terça-feira, 12 de junho de 2018


                Os drogados


Cemitério dos Remédios, Inverno de noventa e seis.
Ela assobia a um cão que desaparece entre as flores secas.
Um campo de seringas e jornais estende-se à tua frente
até à linha do nevoeiro,
destroços
de uma batalha para sempre adiada.

Continuas a fitar os vultos que atravessam em silêncio a gradaria
coberta por uma lâmina de ferrugem.

Foi quando descobriste que as crianças
habitam
uma espécie de pesadelo contínuo.

São os rostos da cegueira.

As ervas estalam nos olhos de uma gárgula
e tu dizes tenho frio, não vês
que estes mortos nos vigiam.

Mas é pela mão dela que vais contornando os labirintos
entaipados,
que então dariam
- hoje não -
para algum lado.

São os poços invadidos pelos drogados.
Olhas o seu rosto, o olhar humedecido.

Repetes tenho sede, deve haver
um caminho para voltar.

Ela nunca te dirá uma palavra.

Há um cão
morto que fareja as mãos dela.


   Miguel Filipe Mochila in Tempo da impaciência. Lisboa: Artefacto, 2016, pp 57-58.
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