segunda-feira, 4 de janeiro de 2016


O amor é sempre uma dinâmica que se gera, por assim dizer, a partir de uma auto-suficiência interna, sem dúvida trazida pelo seu objecto externo, do estado latente ao estado actual, mas que não pode ser, propriamente falando, provocada por ele; a alma possui-o enquanto realidade última, ou não o possui, e nós não podemos remontar, para além dele a um dos movens externo ou interno que, de certa forma, seria mais que a sua causa ocasional. É esta a razão mais profunda que torna o procedimento de exigi-lo, a qualquer título legítimo, totalmente destituído de sentido. Nem sequer tenho a certeza de que a sua activação dependa sempre de um objecto (...) o facto de nos sentirmos "levados" a uma acção significa que esta já começou interiormente e que a finalização não é mais do que o desenvolvimento ulterior dessas primeiras inervações. Quando, apesar do impulso sentido, não passamos à acção, isso dá-se quer porque a energia não basta, de repente, para ir além desses primeiros elos da acção, quer porque esta é contrariada por forças opostas, antes mesmo que esses primeiros elos já anunciados à consciência tenham podido prolongar-se num acto visível. Do mesmo modo, a possibilidade real, a ocasião aprioríistica desse modo de comportamento a que chamamos amor, fará surgir, se for o caso, e levará à consciência, como um sentimento obscuro e geral, um estádio inicial da sua própria realidade, antes mesmo que a ele se some a incitação por um objecto determinado para levá-lo ao seu efeito acabado. A existência desse impulso sem objecto, por assim dizer incessantemente fechado em si, sinal premonitório do amor, puro produto do interior e, no entanto, sinal já do amor, é a  prova mais determinante a favor da essência central puramente interior do fenómeno amor, muitas vezes dissimulado sob um modo de representação pouco claro, segundo o qual o amor seria uma espécie de surpresa ou de violência vindas do exterior (...) em vez de uma maneira de ser, de uma modalidade e de uma orientação que a vida como tal toma por si mesma - como se o amor viesse do seu objecto, quando, na realidade, vai em direcção a ele.


  Simmel, Georg. Fragmento sobre o amor e outros textos. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2004, pp 82 - 83.
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