sábado, 31 de outubro de 2015


- Jorge 1: Tive um momento de fraqueza. Não é justo que uma vida inteira seja julgada por um único momento.

- Jorge 2: Ah, já percebeste que é a tua vida que está a ser julgada! Até que enfim!

- Jorge 1: Não tens o direito de me julgar.

- Jorge 2: E quem, senão eu, tem esse direito? O tiro disparado pelo Cristóvão não acabou só com a vida dele,

- Jorge 1 (surdamente) : O Cristóvão matou-se porque teve medo de ser preso.

- Jorge 2: Não é verdade! Tu sabes que não é verdade!

(Luz sobre Cristóvão)

- Não, não é verdade. Que medo podia eu ter da prisão? Outros, melhores do que eu, mais conscientes do que eu, por lá passaram, e hão-de continuar a passar. Se eu tivesse vivido mais tempo, talvez me acabassem por prender, porque eu não deixaria de lutar contra o que me parecesse injusto. O que me levou a dar um tiro...

- Jorge 1 (tapando os ouvidos) : Não quero ouvir! Não quero ouvir!

- Cristóvão (Continuando, como se não tivesse sido interrompido) : ... foi teres-me denunciado e, pior ainda do que isso, o teu desprezo. Porque eu desculpava a tua fraqueza, embora ela me doesse. Não te disse uma vez que te desculpava tudo? Mas o que eu não podia suportar era o teu silêncio, a tua ausência, o teu abandono. Foi como se me atraiçoasses duas vezes, quando na polícia me denunciaste e depois, quando não me procuraste, quando me riscaste da tua vida. (...) A vida, para mim, tinha acabado.

- Jorge 2: A minha também. E foi outro que tomou o meu lugar. (A Jorge 1) Foi como se o meu corpo se esvaziasse, e tu entrasses dentro dele, como um ladrão.

- Jorge 1: Como um ladrão? Eu não te roubei nada!

- Jorge 2: Roubaste, sim. A capacidade de sonhar, a esperança num mundo melhor... E o amor! Porque daí em diante nunca mais soubeste o que era o amor. As suas máscaras, apenas. O amor morreu dentro de ti quando mataste o Cristóvão.

- Jorge 1: Eu não o matei!

- Jorge 2: Sim, é verdade que a pistola não estava na tua mão quando ele a disparou. Mas foi a tua mão que puxou o gatilho.

- Jorge 1: Não é verdade!

  
    Rebello, Luiz Francisco. As Páginas Arrancadas/ É Urgente o Amor. Lisboa: Hugin Editores, 2002, pp 58 - 60.


( Adenda à Nota anterior: a articulação do tom acusatório, da denúncia do mundo marcado pela injustiça e do desvelamento da autenticidade nos afetos, leva-nos à possibilidade de comparar esta peça com o longo poema de Daniel Filipe, A Invenção do Amor ).
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