terça-feira, 23 de janeiro de 2018


   Ao que parece, a maquinaria dos nossos afetos é educável, até certo ponto, e boa parte daquilo a que chamamos "civilização" ocorre através da educação dessa maquinaria no ambiente da nossa infância, em casa, na escola e no ambiente cultural. Curiosamente, aquilo a que chamamos "temperamento" - o modo mais ou menos harmonioso como reagimos no dia a dia aos choques e aos obstáculos da vida - resulta desse longo processo de educação à medida que interage com os elementos básicos da reatividade emocional, aquela que recebemos em virtude dos fatores biológicos que atuaram durante o nosso desenvolvimento - o legado genético, vários fatores de desenvolvimento pré e pós-natal e a pura sorte, claro. Mas uma coisa é certa. A maquinaria dos afetos é responsável pela criação de respostas emotivas e, consequentemente, pela influência de comportamentos que, segundo poderíamos pensar, na nossa inocência, seriam unicamente controlados pelos componentes informados e discernentes da nossa mente. As pulsões, as motivações e as emoções têm, com frequência, algo a juntar ou a retirar às decisões que, na nossa imaginação, parecem ser puramente racionais.
(...)) Contudo, a maioria das pulsões, motivações e emoções são também sociais, em grande como em pequena escala, e o seu campo de ação vai muito além do indivíduo singular. O desejo e a paixão, o apego, o carinho e o cuidado, a ligação e o amor, funcionam num contexto social. O mesmo se aplica à maior parte dos casos de alegria e tristeza, medo, pânico e fúria; ou casos de compaixão, admiração e temor, inveja, ciúmes e desprezo. A poderosa socialidade, que foi um sustentáculo essencial do intelecto do Homo sapiens e tão indispensável na emergência das culturas, terá, porventura, tido origem na maquinaria das pulsões, motivações e emoções, onde evoluiu a partir de processos neurais mais simples, em criaturas também mais simples. Mas a verdadeira origem da socialidade remonta ainda mais atrás, ao exército de moléculas químicas, algumas das quais presentes em organismos unicelulares.
(...) Em conclusão, a maioria das imagens que nos entra na mente tem direito a uma resposta emotiva, seja ela forte ou fraca. A origem da imagem pouco importa. Qualquer processo sensorial pode servir de ativador, desde o paladar ao olfato e à visão, e não importa se a imagem está a ser criada no momento atual, ou se está a ser recuperada da memória. Pouco importa se a imagem pertence a objetos animados ou inanimados (...) Uma consequência previsível do processamento das muitas imagens que nos percorrem a mente é uma resposta emotiva, seguida pelo respetivo sentimento. Assim provocados, os sentimentos emocionais não têm exatamente que ver com a música da vida. O sentimentos emocionais têm que ver com canções ocasionais e, por vezes, com verdadeiras árias operáticas. As peças continuam a ser executadas pelos mesmos conjuntos, no mesmo salão - o corpo - e contra o mesmo pano de fundo - a vida. (...) A execução musical varia em cada momento pois a execução das respostas emotivas e a experiência do sentimento respetivo também variam, tal como acontece com a execução de uma peça musical famosa nas mãos de diferentes executantes. A composição a ser tocada, no entanto, continua a ser inconfundivelmente a mesma. As emoções humanas são peças reconhecíveis de um reportório normal.
   Uma parte substancial da glória e da tragédia humanas depende dos afetos, mesmo tendo em conta a sua modesta genealogia não-humana.
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  Damásio, António. A estranha ordem das coisas. Lisboa: Temas e Debates, 2017, pp 162-165.
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