segunda-feira, 17 de março de 2014



   "  18. O jogo de fazer versos  "


Ao oráculo vou pedir
que me cure a poesia.
Que o rumor dos versos
me perdoe a suspeita, mas
é já tarde para descoloridas
sombras ardendo no papel
- tanto hiato no dizer...
E o que eu queria era fogo
sem disfarces, argênteas
chuvas irrompendo,
mas o alarido dos versos
me coube por morada.
Pois bem: se já não vou a tempo
de desatar a espaços a plenitude,
renuncio. É tão simples como isto.
Sonhei com milagres de beleza,
voos ligeiros de cetim, mas só me calham
sílabas sempre aprazadas, recolhendo
promessas desfeitas que calam,
por momentos, a impostura de
haver morte em tudo o que é canto.
Migalhas, convenhamos.
Assim me confesso atraiçoado:
remorsos insensatos de só ter urdido ecos.
Fábulas, quimeras: afinal, trevas
imprevistas que não soube abandonar.
Todavia, não me rendo:
sei bem de quem é a culpa
e, assim, aponto o dedo acusador.
Às minhas preces fez ouvidos moucos
a triste arte das palavras e injusto
se me afigura este castigo.
O que eu queria era mares de veludo,
sussurrando desamores perfeitos;
não estas sobras desmedidas,
incessantemente repetindo
acordes desiguais - alçapão de rima pobre.
Mas não há maneira de mitigar
este mal de que padeço.
Sofrer? Sofra quem lê.


  Soeiro, Ricardo Gil. Bartlebys Reunidos. Porto: Deriva Editores, 2013, pp 43 - 44.
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