sábado, 21 de março de 2015

Texto de apresentação da Antologia "Cintilações da Sombra 3" (Lisboa, 2015/3/21)


Quando a poesia se contempla, nua, ao espelho:

Novos rumos da literatura

 

João de Mancelos

(Universidade da Beira Interior)

 

O escritor modernista norte-americano Wallace Stevens comparava, com perspicácia, o poeta a uma gralha. Como essa ave constrói, paulatinamente, o ninho graças aos materiais que esgravata, também um homem ou mulher de letras elabora o seu texto a partir de ideias, imagens e versos alheios, apropriando-os com criatividade. Quanto melhor é o poeta, mais seu é aquilo que furta.

O trabalho de um antologiador não é diferente deste: recolhe, seleciona e colige determinadas composições, esperando que o seu esforço revele o “status quo” da poesia hodierna, na sua vital multiplicidade. Neste contexto, a tarefa de que Victor Oliveira Mateus se tem ocupado, na série de livros Cintilações da Sombra, não é singela. A era do pós-modernismo carateriza-se pela emergência de estéticas individuais, e não tanto por correntes bem definidas. A poesia, mais até do que o romance, dinamiza-se num caleidoscópio de temas, conteúdos e estilos. Por sua vez, estes multiplicam-se e fragmentam-se, quando os autores se arriscam no campo do experimentalismo.

Perante esta realidade tão heterogénea, é legítimo colocar uma mão cheia de perguntas, talvez esfíngicas. Será possível um antologiador revelar capazmente uma tal diversidade de vozes poéticas? A que critérios recorrer na seleção dos textos mais representativos? Como usar um paradigma estético, quando a própria produção literária evolui mais pressurosamente do que a crítica? No início deste século, poderá a poesia contemplar-se, nua, ao espelho — e reconhecer-se?

Argumento que esta antologia, Cintilações da Sombra 3, constitui uma mostra representativa e internacional da poética contemporânea e, assim, responde às perguntas que referi. As caraterísticas que a generalidade dos textos aqui reunidos apresentam são o recurso à imagética poderosa, que causa o aristotélico sentimento de estranheza e fomenta o deleite estético; a musicalidade, por vezes deliberadamente fragmentária ou jazzística, se preferirem; e um premente desejo de libertação dos espartilhos formais.

Surpreendentemente, estes três constituintes partilhados revelam que o caudal da diversidade encontrou um leito comum, por onde fluir. Mais ainda, evidenciam que alguns anseios dos poetas e certas opções no plano estético não cambiaram significativamente com o rodar da máquina do tempo. Residirá nesses três pilares (imagem, música e novidade) a essência imemorial da poesia? Na minha leitura, os textos selecionados por Victor Oliveira Mateus testemunham precisamente isso.

Passemos à primeira trave-mestra desta obra, o sábio uso da imagem, um dos principais tropos, dentro dos recursos estilísticos. Os pintores renascentistas, quando desejavam salientar o erotismo de um corpo nu, cobriam-no parcialmente com uma veste, manto ou lençol. Esta estratégia, talvez paradoxal, não difere da usada pelos poetas: para revelar é preciso esconder; para ocultar é imprescindível sugerir; para insinuar é fundamental não ser evidente. Aqui reside um dos desafios primordiais de qualquer poeta: ser plurissignificativo, para que o corpo da poesia se ofereça, sempre fértil, a qualquer leitor. Mais dinâmica do que as comparações ou metáforas, a imagem ambiciona dizer o inefável, como este público de poetas bem sabe.

Em minha opinião, um dos textos que melhor ilustra esta capacidade é “Monólogos do Báltico V”, de Alberto Pereira, de que reproduzo um excerto: “Não me digam para guardar / o vento na garganta / ou que as tempestades / são retratos de um hospício. / O teu corpo ensinou-me, / o Verão é um felino / e a hierarquia das garras / só o tempo a sabe” (9). Outro belíssimo exemplo reside no poema “Os sulcos dos dias”, de Artur Ferreira Coimbra, que afirma: “As rugas desaguam nos rios / Que serpenteiam as tardes demoradas da vida / Depois de imensos outonos folhas pedras cristais / Luas de luas madrugadas sem final / Como pérolas que desabrocham em êxtase / Para recolher o mar cansado nas ondas do teu olhar / Indiferente aos barcos e à urgência intemporal das gaivotas” (17). Poderia ainda referir esta expressiva e original estrofe, da “Elegia a Natália Correia”, por Daniel Gonçalves: “era a dimensão encontrada uma torneira fechando a loucura / a paixão intacta como um vestido a quem avariaram as asas / e se despenhou no fundo do armário junto do botão perdido” (26).

