Diego Nogueira: a insustentável
negritude do horizonte
Acervo
de pássaros em desuso, recente poemário de Diego
Nogueira surge-nos, num primeiro momento, como um percurso marcado por uma
certa negatividade ante o acontecer. É neste aqui onde somos chamados a estar
que se desenrola não só o caminho de um dado eu-existencial, mas também as
lucubrações do eu-poético. A melancolia e o desalento apresentam-se, por
conseguinte, como traços fundamentais deste universo poemático: “E manhãs
vigiam o sono / de uma alma enraizada numa precária geografia.” (p. 7); “Pouco
a pouco vai engolindo a terra / sua física sem luz, seu estado de morte.” (p.
9); “Morre a cor de excessiva luz. / Meninos lamentam a tortura da carne / é o
pecado a penetrar a raiz.” (p. 22). Neste solo eivado de uma melancolia por
vezes sem remissão irrompem – em pouquíssimos casos – sinais de persistência:
“É tarde e minhas mãos ainda trabalham / na tentativa de traçar o caminho / dos
espíritos.” (p. 34) e de imprecação por uma certa positividade: “Poder cantar
tuas águas / nas mãos reter toda a vida. / (…) Inaugurar gozo e caule / ser de
jasmins, gerânios, túlipas.” (p. 5), no entanto, estes elementos agora focados
possuem um carácter acidental e são aquilo que, por contraste, vinca o carácter nostálgico e de ferida desta
poética. Aliás, essa mesma ferida bem como a falha e a dor atravessam todo este
livro de Diego Nogueira Silvério: “O salão é deserto e a lembrança sem pátria. / De nada
ficou – um simples ruído nos porões / das árvores, uma inofensiva luz de um sol
/ que se retira.” (p. 38). A dor é, em Diego Nogueira, um espaço de silêncio
cercado pela incomunicabilidade ou por um certo ruído que, apesar de
comunicacional, mutila a autenticidade do dizer, aproximando assim este poeta
de autores que tão bem abordaram estes temas, como por exemplo Marguerite
Duras: “Elle vous demande la couleur de la mer. / Vous dites: Noire. / Elle
répond que la mer n’est jamais noire, que vous devez vous tromper.” (in La Maladie de la Mort. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1982, p. 46), ou Nathalie Sarraute “Ai, isto misturou-se
tudo (…) Estou a ser castigado. Mais do que merecia. Por ter falhado. Faltou-me
o pudor. Foi esse o meu erro (…) Eu descaí-me, foi isso… Tu não suportas. (…)
Sou ridículo. Já não sei o que digo.” (in O
Silêncio. Lisboa: Livros Cotovia, 2012, p. 14). Este hiato entre o eu e o
outro, quer ao nível dos afectos quer ao nível do dizer, brota na escrita de Diego
Nogueira nos mais singulares momentos: “Feliz do homem que sobe os degraus / da
solidão e no último andar dessa serpente / encontra um lugar para expandir seu
silêncio,” (p. 32); “Em tuas américas cresci / - e mesmo sendo uno - / morei
entre dois continentes: / palavras.” (p. 35). É neste território, e consciente
do que tudo nele é efémero e lacunar, que o poeta firma a ousadia da sua arte.
O poema 4 do ciclo 15 Poemas sobre Rosas enfatiza
o papel desse ser condenado a escutar e a burilar não só o que vivencia, mas
sobretudo o que a memória lhe testemunha como Acervo de pássaros em desuso:
4
Rosa, isolada arquitectura
tudo
que padece na língua do poeta.
E manhãs que
vigiam o sono
de
uma alma enraizada numa precária geografia.
O que não renega a memória.
Quem
só negoceia com pássaros.
Trágico disfarce
de se
ter em múltiplas primaveras.
(p 7)
A tragicidade e o desalento deste mercador
de pássaros aparece-nos ainda em poemas como “Rouxinol” (p 19) e “Cigarra” (p
25); o horizonte deste almocreve de sentires e inquietações é, portanto, um “
horizonte de enferma claridade” (p 24), um alvo com sabor a precipício e onde
até o próprio sol se afoga (cf. “O Poente”, p 41). Assim, à consternação e ao
desalento de um mundo que aparece ao olhar do poeta como uma insuportável
evidência de imperfeição e mácula acaba necessariamente por corresponder, neste
livro, uma visão da poesia, e até do próprio poeta, como algo cuja “eternidade
é o mar, sem fim próximo.” (p 25): “ (…) O peito do poeta/ é um cemitério onde
o girassol sepulta seu/ último incêndio. “ (p 21). Esta correspondência aqui
focada, bem como a doçura nostálgica da escrita e do território poético
trilhado por Diego Nogueira Silvério, podem ser igualmente encontrados em muita da
poesia portuguesa da última década, escutemos, por exemplo, um excerto do
excelente O Que Dói às Aves de Alice
Vieira:
É preciso agora ter muito cuidado com as
palavras
pronunciá-las olhando sempre demoradamente para o lado
como se fossem os nomes escancarados
de amantes clandestinos
…
… …
ouve:
também tu morres agora todas as noites
um pouco mais
e em todos os lugares que te perderam
é triste o som das águas.
