MARIA TERESA HORTA: A LUMINOSA INSURREIÇÃO DA EROS
( Pode também ser lido AQUI:
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No
âmbito da poesia portuguesa, irrompem – no início dos anos sessenta - dois
movimentos cujos pressupostos teórico-estilísticos colocariam em questão não só
os modos vigentes de conceber o fazer poético, mas igualmente a relação deste
com o todo social. Para esses dois grupos de autores – o Poesia 61 e o Experimentalismo
- surgem como marcos originários e fundantes a preocupação com a linguagem,
a recusa da discursividade e do sentimentalismo, assim como a rejeição da tese
da eficácia do discurso poético. Este enfatizar do universo linguístico e o
privilegiar da materialidade do texto conduz, nestes dois grupos de poetas, a
uma substantivação da poesia naquilo que a demarca, ora de um subjectivismo
impressionista ora de concepções que subalternizam o poético em virtude de
aspectos normativos extrínsecos à própria poesia. Todavia, e no que diz
respeito à Poesia 61, estes autores
logo se demarcam de toda e qualquer estridência formalista, enveredando antes
por um dizer que assume a palavra na sua relação dialógica com a História que
dela é solo vitalizador e terra de acolhimento.
A poesia de Maria Teresa Horta é, por
conseguinte, uma emanação necessária do referido percurso: escrita fortemente
centrada no feminino, a mulher de que insiste em falar não é jamais uma
construção abstracta que uma inócua prestidigitação discursiva coloque
levitando num qualquer mundo fantasiado. A mulher que transpassa o dizer
poético de Maria Teresa Horta é um ser real e concreto intimamente relacionado
com o seu contexto histórico, cultural e sociopolítico; ela é, e ao invés do
que vinha sendo veiculado pela tradição poética, uma mulher activa que ousa
escolher, e construir, o seu destino e que por tal assunção se pretende responsável,
este posicionamento aparece-nos logo no livro Tatuagem (1961) em Poema para
a noite:
Beijo-vos
prolongada de gerações
em silêncio
é para nós agora
a vez
das planícies que erguemos
pelas ancas
na curva onde o hálito
é ansiedade no homem
Este facto da mulher se apresentar como
estruturalmente activa, pode, no entanto, parecer contraditado por poemas como Cativa e Crueldade ambos do livro Candelabro (1964), Chicote de Jardim de Inverno (1966)
e ainda muitos outros como, por exemplo, Poema
de Muito Amor de Minha Senhora de Mim
(1971), no entanto, urge dizer que, se em muitos poemas o arrebatamento, o
“cativeiro” e a veemência das invocações atingem uma estridência iniludível,
isso não anula o facto de tais atitudes e comportamentos terem a sua raiz em
deliberações e decisões que partiram exclusivamente da própria mulher. No
entanto, este primado do feminino, intimamente relacionado com um léxico e com
um processo de metaforização alicerçados, muitas vezes, no anatómico e no
bio-fisiológico (veja-se, por exemplo, o poema A Doença do livro Educação
Sentimental, 1975, onde são referidas, em analogia com elementos do mundo
natural, partes do corpo e mesmo secreções), pode trazer o perigo de visões
reducionistas, onde a mulher se veja circunscrita ao erótico ou ao intento de
suplantar o estatuto do masculino. Todavia, são bem mais abrangentes as
inquietações desta escrita: a mulher, enquanto ser individual, vai sempre, ao
longo da poesia de Maria Teresa Horta, mantendo uma dialogal relação com as
outras mulheres e com determinados valores ético-morais, observe-se isso em Mulheres de Abril (1977), no poema Em Liberdade:
Em Liberdade
somos
nós mulheres o cimo
da raiz
(…)
No ventre das mulheres
o sossego é fértil
em nós cresce o amor
Vemos,
por conseguinte, que a procura de uma comunhão amorosa, se, por vezes, nos
