quinta-feira, 14 de junho de 2018


              Duas Canções

                      1

Dar ar novo ao que velho parecia:
a plástica do amor. Ciciada ocupação,
mormente a que faz da minha pele
o teu estendal, com as tuas camisas
ao vento, e a que se enleia na tua juba
cor de corvo, que me ata os olhos ao acaso
e à disciplina, dado um novo ritmo
à respiração do madala.

Issch! Só pode chorar a cabeça
do velho quando te vê, macua duma figa!
Assim me pegou o amor,
de fora para dentro, e eis-me no Índico
- planalto de flamingos e desassossegados
lírios brancos engastados em rostos
de ébano. Agradeço ao deus,
em quem descreio, o descomposto,

e também ao amor
que sigilosamente me fortalece,
porque nem suposto existe o dentro
sem o fora. Issch! Só pode chorar
a cabeça do velho
quando te vê, macua duna figa!


                     2


Foi sempre o meu oposto.
Por isso em tudo me imita.
Peço-lhe que não, Digo-lhe
"o meu amor é incomparavel-
mente maior que o meu passado."

E ela que tem postigos para tudo
abre-me o postigo dos seios
abre-me o postigo dos ombros
abre-me o postigo do umbigo
abre-me o postigo dos lábios
abre-me portão do púbis...- perdão!

Fui sempre o seu oposto.
Por isso tenho chaves
até para o que se não espera.
Nesta rua sem perspectivas,
o seguinte jogo é que mantém
vivas as nossas tochas:
enfraquecida a chuva
roçamos um no outro
em carne viva até
adormecermos o atrito.

Ela quer dizer-me "o meu amor
é incomparavelmente maior
que o meu passado",
mas eu não deixo e mordo-lho
a orelha - sangra.


  Cabrita, António. in "o branco colarinho dos corvos". Os crimes montanhosos. Maputo: Cavalo do Mar edições, 2018, pp 42-44.
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