quarta-feira, 11 de junho de 2014

O texto que a seguir se reproduz serviu de apoio à apresentação do livro Temor Único Imenso, de Rui Almeida, publicado pela Editora Labirinto em Junho de 2014.



Se já é difícil falar de um livro de poesia, muito mais difícil se torna falar do livro de poesia de um amigo. Dei conta dessa mesma dificuldade ao referir-me a Lábio Cortado, primeiro livro do Rui Almeida. E acrescentei que entre a sua poesia e as minhas inclinações estéticas interpõe-se uma barreira, uma barreira que terá que ver com modos diferentes de entender e praticar a poesia - assim como com modos diferentes de entender o mundo. O Rui é uma pessoa religiosa, eu não. São aspectos da intimidade que se reflectem naturalmente naquilo que fazemos.
Por outro lado, é para mim claro que a biografia não deve interferir determinantemente na avaliação que fazemos de uma obra. Isto levou um poeta como António Ramos Rosa a escrever, em 1962, no seu ensaio Poesia, Liberdade Livre, que «são secundárias para tal as biografias, os estudos psicológicos ou psicanalíticos». E foi mais longe, explicando que é impossível «chegar à compreensão de uma obra poética, na sua realidade própria, partindo da vida do autor». Impossível ou não, o mais desejável é, tanto quanto nos for possível, já que não podemos libertarmo-nos de nós próprios, pelo menos, tentarmos libertar-nos dos preconceitos que eventualmente tenhamos sobre o autor que lemos.
O que será, então, a realidade própria de uma obra? Será o conjunto das múltiplas leituras que sobre ela possamos fazer. Ao ler um livro de poesia do Rui Almeida não estou a ler o Rui Almeida, o que seria, como compreenderão, bastante desagradável. Estou apenas a ler um livro de poesia, sendo que, por consequência, estou a inventar uma nova realidade, estou a alargar o mundo, estou a desbravar caminho na compreensão de mim próprio enquanto sujeito afectado pela leitura. É assim que me posiciono face a um livro quando o leio, face a qualquer obra de arte; ou seja, a relação que estabeleço com a obra é egoísta, sirvo-me dela para procurar conhecer-me, tento entendê-la na medida em que ela me afecta e, por isso, entendê-la é compreender-me a mim próprio mais do que decifrá-la, explicá-la, conhecê-la.
De resto, penso que tentar decifrar uma obra é tão inútil como procurar decifrar uma pessoa. Esforçamo-nos, mas ficamos sempre aquém do objectivo traçado. Porque há sempre o inacessível e o inacessível é isso mesmo: inacessível. Logo, incomunicável, impartilhável.
Ao confrontar-me com este novo livro do Rui Almeida foi para mim muito difícil libertar-me daquele substantivo do título. A palavra temor tem sobre ela uma forte carga filosófica. Como saberão, o filósofo Søren Kierkegaard colocou-a no centro das suas reflexões. No ano em que completou 30 anos, publicou seis obras (o que faz de Gonçalo M. Tavares um ténue fenómeno editorial). Entre elas, um livro intitulado Temor e Tremor. Não vou maçar-vos com a filosofia do dinamarquês, mas quero chamar a atenção para alguns pormenores do seu pensamento que, menos involuntariamente do que se possa supor, acabam por estar implícitos nos poemas do Rui.
Reza a história que Kierkegaard era uma rapaz solitário e melancólico, fortemente influenciado por um pai com tendências depressivas (apesar de tudo, teve seis filhos), e por um noivado interrompido em prol de uma dedicação extrema àquilo que entendia ser a ética cristã. Toda a obra de Kierkegaard resulta de reflexões angustiadas sobre a essência do Cristianismo, sendo Temor e Tremor o capítulo onde a questão do significado da fé se torna central. Podíamos chamar ao livro “amor e fé”, pois nele são inúmeros os exemplos onde ambos os tópicos entram em conflito.
Nesse livro, Kierkegaard recuperou a personagem de Abraão, cuja fé foi colocada à prova por Deus quando este lhe pediu que sacrificasse seu filho Isaac, para concluir que a fé é paradoxo e angústia diante de Deus como possibilidade infinita. Este paradoxo, também designado de absurdo, faz sobressair o contraste entre o divino e o humano, ao mesmo tempo que se apresenta como tábua de salvação não suprime a angústia. Eu, que não sou pessoa de fé, desconfio que todas as pessoas que o sejam sintam dentro de si, ocasionalmente, esta angústia. Para um ateu, isto torna o Cristianismo uma chatice; mas faz dos cristãos pessoas muito interessantes.
Nomeadamente o próprio Kierkegaard, que no seu desespero e na sua radical dedicação à fé tinha o lado simpático de ser anti-sistema, achava que os grandes sistemas filosóficos eram ridículos, importando-lhe antes o Indivíduo e a sua experiência enquanto tal: «a existência é possibilidade e, portanto, angústia». A expressão “temor e tremor” encerra uma experiência radical de fé num «homem que não era pensador, nem ímpeto algum sentia para ir além da fé». Não é difícil entender que os existencialistas admirassem o filósofo dinamarquês, tornando-se igualmente óbvio o que pode aproximar um ateu de tendências existencialistas, como eu, de um católico de tendências angustiadas, como o Rui.
Não obstante, basta começar a folhear este livro para perceber que as principais referências do autor não são filosóficas ou teológicas. A profusão de epígrafes de poetas portugueses tal indica. Entre elas, sobressai a do poeta Gastão Cruz, a quem o Rui pediu de empréstimo o título para este seu livro. Julgo valer a pena recordar o poema de Gastão Cruz onde foi respigada a citação:

