segunda-feira, 25 de maio de 2015





I

Atingiu o vale numa época em que o desacerto era coisa diária e corriqueira. Alastrou depois por entre as ervas e os animais. Apoderou-se também dos homens sentados à porta das tabernas, das mulheres que se agitavam – exaustas - em torno das selhas e de mim que te desenhava já num zelo de caçador derrotado, num torpor de animal a ver-se em toda a inutilidade que antecipadamente sabia. Atingiu o vale nas noites de inquietude com os relâmpagos a desenhar fins nesses horríficos monstros que eu fantasiava algures entre o fraquejar das lâmpadas e a tinta carcomida das paredes. Atingiu tudo, até os caminhos incontaminados e nítidos, até os umbrosos enigmas que sempre se haviam julgado protegidos. Nada escapava à sofreguidão com que devorava casas e terras. Apenas a mim resolveu deixar incólume, talvez para que assim houvesse, nesse seu meticuloso exercício de vingança, uma trémula sombra que tudo pudesse beber até aos ossos.  

 Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 11 ( Prefácio: Miguel Real;  Inventário de Inquietações : Texto de Ronaldo Cagiano).
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