segunda-feira, 22 de janeiro de 2018


   A vida de um organismo é mais do que a soma total das vidas de cada uma das suas células. A vida geral do organismo, a sua vida global, por assim dizer, resulta da integração das vidas nele contidas. A vida do organismo transcende a vidas das células, serve-se delas e retribui o favor sustentando-as. É essa integração de "vidas" reais que faz com que um organismo esteja vivo exatamente no sentido em que uma rede informática complexa não está viva. A vida de um organismo implica que cada célula componente continua a ter de usar, e é capaz de usar, os seus componentes microscópios complexos para transformar em energia os nutrientes capturados no seu ambiente, fazendo-o segundo as regras da regulação homeostática e segundo o imperativo homeostático de preservar a vida apesar de todas as dificuldades e persistir. Mas a extraordinária complexidade de um organismo vivo, tal como o ser humano, só poderia ter surgido com a ajuda dos dispositivos de apoio, de coordenação e de controlo do sistema nervoso. Todos estes sistemas fazem parte integrante do corpo que servem. Também eles, como tudo o resto, são compostos por células vivas. Essas células também precisam de ser alimentadas regularmente para manterem a sua integridade, e, à semelhança de qualquer outra célula do corpo, também correm o risco de adoecer e morrer.
   A ordem do aparecimento dos órgãos, dos sistemas e das funções nos organismos vivos é crucial para se compreender como algumas dessas funções emergiram e começaram. Isso torna-se sobremaneira notório na necessidade de considerar as precedências das partes e das funções na história dos sistemas nervosos, sobretudo do sistema nervoso humano e dos seus magníficos produtos: mente e cultura. Há uma ordem para a emergência das coisas, que será ou não estranha, dependendo da perspectiva em que as consideramos.


  Damásio, António. A estranha ordem das coisas. Lisboa: Temas e Debates, 2017, pp 100-101.
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