Um segundo aspeto que me suscitou a atenção foi a musicalidade de alguns textos incorporados nesta antologia, sobretudo os de natureza mais lírica, termo que remete desde logo para o instrumento que acompanhava a leitura ou canto da poesia na antiguidade clássica. Destacaria, pelas suas qualidades fónico-rítmicas, “Dos mortos, cativos somos”, de Albano Martins, que recorre à anástrofe, ao encavalgamento e aos versos breves de onde ressuma a melodia. Transcrevo-o na íntegra: Partem / às vezes sem um aviso / sequer, como se / a sua ausência fosse / apenas temporária. Regressam / sempre ao lugar / donde partiram. Ou / somos nós que partimos / ao seu encontro, já / transformados em estátuas / de pirilampos” (8). A mesma melodia depurada encontra-se em poemas de recorte clássico, como “Amar-te” (19), de Casimiro de Brito, um dos meus poetas favoritos de sempre, ou “Caminhada” (21), de Cláudio Lima, apenas para citar dois dos abundantes exemplos que o leitor indubitavelmente desvendará.

Por fim, gostaria de realçar a relevância que o experimentalismo detém, como agente de revitalização da arte poética. Alguns autores, ao descobrirem a sua voz, aqui entendida como o estilo singular e temas dominantes, prosseguem um determinado rumo, despojado de surpresas. A poesia de Sophia Andresen ou de Eugénio de Andrade é monótona, no sentido eufórico do termo, ou seja, coesa. Este perfil permite ao leitor descobrir, por exemplo, o sentido dos termos mais recorrentes do seu estilo. Porque cada texto ilumina e esclarece os restantes, a compreensão da mensagem volve-se percetível, sem perder o véu lírico.

No entanto, favoreço os poetas que, num golpe de asa, mudam de rumo, por vezes sob a máscara heteronímica, e se atrevem à novidade, sem receio. Como afirmou Robert Graves, o experimentalismo significa dúvida, esperança e incerteza. Por outro lado, segundo argumenta António Ramos Rosa, num dos seus poemas, representa também a abertura de janelas, para deixar sair o ar viciado.

Existem diversas composições, nesta antologia, que reescrevem ou subvertem, com imaginação, temas imemoriais. Penso, por exemplo, no poema antirromântico “La vida segun Bacon”, de Antonio Praena Segura, que recorre ao calão e a uma linguagem vernácula para, citando um Francis Bacon embriagado, clamar: “el amor es ser bueno. Pero estaba borracho” (15). Outras composições aproximam a poesia à prosa, como sucede no texto “Corpo com vista para um declive” (53-54), de Maria José Quintela, “Correr até que o gato fale como um homem” (67), de Samuel Pimenta, ou “El Penúltimo Enojo de Leopoldo María Panero” (37), de Jorge Melícias, uma elegia irreverente quanto baste. Não se trata de prosa poética, expressão que Eugénio de Andrade abominava, e por bons motivos, mas sim de poemas em prosa, textos que se despiram das convenções, até na mancha tipográfica.

Em minha opinião, o poema mais arrojado desta antologia, na linguagem e ritmo fragmentário, pertence a Danilo Bueno. Um excerto: A ___ /quer / Mais que a ___ / A ___ fecha / Crianças num bunker / Ainda mais treva / (Odeia a alteridade) / Mera perspetiva de lucro / Nenhuma estética nenhuma / Boca no mamilo / Pode com ela” (27).

Ler este terceiro volume de Cintilações da Sombra constitui um prazer, porque toma o pulso à poesia de hoje, revelando a sua múltipla divícia, e afastando qualquer suspeita de esgotamento. Outrossim porque, pela abrangência de autores de vários países, constitui um desafio de literatura comparada para o leitor, e uma fonte de debate para o criador de poesia. Os três breves ensaios exegéticos que o acompanham, de Érico Nogueira, Miguel Real e Victor Oliveira Mateus, evidenciam este desejo de colocar a poesia em frente o espelho, refletindo-a e pensando-a.

E o que contempla a musa? Existem dois polos, na presente coletânea: por um lado, uma poesia mais tradicional, cultivando a depuração, um uso rigoroso de vocábulos pertencentes à esfera semântica do poético, e ecoando o rumor de vozes antigas; por outro, composições que alargam o escopo da literatura, sem perder o seu âmago, desafiando o expectável, na linguagem, nos temas e até na própria mancha tipográfica. Os primeiros transmitem conforto ao leitor, entretecendo-se num cânone sólido e antigo, que reificam e representam talentosamente. Sobre os segundos, repousa a responsabilidade de renovar, rasgar, subverter, antevendo, enfim, o amanhã da poesia. Neste contexto, não nos podemos esquecer de que os grandes poetas foram também profetas, como Hart Crane, Walt Whitman, Fernando Pessoa, Ezra Pound, entre outros nomes maiores do cânone ocidental.

Argumentavam os antigos gregos, com alguma justiça, que um extenso poema constitui uma longa maçada. O mesmo talvez se aplique a todos os textos críticos ou de apresentação, como o meu, quando ameaçam transpor as três ou quatro páginas tradicionais. Não desejando abusar da paciência dos ouvintes, nem reclamar o tempo dos poetas, mais precioso do que o dos críticos, terminaria apenas com um voto de esperança. Num dos textos desta coletânea, José Jorge Letria afirma que, no tempo em que vivemos, a poesia se cala e omite, quase pedindo desculpa por aludir ao amor. Perante a realidade atual, só desejo que estes versos cintilem, palavra a palavra, rumo ao futuro que sobressaltamos.
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