sábado, 30 de janeiro de 2016


A fragilidade do Eichmann tem o seu ponto de partida e de chegada na fórmula "banalidade do mal". Acontece que esta é mais um slogan do que o título de uma interpretação convincente e parece representar uma reviravolta da posição de Arendt sobre o mal, já defendida no livro da filósofa sobre as origens do totalitarismo. Ali o mal era radical e por isso introduzido com outra profundidade agora ausente (30).
     Interessante é o facto de Arendt confirmar com alguma ênfase o abandono da noção de um "mal radical". De facto, a seu ver, o mal não possui profundidade, a sua dimensão é, por assim dizer, bidimensional, superficial, embora se espalhe como um fungo pelas superfícies à sua disposição. Só o bem ( das Gute ) tem essa profundidade e por isso não estamos a falar aqui em conceitos simétricos. "Estou hoje convencida de que o mal é sempre só extremo, mas nunca radical, não possui nenhuma profundidade, também nenhum carácter demoníaco. Pode devastar o mundo inteiro, precisamente porque se espalha como um fungo parasita na superfície. Mas profundo e radical é o bem" (31). E a referência a Kant, que a seguir acrescenta, é muito significativa sobre a tradição filosófica em que supostamente a sua concepção do mal se insere. A seu ver o que Kant escreveu sobre o mal radical não vai muito para além do mal vulgar e este é de ordem psicológica e não metafísica (32). Porém esta é uma avaliação do conceito de mal radical em Kant que Arendt falha por completo. Veremos melhor em que consiste esse erro de interpretação e como essa espécie de "esvaziamento da profundidade" que ela faz do mal não é de todo kantiano. Avançar no esclarecimento da sua concepção do mal, tema maior do Eichmann, requer uma exploração dos fundamentais conceitos e motivos da sua filosofia. Para isso impõe-se uma consideração mais demorada da sua obra mais característica e talvez a que melhor qualifica o seu pensamento no período a que pertencem o Eichmann e a tese sobre a "banalidade do mal", The Human Condition.


(30) A editora da correspondência nota que Arendt sublinha as palavras "mal radical" na carta de Scholem. Op. cit., pág. 437.
(31) Hanna Arendt, Gershom Scholem, Der Briefwechsel, ed. cit., pág. 444.
(32) Ibid.


  Marques, António. A Filosofia e o Mal, Banalidade e Radicalidade do Mal de Hanna Arendt a Kant. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p 44.
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