(cf. op. cit. pp 47 – 48 )
Repare-se na intertextualidade
entre as imagens de Alice Vieira e tudo o que temos vindo a dizer acerca de Acervo de pássaros em desuso e repare-se
igualmente no que peremptoriamente se investe em certos referentes, como por
exemplo “as águas”, conotadas, em ambos os poetas, com o devir e com uma
cadência onde a tristeza e lassidão imperam. Todavia, são outras as influências
desta poética: se de Dora Ferreira da Silva, Diego Nogueira não recolhe a
irrupção de um certo desrespeito pela Lógica da Identidade e por um universo,
por vezes mágico-animista características da obra desta autora acerca das quais
escrevi já (cf. “Devir e Mesmidade na Poesia de Dora Ferreira da Silva”, in Revista TriploV de Artes, Religiões e
Ciências. Nova série 2011, Nº 14), até porque a tecedura poética de Diego
se encontra fortemente marcada por uma imagética de cariz judaico-cristão (exº:
pecado, inferno, Lázaro, juízo final, etc.), no entanto, este poeta partilha
com Dora Ferreira da Silva a tese da modernidade que vê o poeta como tecelão de
palavras e imagens, é mesmo interessante analisar neste livro como a
arquitectura do poema se funda inicialmente na palavra, que, antecipando-se ao
conceito, edifica a consistência da imagem – apelo fulgurante ao som e a um
ritmo sincopado a fazer-nos lembrar outros pássaros: os da música de Olivier
Messiaen -, e só num momento segundo o sentido nos interpela e, mesmo assim,
recusando a linearidade discursiva; a legibilidade das imagens desta poesia e,
como dissemos já, a cognoscibilidade do seu sentido, são muitas vez conseguidas
através de subtis associações paronímicas: “(…) nas cinzas que o inverno/
deixou para trás…” (p 8); “ Deste-me a um rio e eu me fiz águia” (p 35), muitas
vezes as transfigurações semânticas no interior dos versos surgem com o intuito
de fixar o leitor ao acto que leva a cabo, veja-se, por exemplo, o verso:
“Sereno aquário em que padece tua ceda, tua vinha” (p 17), aqui quando se
espera a concordância aquário/sede, é-se fustigado por uma concordância de
outro tipo: aquário/prendimento/cerda, e o verso de imediato inflecte noutra
direcção, pois não enuncia a “tua vinda”, mas sim a “tua vinha”, já que em
ambos os casos é de um prenúncio do colher aquilo de que se fala. Mas em Dora
Ferreira da Silva, passando esta ideia da tecedura poética, Diego Nogueira Silvério vai
sobretudo encontrar a acutilância do olhar e o cuidado no dizer: pessoalmente
não consegui ler Acervo de pássaros em
desuso sem recordar o ciclo poemático doriano “Garças” (cf. “Poesia reunida”.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, pp 273 – 280) e o ciclo “Transparências” (cf.
“Poemas da Estrangeira”. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1995, pp 38 – 40). Mas
outra referência desta poesia é também João Cabral de Melo Neto com a sua opção
por um dizer “enxuto” e “que no seu ínfimo traço,/ exibe a proa e não a água”
(p 26), no entanto, apesar da preocupação com a forma do poema estar mais
interligada com o intento comunicativo em Melo Neto do que no presente
poemário, tal se deve à necessidade sentida de se operar aqui uma equilibrada
miscigenação de vozes tão díspares como são as de Dora Ferreira da Silva e de
João Cabral de Melo Neto, e tal ponto - que é simultaneamente de união de
influências e de criação de uma voz própria e autónoma - encontra-o Diogo
Nogueira naquilo que Rosa Maria Martelo diz ser intrínseco ao segundo poeta
influenciador e que, agora, podemos generalizar aos três autores: “(…) escrever
não é dissociável de ver – como se o poeta escrevesse porque vê e para ver e
dar a ver.” (in “A Forma Informe”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 60).
No périplo poético de Diego Nogueira,
assumidamente nostálgico e sofrido, onde a “identidade é descendente” (p 10) e
“desfalecendo na partida” (p 4) - embora por breves instantes marcado pela
persistência “imóvel, em píncaros” (p 4) ou onde “nada interfere a um vigoroso
voo” (p 12) - o que predomina é o simultaneamente delicado e vigoroso solo da
incompletude, da falha, motivada sobretudo pela estrepitosa luta entre duas
instâncias: a do eterno e a do efémero (cf. poema 10 do ciclo poemático 15 poemas sobre rosas e o ciclo Lêdo Ivo ) e é exactamente aqui que a
memória vai tentando atenuar essa falha, essa iniludível incomunicabilidade
(cf. a epígrafe do livro) que nem o cuidar do ver e do dizer consegue superar:
“ Lado a lado, meus senhores dormem./ Vivemos separados pelo plano que/ traçado
foi no dia do dilúvio” (cf. poema “Juízo Final”), e é essa mesma memória que,
dia-a-dia, insiste em respigar e recompor gestos, imagens e afectos, isto é,
voos que o tempo tem vindo a depositar nesse Acervo de pássaros em desuso.
Mateus, Victor Oliveira. In acervo de pássaros em desuso de Diego Nogueira Silvério. Fortaleza: Projeto Gráfico/ Editoração e Diagramação, 2015, pp 9 - 15.
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