quarta-feira, 13 de setembro de 2017


               Décima do João Charamba
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Meu amigo João Charamba,
Sempre brabo, sempre bum,
Levando encomendas, nicas
A casa de cada um:

Levanta-te lá da cova!
Escuta, te vou falar:
Tenho saudades de ti
Como conchas há no mar!

Quando eu era pechinchinho,
Que botava o meu pião,
Tu tiraste-me a fieira,
O casquelete e o ferrão.

Não te alevanto um aleive,
Vou já dizer como foi:
Foi viage de cidade,
Tão grande, que ainda me doi!

Tua mulher, que Deus tem,
A nossa santa Rosinha,
Ainda me talhava bibes
Com algibeira e bainha.

Mas fiz o segundo exame,
Andei bem, fiquei distinto.
O resto... foi a adagada,
Que ainda agora bem na sinto!

Meu Pai foi a tua casa,
Entrou na tua cocheira,
Marcou lugar para mim
Numa almofada traseira.

- "Amigo João!" - (parece
Que, mesmo morto, lhe aceno!);
"Vai este baú de lata,
"Agasalha-me o piqueno!"

Estavas a cardar o macho,
Apressado e já nervoso
(Aquele teu macho valente,
Um bocadinho ventoso...);

Mas respondeste que sim
(Punhas o colar folgado).
Depois, deste a volta à Praia;
Meu Pai ficou descansado.

No outro dia de manhã,
Mal o buraco luzia,
Apartei-me de meus Pais
E de toda a companhia.

Fui ao Senhor Santo Cristo
Dizer adeus à Madrinha,
Despedir-me do quintal
Do granel e da cozinha.

Lá me sentei na carroça.
Meu Pai deu-me um beijo e disse:
- "Toma lá... São doze e meio.
"Para alguma gulodice..."

Ainda aqui, na minha cara,
Uma migalha me passa...
Era uma lágrima dele!
(O doce ficou de graça).

O teu machinho era esperto,
Redondo, sem grandes pressas...
(Castanheiro dá castanha
E flor - já sabe...- às avessas!).

Lá ia ele, tuca-tuca,
Pela presa do Ferrão;
Co a força do nevoeiro
Só via um palmo do chão.

E eu cá em riba, na almofada,
Mais triste que um passarinho,
No cabo do teu chicote
Ia aprendendo o caminho.

Grotas da Fonte Bastarda,
Moinhos da Vila a andar...
Depois, a Casa dos Mudos,
Que nos vinham acenar.

Viam-se ao longe os Ilhéus
Cheios de craca e perrexil!;
Tu às vezes praguejavas
Se te caía um funil...

Mas tudo se consertava
Sem más falas nem despesas.
(Para aliviar o macho,
Apeávamos nas presas).

Éramos Deus cos seus anjos
Naquele carrinho traseiro,
Chegadinhos uns pròs outros
Coma moeda em migalheiro:

Eu, só Luís, meu primo Reis,
O siô Esnuário e o Firmino
(Deixávamos sempre atrás
As barbas do ti Josino).

Mas eles é que tinham sorte!
Iam e vinham num dia...
Só eu, naquela carroça,
Da Praia me despedia!

Ia estudar prà Cidade,
Aprender para Doutor...
Mal sabia o que me esperava,
Que eram só penas de amor!

A tua carroça, cheia
De povo e de massagadas,
Acordava os pintainhos,
As igrejas e as testadas.

Cada roda era uma rosa,
Cada lanterna uma estrela;
No altar da tua boleia,
O chicotinho era a vela!

Se passávamos nuns toiros
(O adro parecia um ovo!),
Tu, de chicote nos raios,
Gritavas: - "Eh, gente! Eh, povo!"

-"Olh' olh' olha!" - caçoavam,
Nas paredes, os rapazes,
De bordões enconteirados,
Vermelhos coma rocazes!

Mas o macho era andarilho,
E as guias, na tua mão,
Sendo preciso, serviam
De capote ao boi Saltão.

Oh Porto Judeu, Feiteira,
Santo Amaro, Bua Vista!
Ficam chocalho atrás,
Já a Cidade se avista!

Minha saudade, embalada
Nos solavancos do chão,
Já se ria, já passava...
Que a vida é isto, João!

Oh Angra, tarro de leite,
Estava-te quase a beber...
Estrela do meu destino!
Castelo do meu bem-querer!

Já se avistam n'as muralhas
E a fábrica da Carreirinha;
Já toca o sino da Sé
As horas da manhãzinha...

Olha o Palácio do Bispo
E a insígnia do General,
Pátio do Conde, Mimória
E a fidalguia em jaral!

Já se vêem nobres quintas,
Casinhas, Sã João de Deus,
O mirante do meu bem
E as torres de Sã Mateus!

Cheias de orvalho das ervas,
As orelhas do teu macho
Eram luvinhas de aljofre
Pla Grota do Vale abaixo!

Ah, macho do João Charamba!
Ah, machinho de aluguer!
Vivo, redondo, enfeitado,
Parecias um malmequer!

Assim, durante uns par de anos,
Me levaste e me troixeste.
Sempre, sempre o mesmo aperto
No meu coração puseste!

Lá na Praia da Vitória
Deixava tanta inocência...
E no caminho aprendia
As voltas da paciência.

O cemitério, à Feiteira,
Siste et ora me dizia:
"Pára e reza" e segue sempre
Na mão da Virgem Maria!

Assim fiz, sabe Deus como!
(Que santos, no mundo, há poucos).
Os galos da Ribeirinha
Já não cantavam, de roucos.

Nossa Senhora é do Céu
E este mundo fome e guerra...
Deus quis que quem me guiasse
Fosse uma estrela da terra.

Por isso, amigo Charamba,
O teu machinho estacou
Lá nas suas quatro estacas
Quando a cidade avistou.

Era ali, naquele Castelo,
Era ali, naquela cova,
Que me esperava a morte e a vida
E a estrela da Boa Nova.

Por isso, amigo Charamba
(Padre-Nosso, Ave-Maria!),
Tu tiraste-me o pião,
Mas deste-me a luz do dia!


 Nemésio, Vitorino. Obras Completas Vol. I - Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989, pp 347-352 ( Prefácio, organização e fixação de texto de Fátima Freitas Morna).
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