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A ESCRITA E O MUNDO NATURAL NA POESIA DE
RUI TINOCO
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
O
último livro de Rui Tinoco (A Mão
Heteronómica, Volta d’mar, 2017) apresenta-se, num primeiro momento, como
um cismar poético e uma inquirição sobre a escrita: “(…) e tanto é escritor/
aquele que segura à noite/ a caneta como
esse amigo,/ despreocupado, relembrando/ tempos antigos” ( p 3); “necessito ser
aqui um autor/ que me diga coisas: o destino/ as emoções que não soube viver/
ou sentir, como se escreve/ um peito que respira?...” (p 20). Contudo, esta
escrita de que nos fala o poeta não se reveste de particularidades epocais,
geográficas ou outras; o particular não é aqui o alvo da inquietação poética:
“a mão, no século XII,/ também afagava rostos,/ evocava emoções,/ desejava o
inefável, dela/ ficou apenas um vestígio/ bibliográfico, uma nota/ fora da
mancha do texto “ (p 37): a escrita de que fala este livro não se subsume nos
seus tipos (pictórica, cuneiforme, ideográfica, alfabética, etc.), nem nas
diversas teorizações que sobre ela têm surgido (as obras de Barthes, os autores
interpretados por Julia Kristeva ou até as análises de Jung em torno da escrita
do inconsciente em “Sur l’interpretation des rêves”); a escrita de que se fala
não é também passível de explicitação plena através de um ou outro elemento que
se lhe possa associar: redação, tipo de leitura (Cf. o célebre episódio de que
fala Alberto Manguel no seu Uma História
da Leitura - Ed. Presença-, quando refere a estupefação de um monge no
momento em que se apercebe de que a leitura em voz alta afinal pode ser
substituída por uma leitura em silêncio). Todas estas especificidades são
acessórias para a busca empreendida na obra de Rui Tinoco. O que o inquieta e
que poeticamente vai indagar é o sortilégio da escrita, da escrita-em-si, é,
noutros termos: a essência dessa escrita que nos invade, que nos cerca e da
qual fazemos parte: “nessa altura, ignorava ainda/ como iam ser estes versos,
estranho/ sortilégio da literatura: é por essa/ exígua janela que vão apreciar/
toda a cena, sem se perceberem” (p 7).
A compreensão disso a que chamamos escrita e
a possibilidade de se apreender o seu em-si, afasta-nos decisivamente do
idealismo kantiano onde a coisa-em-si permanecia incapturável pela Razão
Teórica, já que apenas suscetível de apreensão pela Razão Prática: para Kant a
coisa-em-si não é mais do que um conceito limite. Ora, neste livro de Rui
Tinoco, parece evidente que através dos diversos fenómenos esparsos pelos
poemas eu consigo desvelar aquilo que é a escrita. Estamos, por conseguinte, no
seio de uma inquirição de coloração assumidamente fenomenológica: eu posso,
através do que os vários fenómenos apresentam à intuição, captar, como
evidência, o que é a escrita:
“Qualquer fenómeno (…) é sem porquê, já
que todo o fenómeno é como ele se dá (à intuição).// Uma tal apreensão abre a
verdadeira via para um acesso às próprias coisas, portanto, a fenomenologia
acede, sem nada de prévio, ao próprio
fenómeno que é recebido tal como se dá.” (in Jean-Luc Marion, Le
visible et le révélé, cerf, p 19; cf. igualmente Husserl, L’Idée de la phénoménologie, Ed. W.
Biemel, 1973, t II, p 74)). Desembocamos, como vemos, na tese husserliana de
que a intuição, a evidência e a verdade coincidem. Estabelecido, por mim, este
tópico, vejo Rui Tinoco lançar-se numa exaustiva inventariação poética de
momentos onde o fenómeno da escrita se desenha:
“a dizer-me: “isto é/ solidão”. Eis uma outra/ perspetiva para/ a
escrita.” (p 4); “ este, por exemplo: já está/ condenado, o melhor que se pode/
fazer por ele é transformá-lo/ em personagem: geme/ e lentamente se desvanece/
na página oitenta e três” (pp 12-13); “ não quis escrever o texto/ que afinal
aqui está perante/ os vossos olhos. o tema/ da dor é sempre delicado” (p 25);
“o autor é personagem/ do seu texto, o seu evangelista./ espalha a palavra,/
tornando-a carne, voz que voa/ sobre a plateia em plena leitura/ interior. é
também o próprio/ branco da página fecundado/ pela sua biografia:” (p 38). Eis
a escrita na sua multiplicidade fenoménica, a diversidade das situações por
onde ela pulula e que aguarda o abraço unificador, o olhar que a diga e
ilumine!
