalha de Termópilas (agosto ou setembro de 480 a.c.) insere-se no contexto da Segunda Guerra Médica: os persas, comandados por Xerxes I, invadem a Grécia como resposta tardia à derrota que haviam sofrido na Batalha de Maratona. Agora as cidades gregas unem-se à volta de Leónidas I, rei de Esparta, e tentam suster a enormíssima vantagem que o exército persa traz, contudo, as gregos são traídos por um dos seus que indica a Xerxes a forma de contornar o desfiladeiro e apanhar o inimigo pela retaguarda. Derrotados, os gregos retiram-se com uma percentagem enorme de baixas, mas, após o exército recuperado, acabam por derrotar os persas no final desse mesmo ano na Batalha de Salamina e mais tarde na Batalha de Plateias.
Neste poema, o poeta dá-nos a rememoração de um sobrevivente da Batalha de Termópilas, batalha essa que passou a figurar no ocidente como símbolo da persistência, e da resistência, quando está em causa o solo pátrio. Enfim, temas bem atuais!
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    " A tarde límpida "

No desfiladeiro das Termópilas
vi, sobrevivente único da chacina,
como a História é só uma tarde límpida.
Pois era a tarde mais límpida que já víramos.
Os companheiros olhavam a nuvem esquecida,
não temiam;
observavam o vento tremulante
nas folhagens,
faziam planos para o dia seguinte
- que
        não haveria.

Ainda pude ver a nuvem desfazendo-se.

E, então, o estrépito.
A intensa fúria contra a fúria imensa.
Abatíamos e éramos abatidos.
E por certo ainda havia aquela nuvem
quando os ouvi dizer: Matamos todos.
Mas era noite quando abri os olhos
   e fugi.
Quarenta anos coxo, estropiado
em montes da Arcádia amiga.
Sobrevivi. E conto. Aquela
é que foi a minha vida: a
tarde
        límpida.


   Brasileiro, Antonio. Desta Varanda. Salvador: P55 Edições, 2011, p 11.
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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014



Aquele que olha para o seu passado
sem cansar a sua vida, sem obter
do medo uma carta fictícia de alforria
porque é árbitro das suas promessas e do seu isolamento,
e o tempo ou as quimeras não são portas do seu tumulto,
aquele que traz nas pregas da sua surpresa
ou da substância sua esse fervor que se diz intermitente
e que permite cortar o destino como um queijo tenro,
um queijo que não dá volta à amargura mas adere à estupefacção
e é outro ou o mesmo, porque o fervor o distingue do terceiro espólio,
aquele que não vê esse gosto do despeito porque segue,
rápido, a caminho da sobrevivência
para falar dos ázimos e benzer os pratos mais pobres,
tal a sua ciência é um ardor refutável entre limões
ou ambíguas presenças como fontes onde a doçura vigia,
fende corpos e empresta deuses para segurar pesados braços,
aquele que diz "eu não vim para triunfar,
mas para inquirir sobre o teor da persuasão,
dar à natureza uma queimadura viável
e evitar que o vinho se lembre do timbre pérfido",
aquele que se manifesta sobre a ordem múltipla do êxito
para preservar a susceptibilidade com tâmaras veementes
e avisar a posteridade da arrogância da culpa,
aquele que conhece a sua fraqueza
e não a despe com mais de duas mãos,
não a ouve tão pouco com mais ouvidos do que permite
a essência das coisas, a penitência assustada,
mas é de alto a baixo o inquérito sobre a alternativa,
mar rolado continuamente sobre o seixo exterminador,
ah vo-lo dirão, enfim?
aquele que conhece bem a sua origem
é um homem que passa, leve, entre
os sinais da terra, que permite
aos seus olhos uma celebração contínua.
Ele não caminha de dia e de noite
entre a ruína das palavras e das visitações:
está parado entre duas carnes, tal a beneficência,
porque o seio do seu futuro
se apodera como uma ordenação da sua jornada
e, para lá do sábado, ele colhe e come entre juízos.

    Vário, João. exemplos. Lisboa: Tinta-da-China, 2013, pp 214 - 215.
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quinta-feira, 27 de novembro de 2014



Resumimos: estas ânsias anunciam pactos propícios.
Eis por que hemos insistido em discorrer de tal sorte.
Ah a memória é esse alvo desviado de deus -
coisa geral, coisa relativa, coisa dúbia,
mas coisa, decerto, paga com os exemplos e o tumulto,
porém, como ver, amanhã, o que, hoje, não pertence
nem a esse testemunho nem a esse grão
distribuído aos mendigos das nossas portas?
Vivemos desse crédito, sugere-se,
e esse dom de negar que ouvimos nem
a voz do que clama no deserto
e nos absolve
porque a confusão enche a nossa cabeça
e a longevidade, qualquer que seja o mundo,
é a nossa segunda obsessão,
e constatar que não somos explicáveis
ou lembrar que perecemos
provoca essa lágrima, a primeira
desde há muito tempo, de Anteu.
É esse tormento ou essa luz,
que divide ao meio a verdade,
que nos assiste para falar de predestinação?




