domingo, 22 de fevereiro de 2015

(Um poema da minha meninice que acabei agora mesmo de encontrar. Sempre o julguei perdido, mas vasculhando em papelada antiga devido a um jogo do Face, acabo por descobrir a tralha toda do meu secundário e lá andava também uma série de "coisas" destas. Este - lembro-me bem!- era o meu preferido na época. Pelas influências dos realistas que aqui se notam sobretudo de Guerra Junqueiro e pelo final nitidamente ultra romântico com laivos de João de Deus e de Soares dos Passos, eu deveria ter uns 16/17 anos,  enfim, uma mera curiosidade histórica, para nos fazer sorrir):

   " A velha da meia tarde "

Sentada no banco do jardim,
obliquando o corpo para a terra,
a velha ausenta-se do espaço
adquirindo apenas olhos para o tempo:

- "Escute menino
que horas são?"

Pergunta-me ela sempre que passo
semelhantemente ausente
e de olhos fitos no chão.
No seu ar, perdido e lasso,
a velha ausenta-se do espaço,
sentada no banco do jardim.

- "Menino, ó menino,
que horas são?"

Pergunta-me ela a mim,
sempre que por ela passo
com os olhos fitos no chão.
Com o seu casaco enorme e castanho,
com o seu gorro de lã espessa e azul,
com a sua sombrinha na mão -
Ali está ela, em pleno Verão,
embora à margem do tempo.

- " olhe lá, olhe lá,
ó meu caro menino
que horas são?"

Pergunta-me ela sempre que passo
com os olhos fitos no chão.
"Cinco e meia." - E ela fica satisfeita.
"Um quarto para as três". - A frase é demasiado longa,
ela não a entende,
então eu mexo os lábios, pronunciadamente,
tiro mesmo uns minutitos para lhe facilitar a compreensão,
aceno-lhe com a mão -
E ela diz que sim, que entendeu
- repete mesmo para eu saber que entendeu -,
e eu sorrio e continuo
de olhos fitos no chão,
para além da velha encasacada
que esmiuça o tempo
das minhas tardes de Verão:

- "Menino, ó menino,
que horas são?"

Ainda um pouco cedo, minha amiga,
mas quando te fores
- e pelo sim pelo não -
reserva-me esse banco,
para eu matar também
as minhas tardes de Verão.

* * *

Agarrada agora à grade ferrugenta
obliquando o corpo para o espaço
a velha ausenta-se da terra
adquirindo um ar sonâmbulo e demente
- sem querer saber já do tempo,
que para ela é indiferente -,
para me pedir trocos
com o seu ar ausente:

- " Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Pede-me ela sempre que passo
com o meu ar perdido e lasso
e esta tristeza que é só minha.
Sem o seu gorro de lã espessa e azul,
sem o seu casaco enorme e castanho,
a velha traz antes um vestido desbotado
e de grande tamanho -
E ali está ela, parecendo a meu lado,
mas na realidade sozinha:

- "Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Mas eu, quando não tenho, finjo nem ouvir,
outras vezes dou
só para a ver sorrir
a este outro pedinte que sou.
E lá fica ela
com a mesma sombrinha na mão
agora revirada
como um pequeno telhado levantino.
Mas há outros dias em que me pede três e quatro vezes
e eu digo-lhe - zangado - que já dei.

- " Ó menino, desculpe,
eu vejo mal
e confundo tudo o que sei!"

Eu sorrio então, confundido também
e misturando os caminhos
e, como ela, passando por onde passei
nesta vida de pedinte,
que não é só dela,
mas também minha:

- "Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Ó minha amiga,
minha musa,
que te posso eu dar
que a mim não tenha de roubar?
Somos assim nós os pedintes:
um incansável estender de mão
em todos nós tão iguais
diferindo apenas o pregão.
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