sexta-feira, 30 de janeiro de 2015


   Mas de súbito foi como se ela tivesse entrado, e essa aparição foi para ele uma dor tão dilacerante que teve de levar a mão ao peito. É que o violino subira a notas altas onde permanecia como para uma espera, que se prolongava sem que o instrumento cessasse de as sustentar, na exaltação em que estava de já perceber o objecto da sua espera que se aproximava (...). E antes que Swann tivesse tempo de compreender e dizer consigo: "É a pequena frase da sonata de Vinteuil, não escutemos!" todas as lembranças do tempo em que Odette estava enamorada dele e que até àquele dia conseguira manter invisíveis nas profundezas do seu ser, iludidas por aquela brusca revelação do tempo de amor que lhes parecia ter voltado, despertaram e subiram em revoada para lhe cantar perdidamente, sem piedade para com o seu actual infortúnio, os refrãos esquecidos da felicidade.
   Em vez das expressões abstractas "tempo em que eu era feliz", "tempo em que eu era amado" que tantas vezes pronunciara até então e sem muito sofrer, pois a sua inteligência só encerrara ali algumas pretensas amostras do passado que nada conservavam do mesmo, Swann reencontrou tudo o que havia fixado para sem a específica e volátil essência daquela felicidade perdida; reviu tudo, as pétalas nevadas e crespas do crisântemo que ela lhe lançara no carro, que ele apertara contra os lábios (...). Naquele momento satisfazia ele uma curiosidade voluptuosa, conhecendo os prazeres das criaturas que vivem pelo amor, julgara que poderia parar naquilo, que não seria obrigado a conhecer-lhe as dores; quão pouco lhe significava agora o encanto de Odette junto daquele formidável terror que o prolongava como um halo turvo, aquela imensa angústia de não saber a cada momento o que ela fazia, de não a possuir em toda a parte e sempre!
(...) E Swann apercebeu, imóvel em face daquela felicidade revivida, um infeliz que lhe causou piedade porque não o reconheceu logo, tanto que teve de baixar os olhos para que não vissem que estavam cheios de lágrimas. Era ele próprio.


  Proust, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, Vol. 1,  no caminho de Swann. Lisboa: Livros do Brasil, s/d., pp 340 - 342 ( Tradução: Mário Quintana).
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