   Vário, João. exemplos. Lisboa: Tinta-da-China, 2013, p 115.
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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Texto publicado ontem, dia 24/11/2014, no site português "Das Letras" e no site brasileiro " zona da palavra":
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                                        Maria Toscano e o Canto Da Terra

 
                                                                            Victor Oliveira Mateus

 

        Maria Toscano, natural de Campo Maior (Alentejo), Doutorada em Sociologia pelo ISCTE e atualmente Professora Universitária em Coimbra, vem desenvolvendo uma longa e abrangente actividade no campo das mais diversas áreas: teatro, canto, leituras encenadas, etc. Aliás, é forte a ligação de Maria Toscano à música, já que começa a estudar piano e acordeão em 1969 e mais tarde, em 1983, recebe mesmo aulas de canto. Apesar deste intenso labor, é na escrita que se tem vindo a afirmar, quer como colonista do semanário virtual “Incomunidade”, quer como colaboradora de várias Antologias de Poesia das quais destaco “O Prisma das Muitas Cores” que tive a honra de organizar, quer ainda na sua regular publicação poética: Maria Toscano tem, até ao momento, oito livros de poesia publicados.

     Esta autora propõe-se apresentar-nos agora um ambicioso e original projeto intitulado “Poemas Do Sul”, obra que consta de cinco volumes correspondendo cada um deles a um Canto determinado e dotado de uma cor específica atribuída pela própria poeta. Convém aqui enfatizar o extremo bom gosto e o equilibrado design que subjaz a todo este projeto, que se ordena numa sequência de cinco “Cantos/Volume”: “Canto I. Da Terra”, ”Canto II. Das Marés”, “Canto III. Dos Sóis”, “Canto IV. Da Fala”, “Canto V. Do Branco”.

     No primeiro volume destes “Poemas do Sul Em Cinco Cantos” predominam os poemas longos de verso curto, que é, aliás, uma das características da produção desta poeta, e onde esse mesmo verso curto chega, por vezes, a não ter mais do que uma palavra (Cf. pp 35-36 e pp 86-88). As estrofes, que podem chegar a alongar-se por uma/duas páginas, são, em certos momentos, entrecortadas por monósticos, dísticos ou tercetos, que nem sempre – e este é um dos aspectos interessantes desta tessitura poética! – desempenham, na estrutura poemática, um papel idêntico, assim, poder-nos-á surgir: um terceto com função enfático-conclusiva (p 20), um monóstico como reforço ou mero momento de respiração da leitura (p 10 e p 53), dois monósticos como momento introdutório à estrofe longa que se avizinha (p 52), enfim, são múltiplas as opções de Maria Toscano quanto a este recurso estilístico.

   Esta poesia, apesar de possuir uma assumida tónica no sentido, recorre com frequência a jogos alicerçados na repetição de palavras ou até mesmo de cariz anafórico, como modo de adensar a musicalidade do poema:

 

das vezes que vos falei insisti

insistindo na pureza do sentir.

mãos brancas

passos firmes desbravando

o caminho insisti insistindo

na leveza do viver.

ombros amplos tronco erguido

insisti acolhendo os opostos

insistindo na sageza do ceder

insisti

insistindo na verdade do amor simples

do simples ser.

 

         (p 21)

 

E aqui reside alguma da originalidade da obra de Maria Toscano, que advém do facto de ela conseguir uma voz própria mediante uma conjugação bem doseada de uma poesia “engajada” e de olhos postos no social (Cf. 124), pois é difícil ler-se este livro sem nos lembrarmos da poesia de Manuel da Fonseca ou, até mesmo, de outros poetas que permaneceram na sombra como Sidónio Muralha e Eduardo Olímpio, mas, e ao mesmo tempo, esse legado é inserido em procedimentos e olhares assumidamente modernos (Cf. pp 113-116, pp 121-125). Daqui resulta uma escrita circulando entre o enternecido peso da memória (são vários os poemas onde se fala de presépios, do pai, do musgo...) e o de um futuro almejado, muitas vezes geminado com uma certa veemência do dizer, não é, pois, por acaso que um dos versos alude a Natália Correia. No entanto, e convém ressalvar, o social de que se fala aqui não é o das grandes urbes com os seus rituais e desilusões, mas antes os pequenos aglomerados populacionais, as pequenas cidades, os montes semeados a eito, é de toda essa gente que- para além de falar de si própria – fala a poesia de Maria Toscano numa mescla de assunção e inconformidade:

 

falar-te, longamente, das brancas coisas do Sul...

 

começar pelos marcos a dar nome

às vilas a largos a ruas.

ou começar pela fachada lisa

caiada a preceito bordejada

de amarelos e, mesmo, de azuis

partilhando-se como preto de ferros

puxadores varandas e janelas.

abrir a meia-porta e confirmar

a cal perseverando lá dentro.

deixar-te, então, passar à frente

amiudando os cobres e os estanhos

brunidos areados luzidios

(...)

 

      ( p 105)
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