Apresentação do
livro Vida sem Demão de Paulo Pego
Victor Oliveira Mateus
Numa primeira aproximação
ao livro de Paulo Pego Vida sem Demão
parece-me curial começar por um excerto de Maria Filomena Molder que nos diz:
“Há uma grande diferença entre pressentir que chegámos a um lugar, onde tudo
aquilo que encontramos nos precedeu, e considerar que a nossa vinda não é uma
chegada, mas um momento originário que constitui a vida inteira como
inauguração, exercício dos nossos poderes, estando aquilo que encontramos
investido da nossa espontaneidade e da nossa construção. Neste caso não
chegámos a um lugar, demos origem a um espaço que nos pertence.” (in “Simbolo,
Analogia e Afinidade”, 2009, p. 13). Neste texto da autora assumem particular
importância três referentes que são simultaneamente três estruturas ontológicas
distintas: o espaço, o tempo e a capacidade inaugural ou redentora operada pelo
sujeito poético. É neste sentido que devemos ler não só o título do livro de
Paulo Pego, mas também toda a matéria poemática que nele existe. Quanto ao
título, o lexema Demão acaba por nos
remeter para a ideia de uma vida sem camadas ou retoques de inautenticidade,
logo, estamos ante essa sucessão de momentos
originários de que nos fala o texto de Maria Filomena Molder. Paulo Pego,
no primeiro poema do seu livro, é perentório quanto à relação da sua escrita com
este axioma simultaneamente literário e ontológico: “A minha caneta/ está/ onde
sempre esteve/ na vida/ sem demão” (in Vida
sem Demão, (p. 9).
No que diz respeito à
tríade acima mencionada (espaço, tempo, capacidade inaugural ou redentora)
convém acrescentar que este poemário, ao falar-nos de uma dada errância no
aqui, nos desvela a existência de dois planos ao nível do vivido: a vida em
banalidade e a vida em autenticidade, no entanto, esta cisão entre o rotineiro
e o luminoso é passível de ser ultrapassada pelo eu poético, atingindo este os
tais momentos originários já referidos, ou seja, uma Vida sem Demão. Veja-se acerca disto os poemas - “Sevícias”: “Se tu
és a sevícia alojada na sina/ eu sou o mosaico que lateja ao sol (...)/ Se tu
és o tempo/ eu sou a faca que em crime o corta/ Se tu és o gabarito do quartzo/
eu sou a fissura da purificação” (p. 18); “Furnas”: “As amarras da pestilência
são apelo de homem na bruma/ tíbia da purificação// A sagração da terra// Na
carne se faz o regurgitar da devoção e do corte/ salvífico do santo espírito//
A pele// Por onde passa o gêiser da criação// Tempo telúrico/ que agrupa
deuses, pessoas e mistérios” (p. 34). A consciencialização destes dois planos,
bem como, da necessidade de ascender àquele que dote o eu poético de um estar
lúcido, cristalino e elevado aparece em vários poemas, nomeadamente em “Carta a
Hélio”: “Hélio que não és nosso!// Neste 2013 que corre, estou branco da neve
fundida no/ torpor de relógio de sol// (...) Tomo uma ferida/ por bicada de tais
aves. De enlouquecer. Estou disposto/ a tingir a lava branca das tautologias e
a transformar a/ minha bicicleta em címbalo de bronze, em flecha, para/ que
possas afastar e exterminar tais bichos” (p. 10). A passagem do campo da rotina
(1º plano) para o desígnio da luminosidade e da autenticidade (2º plano),
denominado pelo poeta como Vida sem Demão,
é feita através do amor, entendido este não apenas como um estado
psico-afetivo, mas também ético-ontológico:
PINTURA
FAVORITA
A minha pintura
favorita
a que fazemos
no amor
como alteramos a cor
dos lençóis
como os transformamos
em bandeiras
(p. 20)
Atente-se neste poema à
relação que acaba por se estabelecer entre o amor e os lençóis arvorados em
bandeira. Numa conceção menos intimista e mais social e histórica veja-se ainda
esta mesma ideia no poema “Interrogação”: “Perante tanto desencontro/ e
pêndulos de sal, que lugar para o amor?” (p. 26). Aliás, não é por acaso que no
penúltimo poema deste livro (“Momentos”) o poeta desregula o tempo e o espaço
para colocar o eu poético – e o leitor – num cenário que enfatiza os já
referidos momentos originários, a tal Vida
sem Demão:
MOMENTOS
Em Veneza não há
hora
Os ponteiros
tomam-se por fios de água
Desregulado o
tempo, o prazer vem liquefeito
Em Veneza só há momentos. E vapor
(p. 43)
André Green, no seu La Déliaison, Psychanalyse, anthropologie et littérature, chama-nos
a atenção para o facto da escrita em si, no essencial, ser uma representação arbitrária,
que, para ganhar sentido necessita que o leitor ligue caracteres, respeite
silêncios e pontuação, articule palavras, sintagmas, etc., dito de outra forma: é preciso que o leitor
saiba escutar o texto e apreenda – através das suas próprias representações – o
que o escritor, neste caso o poeta, pretendeu representar (Cf. André Green, op.
