Quando a poesia se
contempla, nua, ao espelho:
Novos rumos da
literatura
João de Mancelos
(Universidade da
Beira Interior)
O escritor modernista norte-americano Wallace Stevens
comparava, com perspicácia, o poeta a uma gralha. Como essa ave constrói,
paulatinamente, o ninho graças aos materiais que esgravata, também um homem ou
mulher de letras elabora o seu texto a partir de ideias, imagens e versos
alheios, apropriando-os com criatividade. Quanto melhor é o poeta, mais seu é
aquilo que furta.
O trabalho de um antologiador não é diferente deste: recolhe,
seleciona e colige determinadas composições, esperando que o seu esforço revele
o “status quo” da poesia hodierna, na sua vital multiplicidade. Neste contexto,
a tarefa de que Victor Oliveira Mateus se tem ocupado, na série de livros Cintilações da Sombra, não é singela. A
era do pós-modernismo carateriza-se pela emergência de estéticas individuais, e
não tanto por correntes bem definidas. A poesia, mais até do que o romance,
dinamiza-se num caleidoscópio de temas, conteúdos e estilos. Por sua vez, estes
multiplicam-se e fragmentam-se, quando os autores se arriscam no campo do
experimentalismo.
Perante esta realidade tão heterogénea, é legítimo
colocar uma mão cheia de perguntas, talvez esfíngicas. Será possível um
antologiador revelar capazmente uma tal diversidade de vozes poéticas? A que
critérios recorrer na seleção dos textos mais representativos? Como usar um
paradigma estético, quando a própria produção literária evolui mais
pressurosamente do que a crítica? No início deste século, poderá a poesia
contemplar-se, nua, ao espelho — e reconhecer-se?
Argumento que esta antologia, Cintilações da Sombra 3, constitui uma mostra representativa e
internacional da poética contemporânea e, assim, responde às perguntas que
referi. As caraterísticas que a generalidade dos textos aqui reunidos
apresentam são o recurso à imagética poderosa, que causa o aristotélico
sentimento de estranheza e fomenta o deleite estético; a musicalidade, por
vezes deliberadamente fragmentária ou jazzística, se preferirem; e um premente
desejo de libertação dos espartilhos formais.
Surpreendentemente, estes três constituintes
partilhados revelam que o caudal da diversidade encontrou um leito comum, por
onde fluir. Mais ainda, evidenciam que alguns anseios dos poetas e certas opções
no plano estético não cambiaram significativamente com o rodar da máquina do
tempo. Residirá nesses três pilares (imagem, música e novidade) a essência imemorial
da poesia? Na minha leitura, os textos selecionados por Victor Oliveira Mateus testemunham
precisamente isso.
Passemos à primeira trave-mestra desta obra, o sábio
uso da imagem, um dos principais tropos, dentro dos recursos estilísticos. Os
pintores renascentistas, quando desejavam salientar o erotismo de um corpo nu,
cobriam-no parcialmente com uma veste, manto ou lençol. Esta estratégia, talvez
paradoxal, não difere da usada pelos poetas: para revelar é preciso esconder;
para ocultar é imprescindível sugerir; para insinuar é fundamental não ser
evidente. Aqui reside um dos desafios primordiais de qualquer poeta: ser
plurissignificativo, para que o corpo da poesia se ofereça, sempre fértil, a
qualquer leitor. Mais dinâmica do que as comparações ou metáforas, a imagem
ambiciona dizer o inefável, como este público de poetas bem sabe.
Em minha opinião, um dos textos que melhor ilustra
esta capacidade é “Monólogos do Báltico V”, de Alberto Pereira, de que reproduzo
um excerto: “Não me digam para guardar / o vento na garganta / ou que as
tempestades / são retratos de um hospício. / O teu corpo ensinou-me, / o Verão
é um felino / e a hierarquia das garras / só o tempo a sabe” (9). Outro
belíssimo exemplo reside no poema “Os sulcos dos dias”, de Artur Ferreira
Coimbra, que afirma: “As rugas desaguam nos rios / Que serpenteiam as tardes
demoradas da vida / Depois de imensos outonos folhas pedras cristais / Luas de
luas madrugadas sem final / Como pérolas que desabrocham em êxtase / Para
recolher o mar cansado nas ondas do teu olhar / Indiferente aos barcos e à
urgência intemporal das gaivotas” (17). Poderia ainda referir esta expressiva e
original estrofe, da “Elegia a Natália Correia”, por Daniel Gonçalves: “era a
dimensão encontrada uma torneira fechando a loucura / a paixão intacta como um
vestido a quem avariaram as asas / e se despenhou no fundo do armário junto do
botão perdido” (26).
Um segundo aspeto que me suscitou a atenção foi a
musicalidade de alguns textos incorporados nesta antologia, sobretudo os de
natureza mais lírica, termo que
remete desde logo para o instrumento que acompanhava a leitura ou canto da
poesia na antiguidade clássica. Destacaria, pelas suas qualidades
fónico-rítmicas, “Dos mortos, cativos somos”, de Albano Martins, que recorre à
anástrofe, ao encavalgamento e aos versos breves de onde ressuma a melodia.