Esta minha leitura de A Mão Heteronómica parece, todavia, ensombrada pelo estatuto do
mundo natural nesta poética, bem como por um delicado processo de enxertia que
o poeta decide fazer no corpo dos diversos poemas: “ a onda rebentou contra/ o
primeiro vocábulo do poema./ o início do poente aquecia-me/ os sentidos, pese
embora dificultasse/ a leitura completa deste texto. (p 26); “(…) o ruído do
mar/ essa voz rouca que invade/ versos e depois se retira.” (p 27). Ora, e
seguindo o modelo interpretativo que vou aqui utilizando, há duas variáveis que
urge retirar de cena, se acaso quisermos encontrar – neste livro - o que a
escrita é em-si: por um lado a psicologia empírica, tida por Husserl como uma
ciência natural e cujos laivos podem ser encontrados em poemas como “Caim” (p
11), “No falecimento de Gabriela Tinoco…” (p 19), “Diz Maria Gabriela…” (p 35);
por outro lado, os diversos elementos do mundo natural que invadem as várias
estruturas poemáticas, já que uma atitude fenomenológica exigirá aqui
necessariamente duas etapas: a redução
eidética que me permitirá a intuição das essências em vez da consideração dos
factos e das coisas naturais e a epoché, que
me autorizará a pôr entre parêntesis a existência do mundo natural (cf.
Husserl, Meditações Cartesianas,
parágrafo 44).
No entanto, e apesar dos aparentes escolhos,
uma fenomenologia da escrita, um intento de desvelar aquilo que ela é
essencialmente, não se encontra ameaçada pelas variáveis referidas e tudo isto
porque a técnica poética de Rui Tinoco se alicerça na sobreposição de planos
narrativos, ficcionais e poéticos, nas cissuras espaciais e/ou temporais, nas
ruturas e, muitas vezes, na recomposição dessas ruturas. Esta é, portanto, uma
tessitura poética complexa, que, desenhada a régua e esquadro consegue não
descambar num discurso geométrico, mas, antes pelo contrário, é o filigranar do
corpo do poema que lhe avoluma a poeticidade e, neste caso, concreto, que conduz
o livro não a um produto híbrido ou insosso, mas antes nos alerta para algo a
seguir de perto, lembrando-me mesmo o monólogo interior de Virgílio ante as
pressões Lucius: “A verdadeira arte ultrapassa os limites, rompe-os e penetra
em domínios novos, até então desconhecidos, da alma, da concepção, da
expressão, irrompe no original, no imediato, no real…” (in Hermann Broch, A Morte de Vírgilio – Vol II, Relógio
D’Água, p 32). Como ilustração da referida técnica na construção do poema,
veja-se: “a infância tornou-se/ uma história em que não/ participo, uma
história que/ não apetece ler segunda vez./ aborrece. como voltar a/ preencher
o início dos livros?” (p 40), mas também em trabalhos anteriores de Rui Tinoco:
“trouxe tanta coisa para o poema/ que acabei por me confundir:/ fiquei
desconfortavelmente sentado/ logo após o ponto final” (in O Segundo Aceno, Edições Sempre-Em-Pé, p 18). É, por conseguinte,
esta tessitura textual, que nos permite falar da existência, por vezes, de
interconexões ou de ilustrações reciprocas nos diversos planos do poema, sem
que isso conduza a qualquer contaminação dos mesmos, ou seja, um cuidadoso
processo hermenêutico do texto, de raiz fenomenológica, pode perfeitamente
entregar-me o que a escrita é em-si, sem que a evidência obtida por essa
intuição colida com o mundo natural, que, por um processo de redução, corre de
outro modo embora em lugar contíguo.
E o que é, então, a escrita, segundo esta
minha leitura fortemente alicerçada em Husserl e que, por isso mesmo, tem mais
a ver com a Ontologia do que com a Linguística ou com a Antropologia? Um
processo onde o Todo se vai dizendo através do Tempo; um processo onde
insistimos em dizer por meio de códigos que tão mal dominamos: uma comunhão
intersubjetiva dos vários eus, diria Husserl: “La subjectivité peut alors être
appréhendée comme immédiatement ouvert sur les autres consciences, grâce à une
réduction qui n’est plus seulement égologique,
mais proprement intersubjective.” (in
Natalie Depraz, Husserl, Flammarion,
p 347) A escrita como um continuum expectante de signos que, por uma qualquer
necessidade jamais conhecida, se vão dizendo, destruindo, amando, ou seja,
inscrevendo a sua efemeridade na iniludível perenidade daquilo que É:
esse
um que faremos, eu texto
e
tu leitor, será a união possível
entre
uma infinidade de possibilidades.
digo
isto não para me alçar
a
uma posição de sobranceria mas
porque
um encontro entre dois humanos
é
sempre irrepetível – acontece
apenas
que, neste caso,
os
meus braços são feitos de letras.
et
voilà.
In Mão
Heteronómica, p 44.
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Mateus, Victor Oliveira in Revista (online) Caliban, 29/Set./2017.
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Mateus, Victor Oliveira in Revista (online) Caliban, 29/Set./2017.
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