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O
ORIENTE E O SILÊNCIO NA POESIA DE RUI ROCHA
O recente livro de Rui Rocha, A Oriente do Silêncio, traz para o seio
da poesia escrita em português todo um olhar relativo ao mundo, à natureza e ao
outro, que não se inscreve numa tradição de cariz discursivo e logicista como é
a ocidental. Logo nos três poemas da dedicatória o poeta nos adverte, para a
estreita relação existente entre: o murmúrio de uma China antiga, um mandato
por cumprir nas sucessões de amantes e o império dos tons e da escrita. Esta
tríade, assente no que do longe veio até nós, naquilo que urge levar a cabo e
na preponderância daquilo com que nos expressamos, atravessa toda esta obra,
por conseguinte, como facilmente se vislumbrará, subjacentemente a esta
preocupação poética encontraremos a questão do movimento, que, em Rui Rocha,
jamais é abrupto ou turbilhonar: “e que me sussurra a vida” (p 17), “que
suavemente ecoa” (p 25), “o rasto suave e redondo” (p 69), mas, se por um
qualquer percalço do ver, esta brandura do acontecer se tentar insinuar com um
outro ritmo, logo este será estancado por essa serenidade essencial e de vida:
“o som das agudas marés/ rebente nas areias serenas” (p 77). Estamos, como se
depreenderá, no meio de um acontecer e de uma cosmovisão fundamentados num solo
matricial radicalmente distinto do ocidental.
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A uma civilização e, consequentemente, a
dadas formas do fazer artístico que dela emanam, que tem vindo a privilegiar a
tecnicização do mostrar e, com um certo gáudio, a impor o artificialismo do acontecer
como suma meta de civilização, Rui Rocha contrapõe o primado do silêncio como
território fundamental, e fundante, de um existir em autenticidade: “fiquei em
silêncio de mãos vazias e nuas/ atravessando a solidão das palavras” (p 43), “
o que não dizes aguarda-nos/ em cada esquina azul do mar” (p 65). Ao invés de
uma estética da loquacidade, bem ao gosto ocidental, é numa outra, de
serenidade e silêncio, que este autor vai cumprindo o mandato, os tons e a
escrita, que deixámos logo assinalados nas primeiras linhas desta recensão.
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A poesia de Rui Rocha, inextricavelmente
ligada à filosofia Zen, subverte assim, de uma forma despretensiosa e coerente,
toda uma miríade de quadros perceptivos, conceptuais e interpretativos a que
estamos habituados. Convém, no entanto, enfatizar que a opção
poético-filosófica deste autor pelo Zen, não deriva de um qualquer
circunstancialismo vivencial ou de uma acidental e acrítica escolha. A opção,
dentro dos meandros da sabedoria oriental até poderia ser outra, mas o poeta
chama a si a inteireza do seu mundo e é aí que, serenamente, e nesse silêncio
que se adivinha entre palavras e imagens, edifica o seu universo poético
naquilo que se percebe ser a extrema fidelidade a um projecto uno,
intransmissível e inalienável.
