Apresentação
do livro Viagem à Demência dos Pássaros de
Alberto Pereira
Creio
justificar-se, como preâmbulo a esta Apresentação, um poema de uma das grandes
poetas que escreveu em português na segunda metade do século XX: Dora Ferreira
da Silva.
O PÁSSARO
Tênue
toca a terra dura
e ascende.
No céu expande o canto
ferindo as cordas do infinito.
Nas folhas acorda um timbre
delicado.
Mas conhece a ferocidade.
Na fome se precipita
destroçando com o bico
vermes
que a terra expulsa
sem piedade.
Sua morada é o canto
mais do que ninhos
ou a voracidade.
E sobe para um dia cair
sem ressentimento.
Este
poema de Menina seu mundo (1976),
depois reeditado em Poesia Reunida. Rio
de Janeiro: Topbooks 1999, pp 121-122, e que precede em quase duas décadas o
mais importante ciclo poemático de Dora dedicado a aves, o Garças, publicado em Poemas
da estrangeira (1995), ilustra os três nós temáticos do presente livro de
Alberto Pereira: a viagem, os pássaros e o demencial. Vemos, portanto, e numa
primeira abordagem, que o presente livro recusa uma linearidade discursiva
centrada no prontamente dado aos sentidos, nas vivências ritualizadas do
quotidiano e nas inquietações específicas de um mundo urbano ensimesmando-se
numa auto-imagem grandiosa. À opção, mais ou menos circunstancial, pela urbe e
pelo imediatamente experienciado, Alberto Pereira contrapõe uma tessitura
metafórica articulada, onde a presença dos diversos leitemotive (o tempo, a
casa, os retratos, as árvores, os livros, o piano, etc.) nos fazem lembrar os
grandes rasgos poemáticos dos séculos XIX e XX (Cf. Wagner in Tristan und Isolde. Paris: Aubier, 1974,
p 243: o desejo, o olhar, o mar, etc.; Cf. igualmente Giovanni Testori in Três Prantos. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2012).
Viagem
à Demência dos Pássaros compõe-se de três secções: Monólogos do Báltico, Cartas à Arquitectura da Geada e Crónicas do
Nevoeiro, que podem ser lidas autonomamente como entidades devidamente
estruturadas, mas também como etapas de um périplo cujo término surge nos
quatro últimos poemas do livro, curiosamente formado por dísticos isolados e
por um poema de estrutura estrófica dual também ela dística. Eis três desses
poemas que assinalam o fim da viagem referida no livro de Alberto Pereira:
De árvore em árvore,
crescer nos incêndios.
(p 66)
Quantas paisagens cruéis
são precisas
para que a pele cheire ao
nevoeiro perfeito?
(p 67)
O homem,
viagem à demência dos
pássaros.
(p 69)
Percebemos,
portanto, que o poeta nos conduz, ao longo do livro, por uma viagem que não é
nem geográfica nem histórica, mas que se enraíza nos grandes temas, que, ao
longo dos séculos, têm perseguido o humano, fazendo-nos lembrar o homo viator dos autores medievais:
Houve
um tempo em que as aves
não
estavam embaciadas.
As
asas não tiveram
a
sorte de Ulisses
e
Ítaca
é
a melodia do pranto.
Ficámos
sós,
a
matar as teclas,
com
o piano pendurado nos olhos.
(p 57)
De
entre esses temas ressaltam: o amor (pp 27, 37…) e a paixão e o que neles há de
desencontro (p 53…), o sentido do estar-aqui – com um cunho nitidamente melancólico
e desesperançado – (pp 39, 40…), a questão da divindade (pp 35…), o relacional,
sobretudo a amada e o desejo (p 43) o tempo e a sua relação com a memória (p
51…) e com o fim.
Arthur Dreyfus numa entrevista aquando da
publicação de um livro que escreveu com Dominique Fernandez (Correspondance Indiscrète, Grasset 2016)
diz-nos que existem duas formas de o escritor visar o seu objeto: de um modo
direto e linear, correndo o risco de degenerar num certo panfletarismo ou de um
modo de desvelamento aproximativo que paulatinamente se vai apropriando desse
mesmo objeto e é, para Dreyfus, por este segundo caminho assumidamente
metafórico que o aumento da poeticidade de um texto se dá. Alberto Pereira
segue, então, esta segunda opção estético-literária, afirmando uma poesia
torrentosa a fazer lembrar Ruy Belo e António Ramos Rosa, de uma metaforização
neobarroca à imagem da portentosa lírica de Natália Correia e trazendo para
esta Viagem à Demência dos Pássaros
todo um léxico tradicionalmente extra literário ligado ao biológico e ao
fisiológico:
(…)
Palavras selvagens,
sílabas
nuas de cieiro,
unhas
a crescer nas estrofes
e
um moinho onde possa matar
a
hipertensão do ego
Nenhuma
candeia se acende com lepra
(p
18)
Parece
que ainda te vejo chegar.