É um outono inteiro imerso em armas
é um sopro de dias
movendo as suas lentas madrugadas
e nas manhãs e tardes repetindo

o céu cobrindo armas
o sol por entre as árvores deixando
soprar o movimento único imenso
da manhã e da tarde           a

madrugada
das armas renovada
por um outono tão completo como

o voo doloroso de ave morta
ou o sopro do ar sobre o humano
temor único imenso destas aves

Gastão Cruz, poeta que associamos a um grupo de poetas que se convencionou chamar de Poesia 61, por terem começado a publicar pelo ano de 1961, incluiu este poema num conjunto de 1969 intitulado Aves. É um conjunto fortemente marcado pelo facto político da guerra colonial, que, curiosamente, havia começado precisamente em 1961. É, na minha modesta opinião, dos melhores conjuntos de poemas de Gastão Cruz porque nele conseguimos perceber uma intenção de renovar a linguagem poética sem a separar ardilosamente dos aspectos concretos da vida humana. Parece-me que é da maior relevância o Rui fazer desta poesia a plataforma a partir da qual levanta voo, até porque a sua poesia tem vindo a ser revelada, como veremos, em contramão com a grande maioria da poesia portuguesa da sua geração (pelo menos, a que merece os maiores encómios públicos).
Os poetas da Poesia 61 – e o Rui foi buscar epígrafes a três deles (não eram muitos mais) – não agradarão tanto aos poetas da nossa geração como outros, mas seria de uma enorme injustiça relegá-los para segundo plano. O Rui tem esta consciência apurada do seu lugar histórico, é um ávido leitor de poesia, sabe fazer-se valer desse legado que está nas nossas mãos preservar. Repare-se como o primeiro poema do livro dialoga directamente com o poema de Gastão Cruz supracitado:

Eram de novo as aves e morriam
Doutras armas porém do mesmo modo
Eram de novo e era de novo outono

Eram cegas e caladas as aves
Passando sombras do que elas eram
E era o silêncio delas de tal jeito
Que até o cansaço era também outro

E outro o medo dessas outras armas
Que calavam aves do mesmo modo
De novo no outono triste

Há uma continuidade entre os dois poemas que pode ou não ser temática, o segundo parte do primeiro fazendo uso dos mesmos termos. Chamo a vossa particular atenção para a repetição dos termos armas e outono, a convocação do tema da morte, o problema da queda aqui enunciado e posteriormente desenvolvido, o emprego de palavras que sugerem estados melancólicos (talvez o outono triste seja redundante). E repare-se também que sendo outras as armas, porque certamente são outras as guerras, o que se mantém inalterado é a morte. No mundo destas aves há um factor perene e imutável: a morte.
E por falar em legado, se bem repararam o denominador comum entre todas as epígrafes seleccionadas é o tópico poético das aves. Como veremos, as aves serão, por assim dizer, a personagem central deste livro. Se a palavra temor tem sobre ela uma forte carga filosófica, o que dizer do peso simbólico das aves? As aves são, desde tempos imemoriais, símbolo da relação entre o céu e a terra. Aparecem em todas as mitologias, em todas as religiões, são universalmente aceites e respeitadas enquanto mensageiras do sagrado, símbolo da mediação entre a esfera celeste e o mundo dos homens.
Não vamos mais longe, pensemos nos corvos que aparecem na bandeira de Lisboa, no falcão da mitologia egípcia, na fénix dos gregos, no espírito santo representado pela alvura de uma pomba, no condor dos andes, no albatroz, enfim nos anjos com as suas longas asas... Seria exaustivo enumerar as reencarnações metafóricas das aves, que tanto podem ser a representação da alma a sair do corpo como “símbolos vivos da liberdade divina”. Neste livro, o Rui Almeida aceitou corajosamente este peso simbólico, metafórico, das aves e procurou fazer algo singular, embora em constante diálogo com a tradição e uma assumida herança poética.
Há um poema, a meio do livro, que se interroga sobre a natureza das aves aqui “capturadas”:

Que aves são estas, postas à beira
Do caudal do poema, da fadiga
Da escrita e do miolo da memória?

Que aves são e como se deslocam
Por entre as folhas limpas arrancadas
Ao vazio das vozes, ao outono?

Porquê aves e porquê deste modo,
A arriscar a evidência sobre o voo?

E de que claros dedos surgem aves,
Estas que nunca antes existiram?