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Parece
estabelecido que, em 386 AC, um século depois da morte de Shakyamuni (o Buda),
deu-se uma cisão no seio do budismo que originou as duas principais escolas
desta filosofia: a corrente Hinayana e a Mahayana. Esta tendência de
autonomização foi imediatamente seguida de outras atitudes de ruptura: só para
o movimento Hinayana surgiram depois cerca de dezoito escolas, enquanto que o
budismo que se viria a difundir no Tibete é uma deriva do Mahayana que passou a
assumir uma certa especificidade, adquirindo assim a designação de Budismo
Vajrayana. Os mahaianistas, já assumidos como tal por volta do séc. I AC,
defendem a vocação central do Vazio, da Vacuidade, aliás, no budismo antigo já
se afirmava a ausência do em-si e a não-substancialidade dos fenómenos, só que
na escola Mahayana esta noção torna-se a verdadeira natureza das coisas, isto
é, esse absoluto para lá de todas as oposições. Por conseguinte, se na corrente
Hinayana se propõe que os fenómenos se assemelhavam a um Vazio carro puxado a
cavalos, já na Mahayana é a própria existência deste veículo que é em si mesma
Vazio – todas as oposições não são mais do que Vazio, e realizar a Vacuidade de
todas as coisas, adoptar o ponto de vista de Buda, é desencadear o Grande
Despertar (1). Mas, e para o que nos interessa aqui neste artigo, digamos
tão-só que a vertente Mahayana se propagou pela China, Coreia e Japão, tendo-se
desenvolvido no primeiro país duas das suas importantes escolas: o Chan (Zen) e
a escola da Terra Pura (estas as mais importantes, porque outras também
surgiram!). O Chan consiste em praticar directamente a experiência levada a
cabo pelo próprio Shakyamuni quando atingiu o Despertar e abandonou as
concepções pessoais e as criações do seu espírito. O início desta difusão na
China é fluída e só no século VIII, durante a dinastia Tang, se assiste a uma
exuberante eclosão do Chan com uma grande profusão de mestres. Todo este
perambular para nos aproximarmos de alguns filósofos do Chan, bem como de
certos desenvolvimentos por estes levados a cabo, e que nos aparecem, quanto a
nós, como enformando a poesia de Rui Rocha. Vejamos, pois, essas linhas de
leitura primeiro nos autores japoneses e, posteriormente, na própria obra do
poeta de que nos ocupamos aqui. Assim, defende Sengcan (? – 606) que se pararmos
todo o movimento do espírito este ficará tranquilo, diz-nos ainda que o
abandono da linguagem e do pensamento nos levará para lá de todo o lugar e que
a fonte original está para além do espaço e do tempo, já que um instante se
torna então dez mil anos; Dongshan Liangjie (807 – 869), que é um importante
mestre de uma das duas grandes escolas do Chan no Japão, a escola Caodon (Soto
), na sua principal obra ( Hokyo Zan Mai), afirma-nos que ir na direcção de, ou
tocar, não possuem, nem um nem outro, qualquer valor, não são mais do que uma
bola de fogo e, mais adiante, enuncia que meia-noite é a verdadeira luz e que a
alba não é clara (2), Hongzi Zhenjue ( 1091 – 1157 ) virá defender que o acto
de resplandecer, que não depende de relação alguma, acabará por significar que
a iluminação brilha com a sua a sua
própria luz. Poder-se-á afirmar, e na sequência do contexto esboçado, que a
poesia de Rui Rocha se encontra firmemente enraizada nessas culturas do Extremo
Oriente que chamam a si a espontaneidade e a naturalidade como pedra de toque
do verdadeiro e do autêntico, quer na vida quer na arte, e que ela apresenta um
inconfundível toque de sinceridade, intimamente ligado a uma acção não
planeada, que contrasta profundamente com as concepções ocidentais onde um
Logos omnipresente (e espartilhador) organiza pensamento e modos de acção. Para
o Chan a mente, ou a verdadeira natureza do homem, não pode ser dividida em
duas, essa ilusória divisão resulta da tentativa dessa mesma mente pretender
ser, ao mesmo tempo, ela própria mas também a sua ideia dela própria, daí a
fatal confusão ente facto e símbolo. Ora, para pôr um ponto final a esta
ilusão, a mente deve parar de tentar agir sobre si própria, sobre a corrente
das suas experiências, pois é este “por si próprio” é que é o modo natural de
agir da mente e do mundo: os olhos vêem por si próprios, os ouvidos ouvem por
si próprios e a boca abre-se sem termos a necessidade de a forçar a fazê-lo.