Cit. pp 18 – 42). Ora, em que medida as representações de quem lê, de quem
interpreta, de quem critica, coincidem com as do poeta colocado ante o ato da
escrita? Isso jamais será conhecido. O poeta, ao escrever, mostra qualquer
coisa que transcreve em caracteres, traduz representações em escrita, mas, ao
mesmo tempo, vela-nos todo um solo imenso, solo esse que faz Julia Kristeva,
num brilhante estudo sobre o Ulisses,
dizer que a glória e o desenvolvimento do espírito criativo de Joyce foi
conseguido pela sua incursão num
território interdito que pode perturbar a vida (Cf. Les nouvelle maladies de l’âme, p 276), contudo, é desse território
fantasmático e falho de apreensão plena, que o imaginário e as representações
emanam: é desta aparente fragilidade e desta incompletude que ressuma toda a
riqueza da literatura e, no caso que me ocupa aqui, da poesia, condenando-nos à
evidência de que todo o olhar que se debruce sobre um poemário seja sempre
aproximativo e lacunar. Assim, poderemos admitir que esta Vida sem Demão possa ter um sentido mais linear e menos hermétido,
do que aquele que vimos acima, ou seja, em vez de um segundo plano
ético-existencial marcado pela autenticidade, pela luminosidade e pela
superação do ínfimo e banal, o poeta esteja tão-só a falar da vida nua e crua – vejam-se, então, os
poemas “ Crise “ ( p 12), “A crise e o nu” (13), “ Sem-abrigo” (p14),
“Contorcionista” (p 15), etc., contudo, esta leitura da Vida sem Demão referindo-se (apenas) à vida nua e crua, e encumeando
o social, o económico e o cultural, não exclui a proposta inicial de leitura
baseada nos já referidos dois planos com a necessária passagem (ou ascenção?)
do primeiro para o segundo, aliás, esta interpretação fundamenta-se também no
facto desta obra ser atravessada poor conceitos marcados por uma certa
religiosidade: anjo, Evangelho, purificação, sacrilégio, peregrinos, etc. Se
assim for, faz sentido, que seja dado aos Açores a honra de um capítulo à
parte, isto é, não deixa de ser significativo que num livro onde assomam
cidades como Paris, Londres e Roterdão com alusões explícitas e implícitas ao
vivencial rotineiro e urbano, seja no capítulo relativo aos Açores que se fale
de: sagração da terra; gêiser da criação;
tempo telúrico/ que agrupa deuses, pessoas e mistérios (in poema “Furnas”,
p 34). E é esta uma das riquezas maiores deste livro de Paulo Pego, onde, para
além de uma excecional acuidade
semântica e de uma imagética multipolar e
rica, o poeta nos apresenta aquilo que vislumbra como vida sem demão, ou seja, uma tecitura,
que, como um caleidoscópio de cenas e vivências, jamais desiste do topo apesar das quotidianas argamassas e das gargantas cruas dos prédios:
MODOS
O topo. Onde os peregrinos perderam dedos e tu
Perguntas por vagar eólico das canoas. As manhãs
são
Construídas na safra benta dos moínhos, que as
proas já
Partiram no estuário do bazar. Restam as
argamassas, as
Gargantas cruas dos prédios. Neste receio de
grânulos e
De jubas, é necessário travar as cadências impunes
das
Pontes e criminalizar as premissas da água.
Roterdão
Como se as molas libertassem aço
(p 42)
Terminamos, pois, com as palavras de Gilles Deleuze, quando nos diz que
“escrever é necessariamente forçar a linguagem e forçar a sintaxe, forçar a
sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras “ (
in Abecedário, A de Animal ), mas que
em Vida sem Demão de Paulo Pego tem
por fito , não o chegar a lugar algum – como nos disse Filomena Molder -, mas
antes em dar origem a um espaço que é pertença do eu-poético, espaço esse, que,
sem camadas nem retoques, se assume sempre como uma súmula de momentos repletos
de vida e inaugurais.
Livraria Pó dos Livros - Lisboa, 26 de setembro de 2015.
Livraria Pó dos Livros - Lisboa, 26 de setembro de 2015.