Estas interrogações não surgem no início do livro, arrastam toda uma digressão onde as aves permanentemente mencionadas foram descritas na sua ambiguidade e situadas, podendo nelas o leitor encontrar homens vulgares, as vozes dos mortos, o ponto de intercepção entre as esferas sagrada e profana. Estas interrogações surgem num ponto intermédio da reflexão posta em prática, depois delas as aves voltam a surgir sem que seja clarificada a sua natureza. São uma imagem poética, certamente, de que o Rui se serve, como outros antes dele, para expressar a sua visão angustiada do mundo.
Quem tenha lido os livros anteriores do Rui Almeida, não vai surpreender-se com o extremo cuidado colocado na arrumação/organização destes poemas. São textos geralmente curtos, de uma economia vocabular que faz sobressair a intensidade das palavras. Não sei, porém, se hei-de chamar a este conjunto uma sequência. Não é, certamente, um mero conjunto de poemas de tema dissemelhante ou próximo. Parece-se, antes, com um longo poema decassilábico cortado em fragmentos que beneficiam a leitura com as suas pausas. Vejamos o segundo poema:

Voam roxas e não brancas as aves,
Chão em vez de céu. Morrem sozinhas,
Secas como flores de ilusão, precárias.

As aves não são aves, são desenhos,
Entre o chão e a parede simulam o voo
De outros seres na insubmissão das asas.

Outras aves, outro voo, imagens
Dos percursos diferentes de outros
Destinos normais e condicionados.

Assim as aves, assim o seu voo.

Podia aqui falar o Abraão de Kierkegaard, o homem excepcional que observa uma entidade estranha, sombria. Estas aves, roxas, não têm a alvura tradicionalmente associada ao divino. Andam pelo chão, a sua precariedade é, afinal, a de nem serem aves: são desenhos, são imagens. Serão sombras? Serão poemas? Enfim, podem ser cada uma das pessoas que encontraremos na rua, presas e limitadas pelas suas frustrações, pela incerteza da vida mundana. Esta linguagem é metafórica, esquiva-se ao humorístico e ao anedótico, embora aceite, muito esparsamente, uma certa ironia. É uma poesia reflexiva, pensa e faz pensar, na mesma medida em que é contemplativa. O poeta que a escreve tem a capacidade de olhar para fora e, através de uma linguagem conotativa, expressar estados de alma:

Ali estão, aves quase ou nunca mortas,
Alheias ao modo lento da queda,
Sem o receio da proximidade
Ou de algum logro tangido por mãos
Suaves ou certeiras. Lutam paradas,
Olham em volta, sabem o que podem
Saber. E quase ou nunca se aproximam
Dos frutos da glória, da sua cor.
Aves ali, sem movimento, sem
Serem atraídas por ilusões.

O advérbio de lugar pressupõe uma distância entre o sujeito poético e o objecto da observação, aqui claramente humanizado. A lenta queda das aves é a lenta queda humana, e embora se aceitem excepções – como também no fragmento seguinte aparecem invocadas pelo uso do advérbio de quantidade poucas – a maioria destas aves percute uma configuração débil. A linguagem kierkegaardiana humaniza-as no seu desespero, na sua angústia, na forma como se distraem do essencial contentando-se com migalhas, mas também as enreda em paradoxos existenciais:

A cada corpo um esqueleto, porém,
Não são ossos o que sustenta as aves,
Antes o sopro interno que as faz
Elevar acima do movimento
Que cerca o corpo doutros seres do outono.

A cada ave um sopro, uma cadência,
Um ritmo só de penas provisório.

Porém o sopro no corpo das aves
Replica nos ossos o ar das penas
Deixando as aves sujeitas à queda.

Parece-me haver neste livro uma intenção deliberada de saturar um conceito, esvaziando-o do seu simbolismo para, desse modo, recuperar-lhe o rosto original. Há um poema curioso cujo primeiro verso faz referência a cinco aves pousadas nos ramos nus de uma árvore no inverno (mais uma vez, a opção seria entre “ramos nus” ou simplesmente “árvore no inverno”; juntas, as imagens são redundantes - único defeito a apontar a este livro). Mas a questão é: porquê cinco aves? Poderíamos responder como Adília quando interrogada sobre o significado das baratas que frequentam os seus poemas: são simplesmente baratas. Seja como for, o dado curioso é que o número cinco resulta da soma do primeiro número para com o primeiro número ímpar. Mais uma vez, o casamento do princípio celeste com o princípio terrestre. A poesia do Rui Almeida tem esta capacidade sugestiva, vive de alusões e de subtis referências no intertexto. Por isso inventamos tanto quando nela nos aventuramos. Interrogava-se Kierkegaard por que tem o amor tantos sacerdotes na poesia e sobre a fé nem uma palavra se ouve: «quem se pronuncia em honra desta paixão?» Está dada a resposta.
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  Henrique Manuel Bento Fialho, 7 de Junho de 2014, Biblioteca Orlando Ribeiro.
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