É
indecente que continues a passear-te pelo meu corpo.
A
insistir em masturbar falésias.
(…)
O
whisky é um sedativo para as melodias que ladram.
Vou
açaimando os animais revoltos no sótão cardíaco.
(p 42)
Vivo
no fígado,
Cidade
enrugada que recita solidão à cirrose.
Coincide
o teu corpo
com
o que Saramago decifrou dos escombros de Deus.
(p 43)
Esta
experiência de trazer para a poesia um léxico de territórios que
tradicionalmente lhe são alheios e que tivera um ponto alto em Limite de Idade de Vitorino Nemésio
(1972), não sendo usual na poesia portuguesa contemporânea, encontra-se já em
livros como Disrupção de Jorge
Melícias (2008) e Chave de Ignição de
Ruy Ventura (2009) e surge recorrentemente nos livros de Hugo Milhanas Machado,
e agora também em Alberto Pereira.
Seguindo de perto esta ideia do que o que
está em causa nesta poesia, não é um hedonismo individualista e burguês que,
por vezes, arremessa as escritas do diferente para o monturo do que prejudica a
sanidade psíquica (seja isso o que for!), a escrita de Alberto Pereira veicula
os aspetos e as inquietações essenciais do homem, assim, não deixa de ser
significativo que o primeiro capítulo deste livro, Monólogos do Báltico, ponha em evidência aquilo que nos povos
eslavos Baltas - povos que habitavam “desde a desembocadura do Niémen até ao
golfo da Finlândia: Estónia, Letónia e Lituânia e ainda aos Prussianos das margens do Vístula”
(Cf. Maria Lamas in Mitologia Geral –
Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa 1991, p 87) - era primordial: a adoração
da natureza, já que a Mitologia Balta não tinha a noção de Deus nem de vida
para além da morte, antes venerava os astros, a água, os animais, as pedras e
nas florestas sagradas, sobretudo para os lituanos (país fortemente
arborizado), não se podia “caçar ou capturar qualquer animal incluindo as aves”
(in Maria Lamas op. cit. p 88). A relação que Alberto Pereira estabelece entre
a sua poesia e o solo matricial de onde
ela advém é, portanto, um marco importante desta escrita – ex.:
Depois a boca começou a
ter cadastro.
A pele adquiriu a
claridade fosca
da música de Sibelius
e duvidei se a tua
garganta
era a Finlândia.
Todo o frio confessa,
deixaste-me o Báltico.
(p 24)
Eis,
e na sequência de tudo isto, a referência a Sibelius o compositor do célebre
poema sinfónico Finlândia op.26, bem
como de Valsa Triste, ora, e
atendendo à relação entre esta poesia e aquilo que no humano é, em
autenticidade e originário, não me surpreende que o Mito Cosmogónico dos
ugro-finlandeses parta exatamente de uns ovos que uma ave colocara nos joelhos
de uma deusa (Luonnotar/ filha da
natureza), que, melancólica, se deixava estar no oceano (Cf. Maria Lamas,
op. cit. p 114). Não me surpreende também, por conseguinte, que num livro como
este, que fala de pássaros, jamais apareça qualquer referência a Messiaen,
músico que tanto compôs sobre pássaros, mas sempre com uma dimensão religiosa e
redentora. À crença de Messiaen, Alberto Pereira opõe, neste livro, a
melancolia de outros compositores românticos como Sibelius: Chopin, Beethoven e
Tchaikovsky, aliás, Pushkin é referido na página 29, e não podemos esquecer que
Eugene Onegin , a principal ópera de
Tchaikosky se baseia exatamente no romance em verso homónimo de Pushkin. Claro
que o poeta refere igualmente Mozart e Stravinsky, mas não porque lhe interesse
o neoclassicismo do primeiro ou o moderno-serialismo do segundo: Viagem à demência dos pássaros nada tem
a ver com esses movimentos artísticos: do primeiro convém reter tão-só a
funesta existência e do segundo importa-se apenas o primeiro período, aquele em
que havia sagrações da natureza e pássaros de fogo. Penso, pois, que este
livro de Alberto Pereira, se no aspeto formal se insere numa escrita
ousadamente metafórica e de um cheio neobarroco, ao nível do dito inscreve-se
naquilo a que chamo os novos Romantismos dos
séculos XX e XXI de que O Canto do Vento
nos Ciprestes de Maria do Rosário Pedreira foi, talvez, a grande pedrada no
charco. Encontramos neste livro de Alberto Pereira os temas do Primeiro e do Segundo
Romantismo: a amada ausente, o desalento perante uma procura em vão, a geada, a
penumbra, a névoa, etc., mas integrando imediatamente tudo isso nas “conquistas”
do Modernismo e do Realismo Estético: o corpo, o desejo e a pulsão
explicitamente sexualizada, a integração do quotidiano concreto, etc., aliás,
as interconexões com o Realismo Lírico surgem à saciedade:
.
