XIX
Toda a noite o cão ladrou, ladrou. O eco entrava por mim adentro num misto de
temor e raiva assassina. O arrastar da corrente aumentava também o sufoco e a
impotência – minha e do cão. Quem andaria por entre as hortas? Que quereria o
ladrão? Enrolei um cigarro junto à porta e ali me perdi entre baforadas e uma
luz frouxa, enquanto os latidos passavam a uivos. Do chão saía um nevoeiro espesso,
um ar gorduroso que se infiltrava na madeira do alpendre. Vi também as
glicínias brancas e reluzentes, mas glicínias brancas e reluzentes não ficam
bem neste poema gótico, portanto, opto por outra imagem: vi também umas
campânulas roxas, que ondeavam ao sabor dos uivos. Os uivos não tinham descanso
e ali perto havia um rugir sincopado a chapinhar no tanque. Do céu as nuvens
pareciam querer cair sobre mim. Ah, tudo era negro e assustador! Depois,
apaguei o cigarro e voltei para dentro. Dormias. Limpei pacientemente os óculos
ao cós do pulôver, para finalmente sorrir: sem óculos tudo era diferente - e
foi aqui que a realidade se tornou branca, tão branca que até me perguntaste por
que não me voltava a deitar, porque não
parava eu de inventar coisas.
Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 33 ( Prefácio: Miguel Real; Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano)
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