segunda-feira, 4 de maio de 2015





      
              Diego Nogueira: a insustentável negritude do horizonte

 
     Acervo de pássaros em desuso, recente poemário de Diego Nogueira surge-nos, num primeiro momento, como um percurso marcado por uma certa negatividade ante o acontecer. É neste aqui onde somos chamados a estar que se desenrola não só o caminho de um dado eu-existencial, mas também as lucubrações do eu-poético. A melancolia e o desalento apresentam-se, por conseguinte, como traços fundamentais deste universo poemático: “E manhãs vigiam o sono / de uma alma enraizada numa precária geografia.” (p. 7); “Pouco a pouco vai engolindo a terra / sua física sem luz, seu estado de morte.” (p. 9); “Morre a cor de excessiva luz. / Meninos lamentam a tortura da carne / é o pecado a penetrar a raiz.” (p. 22). Neste solo eivado de uma melancolia por vezes sem remissão irrompem – em pouquíssimos casos – sinais de persistência: “É tarde e minhas mãos ainda trabalham / na tentativa de traçar o caminho / dos espíritos.” (p. 34) e de imprecação por uma certa positividade: “Poder cantar tuas águas / nas mãos reter toda a vida. / (…) Inaugurar gozo e caule / ser de jasmins, gerânios, túlipas.” (p. 5), no entanto, estes elementos agora focados possuem um carácter acidental e são aquilo que, por contraste, vinca  o carácter nostálgico e de ferida desta poética. Aliás, essa mesma ferida bem como a falha e a dor atravessam todo este livro de Diego Nogueira Silvério: “O salão é deserto e a lembrança sem pátria. / De nada ficou – um simples ruído nos porões / das árvores, uma inofensiva luz de um sol / que se retira.” (p. 38). A dor é, em Diego Nogueira, um espaço de silêncio cercado pela incomunicabilidade ou por um certo ruído que, apesar de comunicacional, mutila a autenticidade do dizer, aproximando assim este poeta de autores que tão bem abordaram estes temas, como por exemplo Marguerite Duras: “Elle vous demande la couleur de la mer. / Vous dites: Noire. / Elle répond que la mer n’est jamais noire, que vous devez vous tromper.” (in La Maladie de la Mort. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982, p. 46), ou Nathalie Sarraute “Ai, isto misturou-se tudo (…) Estou a ser castigado. Mais do que merecia. Por ter falhado. Faltou-me o pudor. Foi esse o meu erro (…) Eu descaí-me, foi isso… Tu não suportas. (…) Sou ridículo. Já não sei o que digo.” (in O Silêncio. Lisboa: Livros Cotovia, 2012, p. 14). Este hiato entre o eu e o outro, quer ao nível dos afectos quer ao nível do dizer, brota na escrita de Diego Nogueira nos mais singulares momentos: “Feliz do homem que sobe os degraus / da solidão e no último andar dessa serpente / encontra um lugar para expandir seu silêncio,” (p. 32); “Em tuas américas cresci / - e mesmo sendo uno - / morei entre dois continentes: / palavras.” (p. 35). É neste território, e consciente do que tudo nele é efémero e lacunar, que o poeta firma a ousadia da sua arte. O poema 4 do ciclo 15 Poemas sobre Rosas enfatiza o papel desse ser condenado a escutar e a burilar não só o que vivencia, mas sobretudo o que a memória lhe testemunha como Acervo de pássaros em desuso:

 

4

 
Rosa, isolada arquitectura

               tudo que padece na língua do poeta.

  E manhãs que vigiam o sono

               de uma alma enraizada numa precária geografia.

O que não renega a memória.

              Quem só negoceia com pássaros.

Trágico disfarce

              de se ter em múltiplas primaveras.

 

                             (p 7)

      A tragicidade e o desalento deste mercador de pássaros aparece-nos ainda em poemas como “Rouxinol” (p 19) e “Cigarra” (p 25); o horizonte deste almocreve de sentires e inquietações é, portanto, um “ horizonte de enferma claridade” (p 24), um alvo com sabor a precipício e onde até o próprio sol se afoga (cf. “O Poente”, p 41). Assim, à consternação e ao desalento de um mundo que aparece ao olhar do poeta como uma insuportável evidência de imperfeição e mácula acaba necessariamente por corresponder, neste livro, uma visão da poesia, e até do próprio poeta, como algo cuja “eternidade é o mar, sem fim próximo.” (p 25): “ (…) O peito do poeta/ é um cemitério onde o girassol sepulta seu/ último incêndio. “ (p 21). Esta correspondência aqui focada, bem como a doçura nostálgica da escrita e do território poético trilhado por Diego Nogueira Silvério, podem ser igualmente encontrados em muita da poesia portuguesa da última década, escutemos, por exemplo, um excerto do excelente O Que Dói às Aves de Alice Vieira:

 

  É preciso agora ter muito cuidado com as palavras

  pronunciá-las olhando sempre    demoradamente para o lado

  como se fossem os nomes escancarados

  de amantes clandestinos

         

  ouve:

 
    também tu morres agora todas as noites

  um pouco mais

 

  e em todos os lugares que te perderam

  é triste o som das águas.

