segunda-feira, 4 de julho de 2016



   "  26. Nota de denúncia  "


Hoje é o silêncio quem reina:
esquece por momentos a persistência
de noites e invernos.
Davas-me por perdido,
mas fui eu quem te encontrou
assim levemente abandonada.
O que finalmente somos:
vozes meticulosamente alvoroçadas,
veneno atroz disputado pelo tempo.
Haverá amanhã, todavia:
não faças caso, amor desperdiçado,
e acredita no enredo de jamais ter sido.
Sabendo de antemão de segredos repartidos,
o que vai ser de nós, agora que desbaratámos
as difusas poupanças de uma vida?
Não te zangues:
se te digo tudo isto
é porque é mentira esta melancolia.
Haverá amanhã, é o que é:
o consolo chegará na forma de um cigarro
reluzente que não chegaremos a estrear.
Respirando a luz prostrada,
precisaria de saber mais:
se ainda me amas, por exemplo;
se nos pertencem os inícios e os atalhos,
se inventaremos, de novo, o fulgor intacto.
Enquanto espero pelos dias,
conformo-me com a redenção
de algum olhar teu - subtil, luciferino,
que já não rasgue oceanos de mistério.
Sei que ainda habitas debaixo
de braços, lábios e lençóis:
o que te denunciou?
Sílabas brilhando...
Não te zangues, meu amor:
estas minhas palavras
- somente puro regateio.


  Soeiro, Ricardo Gil. Poema 26 do Volume "Bartlebys Reunidos, Para uma Ética da Impotência" in Palimpsesto. Porto: Deriva Editores, 2016, pp 95 - 96.
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