sábado, 31 de maio de 2014








   Repeti então o que tinha escrito no Édito de 4 de Fevereiro. A tolerância devia ser universal. Os galileus podiam fazer o que lhes apetecesse entre os da sua espécie, embora não devessem perseguir-se mutuamente, muito menos aos helenistas (...).
- Agora quero pedir-vos que mantenhais a paz nas cidades. Se o não fizerdes, como primeiro magistrado disciplinar-vos-ei. Mas nada tendes a temer de mim como Pontifex Maximus (...). Pregai somente as palavras do Nazareno e poderemos viver uns com os outros. Mas é claro que vós não vos satisfazeis com essas palavras. Acrescentais coisas novas todos os dias. Debicais no Helenismo, apropriais-vos dos nossos dias santos, das nossas cerimónias, tudo em nome dum judeu que as não conhecia. Roubais-nos e rejeitais-nos e citais o cipriota arrogante que disse que fora da vossa fé não pode haver salvação! Será possível acreditar que milhares de gerações de homens, entre os quais Platão e Homero, estão perdidas porque não adoravam um judeu que se supõe ser deus? (...)
   Um bispo idoso pôs-se em pé. Usava as vestes simples dum homem santo e não as dum príncipe - Há um só Deus. Um só desde o começo dos tempos.
- Concordo. E pode tomar tantas formas quantas quiser, pois é omnipotente.
- O Deus Único tem uma só forma. - A voz do velho, embora fraca era firme.
(...) Fez-se uma pausa. Os bispos eram homens inteligentes e peritos em subtilezas e estavam perfeitamente conscientes de que eu lhes armara uma armadilha qualquer (...)
- Então - deixei a armadilha fechar-se - porque alterais a Lei de acordo com as vossas conveniências? Prevertestes de mil maneiras não só Moisés como o Nazareno, e fizeste-lo logo desde o dia em que o blasfemo Paulo de Tarso disse: "Cristo é o fim da Lei!" Vós não sois nem Hebreus nem Galileus mas oportunistas. (...) o bispo ancião que me tinha desafiado, cortou-me subitamente o passo. Era Maris de Calcedónia. Nunca vira tanta maldade num rosto humano.
- Estás amaldiçoado! - Quase me cuspiu na cara. O tribuno Escolar puxou da espada mas fiz-lhe sinal para se deixar ficar onde estava.
- Por ti talvez, mas não por Deus. - Fui brando, quase galileu.
- Apóstata! - Urrou-me a palavra.
Sorri: - Eu não. Tu é que és apóstata. Eu pratico o culto como os homens sempre o praticaram desde o princípio dos tempos. Tu é que abandonaste não só a filosofia como o próprio Deus.




   Vidal, Gore. Juliano. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 1990, pp 293 - 294.
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