aparece como mais extensa e mais intensa quando dirigida ao Outro-amado, não é
menos verdade que ela a tal não se limita, mas acaba alcançando um carácter abrangente
e englobante: em Minha Mãe Meu Amor (1986)
o vector do amor encontra-se apontado à mãe:
Respirar-te o sangue
bebendo-te o perfil
bordando-te o perfil
(…)
a ponto-pé-de afago
minha mãe
meu amor
mas, em Cronista Não é Recado (1967), já é para
o seu país que a poeta aponta esse mesmo vector, como no poema Peso de Campo:
Varejar país doente
é cultivar no silêncio
um fruto que não de medo
Se
a isto confirmarmos que na poesia de Maria Teresa Horta ao mesmo tempo que
pululam os vocábulos (até então banidos da lírica amorosa) ligados ao corpo, à
sexualidade e ao desejo, outros também se levantam, apesar de aparentemente
emudecidos pelos anteriores: “a chuva crucifica”,
“catedrais de nós” In poema Reflexo de Cidadelas Submersas (1961); “no
retábulo místico dum templo” e “vela cansada/
e gasta numa missa” In Candelabro (1964); “Lembro-me do paraíso (…)/ E havia também a maçã/ do teu útero/ sítio: da tentação no início” In Minha Senhora de Mim (1986); “ Abro-te
as portas querendo/ a tua luz (…)/ Desejo o teu incêndio/ queimando a minha alma” In Inquietude
(2006), etc. São, como vemos, inúmeros os poemas onde se tangencia
(exemplo: o tema da Visitação - “ A
parte que é/anjo/do teu corpo// e me visita/ de madrugada” In Anjos,1983) ou mesmo se enuncia toda uma
imagética de índole religiosa. Assim, este amor que dizíamos não exclusivo do
Outro-amado, mas que se propaga agora pelo Todo que envolve a poeta, e do qual
ela fala, surge-nos geminado com o sagrado, não aquele sagrado das religiões
tradicionais e institucionalizadas, mas antes uma sacralidade antiquíssima a
fazer-nos lembrar esse campo onde dialogam e se interpenetram não só as teses
de Empédocles, mas também os ritos onde o dizer, o corpo e um dado solo
originário se firmam:
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de
humidade
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo – framboesa
e carne
Laranja In Educação Sentimental (1975)
Esta partilha amorosa, esparsa pelos
territórios já referidos, e que se diz, na poesia de Maria Teresa Horta,
através dos mais diferentes vocábulos (altar, anjo, cilício, grinaldas…),
desemboca necessariamente na mais nítida e contundente religiosidade pagã, que
mais não é do que húmus e fermento de um amor – em autenticidade - pela escrita
e pelo corpo do texto, ou melhor: retira-se assim esta poesia, sem a privar da
sua autonomia estética, das leituras exclusivistas baseadas no erótico, no
ético-moral e no ideológico, e recolocamo-la num solo essencial e eminentemente
ontológico, do qual todos os outros olhares são vertentes e derivações, até
porque o amor primeiro não é mais do que o amor pela Palavra: o Amor, que ante
a poeta se Abre e É, é acima de tudo Poema:
Deixo que venha
se aproxime ao de leve
pé ante pé ao meu ouvido
Enquanto no peito o
coração
estremece
e se apressa no sangue
enfebrecido
(…)
Do poema que cresce e o
papel absorve
verso a verso primeiro
em cada desabrigo
(…)
Sinto-o quando chega no
arrepio
da pele na vertigem selada
do pulso recolhido
À medida que escrevo
e o entorno no sonho
o dispo sem pressa e o
deito comigo
Poema
In Inquietude (2006)
Mesmo
nos livros onde a nostalgia e um certo desalento campeiam, como por exemplo Destino (1997), o arrojo da entrega ao
Outro-amado nunca é anulado (cf. poema Ponto
de Pérola), nem tão-pouco o saber que o Amor, essa divindade
simultaneamente luminosa e insurrecta, simultaneamente intensa e abrangente,
jamais deixará de se impor à poeta com a segura convicção de que “O lugar destes sítios/ chama-se destino”.
