( Excerto da sequência II da peça As Páginas Arrancadas )
- Cristina: Eu já vos deixo em paz. Até amanhã. (Para Cristóvão).
Vemo-nos na Faculdade?
- Cristóvão: Se não for lá aqui, no ensaio, à hora do costume.
- Cristina: Boa noite. Divirtam-se os dois (Sai. Um tempo).
-Cristóvão: Porque é que disseste aquilo à Cristina?
-Jorge 2: Aquilo o quê?
- Cristóvão: Quando eu li a tua fala do 1º acto sobre o amor. Que era a declaração de amor que eu nunca lhe tinha feito.
- Jorge 2: Porque me irrita o namoro descarado que ela te faz.
- Cristóvão: Tens ciúmes?
- Jorge 2: Tenho.
- Cristóvão: De quem? Dela ou de mim?
- Jorge 2: De ti.
( A cena afasta-se desse episódio do passado e agora estão frente a frente os dois Jorges: o 2, aquele que fora em tempos, jovem, arrebatado, inconformista, e o 1, o Jorge actual, senhor bem sucedido, político influente, homem rico e de poder, integrado, e que, de certo modo, fora responsável pela morte de Cristóvão. Agora, no presente, Jorge 1 vem fazer a cobrança, vem trazer-lhe o peso da culpa, o peso da memória... vem confrontar Jorge 1 com As Páginas Arrancadas, aquelas que - devido ao meio sócio-económico que frequentava - ele sempre tentara esconder na história total que vinha sendo a sua vida):
- Jorge 1: Tudo isto foi há tanto tempo...
- Jorge 2: Pois foi, e está a ser agora. Porque não deixou nunca de ser. Não deixará nunca de ser. Quantas vezes é preciso repetir-te isto?
- Jorge 1: E foi por isso que vieste?
- Jorge 2: Por isso, mas não só. Há ainda outras razões. Outras razões... que tu conheces.
- Jorge 1: Estás a dar importância a uma coisa que não teve nenhuma. Uma história idiota, que eu já nem sei como é que aconteceu. E de que eu me tinha esquecido completamente.
- Jorge 2: A quem é que tu queres enganar? A mim, que sei como as coisas se passaram, porque as vivi? E se não podes enganar-me a mim, como é que julgas poder enganar-te a ti próprio?
- Jorge 1: Basta! Não te quero ouvir mais.
- Jorge 2: Mas tens de me ouvir, até ao fim. E ainda falta muito até lá chegar (...)
Rebello, Luiz Francisco. As Páginas Arrancadas/ É Urgente o Amor. Lisboa: Hugin Editores, 2002, pp 44 - 46.
( Nota: este livro integra duas Peças de Teatro: É Urgente o Amor - estreada a 25 de Fevereiro de 1958 pelo Teatro Experimental do Porto - e As Páginas Arrancadas - estreada em Maio de 2002 pelo Teatro da Comuna em Lisboa. Várias décadas separam, portanto, os dois textos, daí o cunho mais neo-romântico do primeiro e o matiz moderno do segundo, quer ao nível dos processos narrativos quer da dramatização das cenas, no entanto, algo aproxima estas duas obras: o intento de arrancar máscaras ao nível do social, o empenhamento político e a afirmação da autenticidade dos afetos...)
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