Transcrevo-o na íntegra: Partem / às vezes sem um aviso / sequer, como se / a
sua ausência fosse / apenas temporária. Regressam / sempre ao lugar / donde
partiram. Ou / somos nós que partimos / ao seu encontro, já / transformados em
estátuas / de pirilampos” (8). A mesma melodia depurada encontra-se em poemas
de recorte clássico, como “Amar-te” (19), de Casimiro de Brito, um dos meus
poetas favoritos de sempre, ou “Caminhada” (21), de Cláudio Lima, apenas para
citar dois dos abundantes exemplos que o leitor indubitavelmente desvendará.
Por fim, gostaria de realçar a relevância que o
experimentalismo detém, como agente de revitalização da arte poética. Alguns
autores, ao descobrirem a sua voz, aqui entendida como o estilo singular e
temas dominantes, prosseguem um determinado rumo, despojado de surpresas. A poesia
de Sophia Andresen ou de Eugénio de Andrade é monótona, no sentido eufórico do
termo, ou seja, coesa. Este perfil
permite ao leitor descobrir, por exemplo, o sentido dos termos mais recorrentes
do seu estilo. Porque cada texto ilumina e esclarece os restantes, a
compreensão da mensagem volve-se percetível, sem perder o véu lírico.
No entanto, favoreço os poetas que, num golpe de asa,
mudam de rumo, por vezes sob a máscara heteronímica, e se atrevem à novidade, sem
receio. Como afirmou Robert Graves, o experimentalismo significa dúvida,
esperança e incerteza. Por outro lado, segundo argumenta António Ramos Rosa,
num dos seus poemas, representa também a abertura de janelas, para deixar sair
o ar viciado.
Existem diversas composições, nesta antologia, que
reescrevem ou subvertem, com imaginação, temas imemoriais. Penso, por exemplo, no
poema antirromântico “La vida segun Bacon”, de Antonio Praena Segura, que
recorre ao calão e a uma linguagem vernácula para, citando um Francis Bacon embriagado,
clamar: “el amor es ser bueno. Pero estaba borracho” (15). Outras composições aproximam
a poesia à prosa, como sucede no texto “Corpo com vista para um declive”
(53-54), de Maria José Quintela, “Correr até que o gato fale como um homem”
(67), de Samuel Pimenta, ou “El Penúltimo Enojo de Leopoldo María Panero” (37),
de Jorge Melícias, uma elegia irreverente quanto baste. Não se trata de prosa
poética, expressão que Eugénio de Andrade abominava, e por bons motivos, mas
sim de poemas em prosa, textos que se despiram das convenções, até na mancha
tipográfica.
Em minha opinião, o poema mais arrojado desta
antologia, na linguagem e ritmo fragmentário, pertence a Danilo Bueno. Um
excerto: A ___ /quer / Mais que a ___ / A ___ fecha / Crianças num bunker /
Ainda mais treva / (Odeia a alteridade) / Mera perspetiva de lucro / Nenhuma
estética nenhuma / Boca no mamilo / Pode com ela” (27).
Ler este terceiro volume de Cintilações da Sombra constitui um prazer, porque toma o pulso à
poesia de hoje, revelando a sua múltipla divícia, e afastando qualquer suspeita
de esgotamento. Outrossim porque, pela abrangência de autores de vários países,
constitui um desafio de literatura comparada para o leitor, e uma fonte de
debate para o criador de poesia. Os três breves ensaios exegéticos que o
acompanham, de Érico Nogueira, Miguel Real e Victor Oliveira Mateus, evidenciam
este desejo de colocar a poesia em frente o espelho, refletindo-a e pensando-a.
E o que contempla a musa? Existem dois polos, na presente
coletânea: por um lado, uma poesia mais tradicional, cultivando a depuração, um
uso rigoroso de vocábulos pertencentes à esfera semântica do poético, e ecoando
o rumor de vozes antigas; por outro, composições que alargam o escopo da
literatura, sem perder o seu âmago, desafiando o expectável, na linguagem, nos
temas e até na própria mancha tipográfica. Os primeiros transmitem conforto ao
leitor, entretecendo-se num cânone sólido e antigo, que reificam e representam
talentosamente. Sobre os segundos, repousa a responsabilidade de renovar,
rasgar, subverter, antevendo, enfim, o amanhã da poesia. Neste contexto, não
nos podemos esquecer de que os grandes poetas foram também profetas, como Hart
Crane, Walt Whitman, Fernando Pessoa, Ezra Pound, entre outros nomes maiores do
cânone ocidental.
Argumentavam os antigos gregos, com alguma justiça,
que um extenso poema constitui uma longa maçada. O mesmo talvez se aplique a
todos os textos críticos ou de apresentação, como o meu, quando ameaçam
transpor as três ou quatro páginas tradicionais. Não desejando abusar da
paciência dos ouvintes, nem reclamar o tempo dos poetas, mais precioso do que o
dos críticos, terminaria apenas com um voto de esperança. Num dos textos desta
coletânea, José Jorge Letria afirma que, no tempo em que vivemos, a poesia se
cala e omite, quase pedindo desculpa por aludir ao amor. Perante a realidade
atual, só desejo que estes versos cintilem, palavra a palavra, rumo ao futuro
que sobressaltamos.
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