domingo, 20 de setembro de 2015


aprendi nas pequenas gares de província
a esperar comboios que não chegavam nunca
(ou chegavam tão atrasados que
no momento em que se avistavam
já eu tinha desistido deles)
e sempre invejei o velho Tolstoi
fugido de casa aos oitenta anos
a deixar-se morrer numa delas
no meio de toda a brancura do mundo

um dia     entre Belver e Gavião
(possivelmente nem sabes onde
isso fica)
uma velha pediu-me que lhe segurasse as mãos
porque     de repente     sentira muito medo de
morrer sozinha
(coisa que nunca deve ter passado pela
cabeça do velho russo
para quem a morte só podia ser um
brando ajuste de contas sem testemunhas)

então     entre curvas e desvios     contei-lhe
todas as curvas e desvios das minhas vidas
e ela sossegou um pouco     e disse que
eu ia ser muito feliz porque sabia
distinguir entre todos o comboio certo

aquele     explicou já na saída
que se afasta no exato momento em que
o sol desenha a nossa sombra no olhar de
quem nos deixou


    Vieira, Alice. Os armários da noite. Alfragide: Editorial Caminho, 2014, pp 32 - 33.
.
.