sexta-feira, 16 de maio de 2014


Até aos livros do doutor, só tivera nas mãos livros de aprender a ler. Nunca tinha visto livros sem desenhos, só com letras. Li uns bocadinhos ao acaso. Estranhei. Parecia-me um disparate utilizarem-se as palavras para contar coisas que não tinham acontecido. Para inventar. Para mentir. Não percebia o interesse de usar as letras sem ser para o que era importante e que não devia ser esquecido, por nós ou por outros. Mas o certo é que no dia seguinte me lembrava de forma mais precisa de algumas das mentiras que tinha lido do que da maior parte do que tinha acontecido na vida. O que li fez-me magicar quase tanto quanto magicara para coisas importantes como o assalto. Comecei a usar as mentiras como companhia e gostava mais delas do que das conversas com os outros presos. (...) Comecei a ler os livros do princípio até ao fim. Foi o doutor que me sugeriu para fazer assim. Nem isso sabia. (... ) Quando se lia da primeira à última página, as mentiras encaixavam-se umas nas outras e passavam a verdades tão autênticas, que não tinha como não me entregar a elas. E quando nos entregamos com esta fé a alguém ou a alguma coisa já não podemos matar-nos. Foi assim que os livros me salvaram.
 
 
  Cardoso, Dulce Maria. tudo são histórias de amor. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2014, p 48.
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