sábado, 26 de dezembro de 2015


        Recensão da Profª Cecília Barreira da Universidade Nova de Lisboa ao livro Negro Marfim.


   Desde muito cedo que sou leitora de trabalhos e poesias de Victor Oliveira Mateus. É um belíssimo tradutor de livros clássicos, e de alguns poetas contemporâneos. A sua poesia encontra-se espraiada por imensas antologias.
   O autor do livro Negro Marfim não publica muito, o que é uma vantagem nesta esquizofrenia de dar à estampa um livro por ano. Daí, a linguagem muito depurada e um conhecimento da língua muito interessante. Pode dizer-se, desde já, que Portugal tem imensos poetas. Mas há poetas e Poetas. E não é o número de livros publicados que delineia a diferença.
   A poesia deste autor remete sempre para temas filosóficos, ou não fosse ele licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica.
   O presente livro é constituído por vinte e nove excertos de prosa poética, um posfácio de Ronaldo Cagiano e um curto prefácio de Miguel Real. Este último remete os textos de Victor para Raúl Brandão, Cioran ou Kierkegaard. Já Ronaldo Cagiano nos remete também para essa pulsão filosófica.
   Victor Oliveira Mateus é um homem que pugna pelas grandes causas da humanidade, nunca se esquecendo dos autores clássicos e do inebriante caos que é a sociedade dos dias de hoje, desnorteada e com uma "dor intraduzível das mulheres, pedaços de brinquedos já sem dono, bocadinhos de espelhos, rombas caixas de música, pássaros desasados, barcos naufragados com pedaços de vísceras na proa" (página 30).
   O autor oferece também um vasto conhecimento de geografias humanas, de história e até de sociologia. Sendo a minha formação básica em História, fico especialmente sensível a este entrosamento entre cidades e lugares históricos com o discernimento da filosofia.
     
"Atingiu-o com aquela ostentação portentosa, com
aquela beleza podre que só as coisas grávidas do
seu fim conseguem delicadamente fingir, nestas pá-
ginas de uma história que sempre continuará fa-
lando à surda distracção dos homens." (página 44)

   Victor Oliveira Mateus é um homem da cidade, mas não compactua com ela: fala de jogos perversos, de claustrofobias, de espectros, de mesas, de desistências. É um poeta  que nunca se retira de um olhar profundamente crítico à sociedade actual. De si próprio refere-se como "um objecto sem forma definida que (...) acabará à espera numa qualquer secção de perdidos e achados" (página 20).
   Mas o poeta está atento, sempre à espera, mas atento. O poeta sabe que este não é um livro de amor "(...) penso também em ti, mas tu terás de ficar para outra noite, ou outro dia, já que não podes entrar neste tipo de poesia" (página 21).
   E realmente o prometido é devido: Negro Marfim é árido no que diz respeito ao amor ou aos afectos, mas profundamente crítico em relação às memórias presentes e passadas, a entropia da realidade, os pequenos traços humanos a que ninguém liga, as presenças e as ausências num mundo indisponível para um olhar para dentro. E Negro Marfim é isso mesmo: um olhar filosófico de dentro para fora e de fora para dentro. A cidade sempre presente, até com o cão que ladra. Às vezes lembra-me o grande Cesário, que adorava a cidade disfarçando o amor com ironia e erotismo.
  A geração de Victor Oliveira Mateus produziu grandes escritores e poetas. Nem a todos tem sido reconhecido o valor, a beleza estética, o lirismo ou a ironia. O autor, há alguns anos, passou um período onde não era muito notado. Mas, como todos os grandes poetas e romancistas, hojé é um nome sólido na literatura portuguesa contemporânea. E, assim, o livro de prosa poética Negro Marfim é mais uma achega para a aquisição, na cultura portuguesa, de um lirismo sem amores e que se pulsiona para um olhar filosófico sobre a cidade. A não esquecer, a finitude, afinal o grande dilema humano,


Cecília Barreira in Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, Nº 16 - 2º Semestre 2015. Sintra: Zéfiro Edições, 2015, pp 246 - 247.
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