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Demarcando-se com acerbidade das filosofias
orientais, as correntes ocidentais – se delas excluirmos as formas de ateísmo e
de panteísmo, que até ao século XX foram francamente minoritárias – postulam
uma transcendência mais ou menos personificada, bem como uma cisão entre essa
mesma transcendência e o território da imanência, ora estas duas linhas de
força são completamente alheias a todas as filosofias budistas. No entanto,
apesar desta distinção, poder-se-ão encontrar zonas tangenciais entre os dois
pensares, que vieram, também elas, influenciar a poesia de Rui Rocha, aliás,
não é por acaso que o poeta usa mesmo uma epígrafe de São João da Cruz. Tomemos
pois, a título exemplificativo, três autores: em Scivias, obra que Hildegarda de Bingen concluiu em 1151, e formada
por três livros descrevendo o primeiro seis visões da autora, torna-se
interessante comparar a terceira dessas visões (independentemente da
interpretação que a própria Hildegarda dela virá a fazer) com todo o seu jogo
de esferas, trevas e chamas flamejantes, com o instante do Grande Despertar
intrínseco ao pensamento budista. Hildegarda, na visão seguinte, a quarta deste
primeiro livro, diz mesmo tê-la alcançado num esplendor imenso e sereno que brilhou como se múltiplos olhos fosse. Se,
contudo, não encontramos influências, demasiado fortes, da autora anterior na
poética de Rui Rocha, o mesmo não se poderá dizer de Eckhart que, no Sermão 5b,
defende que Deus apenas poderá começar onde termina a criatura, por
conseguinte, urge, no ser humano, a saída de tudo o que nele é criatural, pois
só após esse despojamento, Deus – o sagrado, diríamos nós – pode ser aquilo que
é no interior do homem. Este esvaziamento do em-si, assume, por vezes, no
eu-poético de Rui Rocha, fortes tonalidades de melancolia e, até mesmo, de uma
indelével sensação de falha e/ou de incompletude: “há muito que não te desenho
o amor sobre a folha/ de um papel/ não guardei e muito menos perdi essas
palavras/(…) escrevi-as dentro de mim quando mais lugar algum/ havia para as
escrever “ (p 45); “não sei o que se passa comigo/ tudo me parece vago,/ vago e
ausente.// algo me falta.// onde estou/ creio que não estou” (p 88). O Sermão
42 de Eckhart, que nos diz que na alma há uma potência mais vasta do que o
vasto céu, defende claramente que é no lugar onde terminam quer a compreensão
quer o desejo, e onde as trevas se iniciam, é exactamente aí que se inicia a
luz de Deus. Ouça-se então agora a voz do poeta: “a noite segreda-me de novo
aquele olhar/ que antes escutara nos teus olhos silenciosos/ e que me sussurra
a vida/ como a espiral de um búzio” (p 17); “tu és a voz/ que suavemente ecoa/
nos meus passos/ pelo chão da noite” (p 25). Todos os versos do poeta aqui
citados podem, do mesmo modo, ser confrontados com os poemas de São João da
Cruz, dos quais destacamos: o poema IV, Coplas
del mismo hechas sobre un éxtasis de alta contemplación e o poema XIX Glosa a lo divino.
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Na poesia de expressão budista, e neste caso
concreto mais ligada à variante Zen, há uma reverência para com a natureza que,
enquanto regra, é incomum no ocidente. Convém, no entanto, ressalvar que por
natureza não se entende tão-só as chuvas, as canas de bambu, etc., mas também
os desejos e os desencantos. E eis-nos ante uma nova característica desta
escrita: a extrema ambiguidade do referente deste universo poemático, nunca se
decidindo o eu-poético em explicitar se estamos frente a um qualquer processo
de antromorfose de onde uma mulher amada pode acenar, ou se essa insinuação
feminil é a projecção de outro tipo de contexto, como por exemplo a natureza:
esta noite a tua presença
rondou os meus passos.
a lua cheia chegou.