Diremos, pois, que se o ato amoroso, quando
partilhado com o Outro-amado, é pleno, excessivo e gratificante, não é menos
verdade que, quando se engrandece e propaga, incorpora armadilhas e desvios
tornando-se numa urdidura da alma (cf.
poema Versos In Inquietude ), que mais não é do que a própria Poesia a dizer-se na
sua caligrafia cruel. Ele é, nesta
poesia, inclusivo mas também ramiforme, ele é despojamento mas também vocação
própria de plenitude, dito de outra forma: o ato amoroso é aquele que,
ultrapassando uma sensualidade gratuita, infringe assumidamente o principio da
não-contradição, pois nele o eu-poético mantém a sua individualidade, ao mesmo
tempo que, partilhando o amor do Outro, se acrescenta, isto é, no topo da
partilha alcança-se um solo fusional onde o eu é simultaneamente um si-próprio
e ser-através-do-Outro. Esta a mestria desta paisagem poética, aliás, a imagem
da urdidura, e da tecelã, aparece com insistência metamorfoseada ao longo de
toda a obra poética de Maria Teresa Horta em versos que referem atos de
prender, fazer/refazer, embrulhar, entrançar, desatar, etc. Esta vasta tecedura
poética diz-se, inconfundivelmente, através de uma voz original e una, que, no
entanto, nessa unicidade integrou e fez seu todo um vasto conhecimento dos
poetas que a antecederam, pois aqui podemos vislumbrar marcas da lírica
medieval (cf. poema Minha senhora de mim,
mas também o Verde-Pinho do livro
Só de Amor, 1999, a fazer lembrar-nos
a Cantiga de D. Dinis Ai flores, ai flores de verde pino);
podemos encontrar um subtil diálogo com a lírica camoniana (comparar o último
verso de Delírio do livro Só de Amor, 1999, com o último verso do
soneto de Camões Sete anos de Pastor);
podemos até recordar-nos de Soror Violante do Céu ou das ultra-românticas ao
aproximarmo-nos das repetições, do esquema rimático e da contradição no fecho
do poema Carmim de Inquietude (2006). Nada é deixado ao
acaso na poesia de Maria Teresa Horta: a um intento globalizador terá de
corresponder uma técnica que de tudo se assenhoreia e tudo incorpora, para que
mais autênticas sejam a luminosidade e a insurreição com que Eros desde os
primórdios vem abraçando o mundo.
Bibliografia:
- Gastão, Ana Marques.
Maria Teresa Horta: corpo solar e
lunar no corpo do texto. In: Revista de Cultura Agulha Nº 46. Fortaleza, São Paulo: Julho de
2005.
- Gubar, Susan. A “Página
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In Ana Gabriela Macedo, org., Género,
Identidade e Desejo: Antologia crítica do feminismo contemporâneo. Lisboa:
Livros Cotovia, 2002, 97-124.
- Gusmão, Manuel. Tatuagem & Palimpsesto: da poesia em
alguns poetas e poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
- Horta, Maria Teresa. Antologia Poética. Lisboa: Círculo de
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- Horta, Maria Teresa. Destino. Lisboa: Livros Quetzal, 1997.
- Horta, Maria Teresa. Inquietude. Vila Nova de Famalicão:
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- Horta, Maria Teresa. Poesia Reunida. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 2009.
- Horta, Maria Teresa. As Palavras do Corpo, Antologia de Poesia
Erótica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012.
- Klobucka, Anna M.
Poetas, Feminino Plural (Sobre Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge). In: O Formato Mulher, A Emergência da Autoria
Feminina na Poesia Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editora, 2009.
- Martins, Manuel Frias. 10 anos de poesia em Portugal, 1974 – 1984:
leitura de uma década. Lisboa: Editorial Caminho, 1986.
Mateus, Victor Oliveira. " Maria Teresa Horta - A luminosa insurreição de Eros " in " Cintilações da Sombra III ". Fafe: Editora Labirinto, 2015, pp 81 - 88.
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