.
A
beleza rouba muitas horas à devoção.
E
eu que sempre gostei de mulheres de t-shirt mal alinhada.
Calças
de ganga.
Cabelos
soltos para o vento fazer o que quiser.
Mulheres
com vestígios de areia por baixo das unhas
Para
levarmos Agosto a todos os lugares.
Mas
não.
Nunca
me fizeste a vontade.
Passavas
séculos com os dedos estendidos.
As
cores a saírem dos frascos.
E
o seu cheiro a matar a areia que delirava debaixo delas.
Sentado
nesta esplanada,
Sei
que a ruína se aluga aos órgãos mais inconformados.
(pp 42-43)
Vê-se
nesta situação uma luta clara entre a mulher real e a mulher idealizada, bem
como a impossibilidade da primeira se adaptar à segunda, logo, o eu-poético,
pela frustração sentida, cai na inevitável melancolia, eixo maior da demência
neste livro. Por outro lado, a resiliência e, concomitantemente, a capacidade
de regeneração do eu-lírico não têm já nada a ver com os Romantismos do século
XIX, onde a exacerbação do sentir era levado geralmente ao paroxismo:
Faire
une perle d’une larme,
Du
poète ici-bas voilà la passion,
Voilá
son bien, sa vie, et son ambition.
Musset, Alfred de. Poésies completes. Paris: Le Livre de Poche, 2006, p 546.
Puis,
quando vient l’automne brumeuse,
Il
se tait… avant les temps froids.
Hélas!
Qu’elle doit être heureuse
La
mort de l’oiseau – dans les bois!
Nerval, Gérard de. Les Chimères, la bohême galante, petits châteaux de Bohême. Paris:
Gallimard, 2005, p 88.
Concluo, com um excerto de um brilhante
ensaio de João de Mancelos: “Ao longo dos tempos, as aves têm fascinado os
escritores das mais diversas civilizações. Nalguns casos, o literatura
popularizou de tal forma um pássaro que este ficou para sempre associado a um
poema, lenda ou narrativa” ( in O
Marulhar de Versos Antigos, A Intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa:
Edições Colibri, 2009, p 16). E João de Mancelos passa a uma exaustiva
enumeração: o rouxinol (significando a noite) e a cotovia (significando o dia)
em Romeu e Julieta de Shakespeare, o Corvo de Allan Poe, o rouxinol de
Keats, etc. Em Viagem à demência dos
pássaros de Alberto Pereira estes alcançam uma significação complexa,
porque dotados de um hibridismo significativo: os pássaros são simultaneamente eles-mesmos, mas também uma
representação dos humanos enquanto viagem
à demência ou, para usar a expressão
da Julia Kristeva, seres marcados por As
novas doenças da alma, por conseguinte, estes pássaros dementes que somos,
já nada têm a ver com Shakespeare ou Keats, somos As aves ambiciosas de Aristófanes, as vingativas de Hitchcock, as
assassinas e justiceiras como o Melro de
Junqueiro, portanto, e parafraseando os versos de Alberto Pereira, o homem de
hoje não é mais do que uma viagem à demência, um voo sempre retomado à volta do
mesmo, uma viagem sem estaca nem poiso, como o daqueles pássaros que jamais alcançarão a paz de um qualquer acolhimento.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
Biblioteca-
Museu República e Resistência em Lisboa, 21 de out. 2017.
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Publicado na Revista (online) Caliban, 22 de out. 2017.