quinta-feira, 22 de maio de 2014



- Não é estranho tu encontrares uma pessoa e assim que olhas para ela saberes imediatamente se são almas gémeas ou não?
- O quê?, como nas 'Asas do Desejo'? Tipo, os anjos são invisíveis para todos a não ser uns para os outros?
- Exactamente. Os anjos reconhecem-se entre a multidão.
- Não sei se é estranho mas pode ser um bocado perigoso. Isso não implica estares sempre com muita atenção à cata de anjos? Imagina que olhas para um anjo que por acaso está em dia não, e o riscas imediatamente da lista e afinal ele até era a tua alma gémea só que por acaso tinha-lhe corrido mal o dia e lhe tinha fugido a anjisse toda dos olhos?
- Não sei se a anjisse é assim tão transitória. Acho que nesse caso veria apenas um anjo de cabeça perdida. Tenho que pensar melhor nesta teoria. Mas hoje estava no supermercado e de repente olhei para um rapaz na fila e ele olhou para mim de volta.
- E viste-lhe as asas, suponho.
- Sim. Enormes. A saírem-lhe do blusão de ganga. Saí do supermercado e meio esperei que ele viesse a correr atrás de mim e continuei a esperar até que já ia no metro e continuava a esperar e quando cheguei a casa já estava casada com ele.
- Sabes qual é o nosso mal? É que vemos demasiados filmes. Aliás, o nosso mal é que nos prometeram um Amor Eterno desde pequeninas. E ninguém nos disse que era tão normal que isso acontecesse como ganhar a lotaria. Imagina a tua mãezinha a dizer-te, 'minha filha, aos 6 anos vais para a escola, aos 18 tiras a carta e aos 20 ganhas o totoloto'. É ridículo. Mas foi o que fizeram e continuam a fazer connosco.
- Pois. E depois chegamos a uma desgraçada idade em que vemos que isso não é verdade mas aí já é demasiado tarde para arrancar a fé.
- Consola-te. Quem tem fé tem tudo.


   Fonseca, Catarina. O Clube das Encalhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp 81 - 82.
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