sexta-feira, 23 de outubro de 2015

(Nota - " Tradutor Traidor" é uma máxima que todos os tradutores conhecem sobejamente, assim, traduzir um poema será sempre correr riscos e trair algo do que era o discurso originário. Todavia, a tradução de um poema é a única forma possível de trazer a ele leitores, que de outro modo o perderiam. Assim, acabo sempre aceitando os riscos e, no caso presente, passo a explicar algumas das minhas opções: a) resolvi traduzir "aves de paso" por "aves de passagem"- eliminando termos como arribação, migratórias, etc. -, pois penso que a minha opção se enquadra melhor nos pressupostos teológico-filosóficos da poesia de Antonio Praena; b) pela mesma razão traduzi "cumplir su vértigo" por "concretizar sua missão"; c) na 4ª estrofe optei por "um braço estendido" e não por "um braço aberto", que, ao nível semântico, surgiria confuso em português).
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        "  Gruas  "

Comovem-me as gruas no inverno.
Parecem estar vivas e concretizar
sua missão ao encherem-se de gralhas
que bordam - no seu aço - um pentagrama.

A essência das gruas são as aves
de passagem.
                   As cruzes deste século,
onde tudo se move, são as gruas:
imóveis, silenciosas, impossíveis.

Eu quis ser grua muitas vezes, 
acolher a neve antes que chegue ao mundo,
os pássaros, os raios da madrugada,
e ser depois desmantelado quando acabar
a obra em que elevo humilde carga.

As gruas são amigas dos pássaros.
Que venham e pousem nos meus ombros
quando fogem do frio - é esse o meu desejo.
Que cantem para mim, ser para eles
a mais singela árvore, pois apenas
um eixo vertical e um braço estendido
traduz minha estrutura permanente.

(Virá a morte e dará vida a este sonho
transformando-me também em ave de passagem).

E, entretanto, ser tão-só um traste útil
entre o céu e a terra. Algo invisível 
aos olhos de todos, mas jamais
ao olhar diferente das gralhas


   Praena, Antonio. Yo he querido ser grúa muchas veces. Madrid: Visor Libros, 2013, pp 40 - 41 (Tradução: Victor Oliveira Mateus).
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