segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015



   É verdade que em todas as páginas dos meus cadernos escrevia indefinidamente o seu nome e o seu endereço, mas, à vista daquelas vagas linhas que eu traçava sem que ela por isso pensasse em mim, que a faziam ocupar em redor de mim tanto espaço aparente sem que por isso ficasse mais ligada à minha vida, sentia-me desanimado, porque não me falavam de Gilberta, que nem sequer as veria, mas do meu próprio desejo, que pareciam apresentar-me como algo de puramente pessoal, de irreal, de fastidioso e de impotente. O mais urgente era que Gilberta e eu nos víssemos e pudéssemos fazer a confissão recíproca do nosso amor, que até esse momento não teria por assim dizer começado. As diversas razões que me tornavam tão impaciente de a ver seriam menos imperiosas, sem dúvida, para um homem maduro. Acontece mais tarde que, tornando-nos peritos no cultivo dos nossos prazeres, nos contentemos com aquele que sentimos ao pensar numa mulher como eu pensava em Gilberta, sem nos inquietarmos por saber se essa imagem corresponde à realidade, e também com o prazer de amar sem ter necessidade da certeza de que ela nos ama; pode ainda suceder que renunciemos ao prazer de lhe confessar a nossa inclinação por ela, a fim de manter mais vívida a inclinação que ela tem por nós, imitando esses jardineiros que, para obter uma flor mais bela, lhe sacrificam várias outras. Mas no tempo em que eu amava Gilberta, julgava ainda que o Amor existia realmente fora de nós; que, permitindo, quando muito, que afastássemos os obstáculos, oferecia as suas venturas numa ordem à qual não se era livre de mudar coisa alguma (...).
   Mas quando chegava aos Campos Elísios (...) desde que me via na presença daquela Gilberta Swann, com quem contara para refrescar as imagens que a minha memória fatigada já não encontrava, daquela Gilberta Swann com quem ontem brincara, e que um instinto cego acabava de fazer-me saudar e reconhecer, um instinto como esse que, na marcha, nos põe um pé diante do outro antes que tenhamos tempo de pensar, logo tudo se passava como se ela e a menina que era objecto dos meus sonhos fossem duas criaturas diferentes.


   Proust, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, Vol. 1, no caminho de Swann. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, pp 394 - 395 ( Tradução: Mário Quintana ).
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