 

            (cf. op. cit. pp 47 – 48 )

 Repare-se na intertextualidade entre as imagens de Alice Vieira e tudo o que temos vindo a dizer acerca de Acervo de pássaros em desuso e repare-se igualmente no que peremptoriamente se investe em certos referentes, como por exemplo “as águas”, conotadas, em ambos os poetas, com o devir e com uma cadência onde a tristeza e lassidão imperam. Todavia, são outras as influências desta poética: se de Dora Ferreira da Silva, Diego Nogueira não recolhe a irrupção de um certo desrespeito pela Lógica da Identidade e por um universo, por vezes mágico-animista características da obra desta autora acerca das quais escrevi já (cf. “Devir e Mesmidade na Poesia de Dora Ferreira da Silva”, in Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências. Nova série 2011, Nº 14), até porque a tecedura poética de Diego se encontra fortemente marcada por uma imagética de cariz judaico-cristão (exº: pecado, inferno, Lázaro, juízo final, etc.), no entanto, este poeta partilha com Dora Ferreira da Silva a tese da modernidade que vê o poeta como tecelão de palavras e imagens, é mesmo interessante analisar neste livro como a arquitectura do poema se funda inicialmente na palavra, que, antecipando-se ao conceito, edifica a consistência da imagem – apelo fulgurante ao som e a um ritmo sincopado a fazer-nos lembrar outros pássaros: os da música de Olivier Messiaen -, e só num momento segundo o sentido nos interpela e, mesmo assim, recusando a linearidade discursiva; a legibilidade das imagens desta poesia e, como dissemos já, a cognoscibilidade do seu sentido, são muitas vez conseguidas através de subtis associações paronímicas: “(…) nas cinzas que o inverno/ deixou para trás…” (p 8); “ Deste-me a um rio e eu me fiz águia” (p 35), muitas vezes as transfigurações semânticas no interior dos versos surgem com o intuito de fixar o leitor ao acto que leva a cabo, veja-se, por exemplo, o verso: “Sereno aquário em que padece tua ceda, tua vinha” (p 17), aqui quando se espera a concordância aquário/sede, é-se fustigado por uma concordância de outro tipo: aquário/prendimento/cerda, e o verso de imediato inflecte noutra direcção, pois não enuncia a “tua vinda”, mas sim a “tua vinha”, já que em ambos os casos é de um prenúncio do colher aquilo de que se fala. Mas em Dora Ferreira da Silva, passando esta ideia da tecedura poética, Diego Nogueira Silvério vai sobretudo encontrar a acutilância do olhar e o cuidado no dizer: pessoalmente não consegui ler Acervo de pássaros em desuso sem recordar o ciclo poemático doriano “Garças” (cf. “Poesia reunida”. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, pp 273 – 280) e o ciclo “Transparências” (cf. “Poemas da Estrangeira”. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1995, pp 38 – 40). Mas outra referência desta poesia é também João Cabral de Melo Neto com a sua opção por um dizer “enxuto” e “que no seu ínfimo traço,/ exibe a proa e não a água” (p 26), no entanto, apesar da preocupação com a forma do poema estar mais interligada com o intento comunicativo em Melo Neto do que no presente poemário, tal se deve à necessidade sentida de se operar aqui uma equilibrada miscigenação de vozes tão díspares como são as de Dora Ferreira da Silva e de João Cabral de Melo Neto, e tal ponto - que é simultaneamente de união de influências e de criação de uma voz própria e autónoma - encontra-o Diogo Nogueira naquilo que Rosa Maria Martelo diz ser intrínseco ao segundo poeta influenciador e que, agora, podemos generalizar aos três autores: “(…) escrever não é dissociável de ver – como se o poeta escrevesse porque vê e para ver e dar a ver.” (in “A Forma Informe”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 60).

     No périplo poético de Diego Nogueira, assumidamente nostálgico e sofrido, onde a “identidade é descendente” (p 10) e “desfalecendo na partida” (p 4) - embora por breves instantes marcado pela persistência “imóvel, em píncaros” (p 4) ou onde “nada interfere a um vigoroso voo” (p 12) - o que predomina é o simultaneamente delicado e vigoroso solo da incompletude, da falha, motivada sobretudo pela estrepitosa luta entre duas instâncias: a do eterno e a do efémero (cf. poema 10 do ciclo poemático 15 poemas sobre rosas e o ciclo Lêdo Ivo ) e é exactamente aqui que a memória vai tentando atenuar essa falha, essa iniludível incomunicabilidade (cf. a epígrafe do livro) que nem o cuidar do ver e do dizer consegue superar: “ Lado a lado, meus senhores dormem./ Vivemos separados pelo plano que/ traçado foi no dia do dilúvio” (cf. poema “Juízo Final”), e é essa mesma memória que, dia-a-dia, insiste em respigar e recompor gestos, imagens e afectos, isto é, voos que o tempo tem vindo a depositar nesse Acervo de pássaros em desuso. 

 

 

         Mateus, Victor Oliveira. In acervo de pássaros em desuso de Diego Nogueira Silvério. Fortaleza: Projeto Gráfico/ Editoração e Diagramação, 2015, pp  9 - 15.
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