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Rui Rocha (op. cit. P 57)
Segue o poeta, então, esse
processo de enriquecimento que alguns teóricos têm postulado para os haicais,
ou seja, que o autor deve expressar a sua sensibilidade, mas evitando sempre as
impressões demasiados individualizadas. O fascínio pela poesia oriental, e
concretamente pelo haicai, tem levado alguns poetas que escrevem em português a
dedicarem-se a tal género de poesia, citemos apenas quatro exemplos de autores
através das suas obras referidas aqui na bibliografia:
Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes
explode numa flor
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Albano Martins (op. cit. p 251)
Madrugada –
No quintal, a lua
E o lírio branco.
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Paulo Franchetti (op. cit. p 28)
pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando
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Paulo
Leminski (op. cit. p 108)
Silêncio. Ouçam
a vida – água correndo
cada vez mais triste
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Casimiro
de Brito (op. cit. p 16)
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Se a poesia de Rui Rocha não acusa quaisquer
influências dos poetas portugueses de cunho orientalista, como por exemplo
Camilo Pessanha, não deixa de ser também verdade que, no essencial, esta
escrita pode bem aproximar-se do que de melhor têm feito, no género, alguns dos
grandes poetas de língua portuguesa e os cinco haicais acima transcritos
pretendem fundamentar esta posição. Por outro lado, a especificidade da matriz
poética do oriente aparece na obra do poeta cimentada nos seus múltiplos
aspectos, alguns dos quais já referidos neste artigo: a problemática do
movimento; a recusa da tecnicização e do artificialismo em arte; a reverência –
e até mesmo uma certa humildade – perante a natureza, que nada tem a ver com o
paradigma do domínio e violentação da mesma bem ao gosto do ocidente e que
pulula, enquanto amostra, em grande parte da poesia ocidental. A todas estas
variáveis, e para terminarmos conforme começámos: sob a égide da tríade, acrescentemos
– à guisa de conclusão – a grande importância que têm na poesia de Rui Rocha:
a) a recusa do discursivo e da narratividade, optando o poeta pela apreensão
desse instante fulgurante sempre conciso e nítido: “ave que o sol contempla/
branca, de todas as cores,/ eleva-se dos sombrios dias” (p 36); “um breve rasto
de leme/ cortou a luz deitada/ na poeira surda das ondas” (p 83); b) o estatuto
do silêncio no seio do dizer: “sem acordar as palavras/ deslizei até ao chão”
(p 37), “escuto o teu silêncio/ a entardecer o dia./ apenas a luz da lua/ me dá
conta de ti.” (p 53); c) a importância desse Grande Despertar, que recusa todo
um logicismo iniciado no Ocidente por Platão e que depois Aristóteles
desenvolveria fundamentando, bem como todo um universo conceptual de tipo
dicotómico, optando antes por um discurso assente num despojado ver, que,
frente, à impermanência dos fenómenos, se ilumina e ilumina o que na abertura
de ser se mostra como algo pleno de autenticidade A Oriente do Silêncio.
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No entanto – e convém acrescentar – ao
enriquecimento e à fascinação que a leitura deste livro de Rui Rocha nos traz
não é alheio o sábio modo como maneja as imagens, o código linguístico e as
técnicas do labor poético, quer em cada poema quer na obra enquanto todo. Dessa
sua arte frisemos apenas o uso de estruturas poemáticas de tipo anafórico, cujo
objectivo é imprimir ao discurso ritmo, leveza e musicalidade (cf. pp 34, 47,
51, 75…); o recurso aos paradoxos na apreensão do acontecer: “escuto o teu
silêncio/ a entardecer o dia.” (p 53), “este é, de resto, o único sentido/
claro e absurdo da natureza,/ é ser tudo e ser nada ao mesmo tempo.” (p 89) e,
finalmente, a constante tentativa de fixar o aqui e agora:
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guiada pelo rasto da última estrela
reflecte-se a maresia da tarde
além, no sal azul dos litorais.
contra o submerso silêncio das horas
a noite esconde-se atrás da lua.
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Rui Rocha (op. cit. p 71)
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e é esta tentativa, sempre por
esta escrita retomada, de absolutização do instante, que constantemente ilumina
o percurso do eu-poético na demanda desse seu Oriente que é, acima de tudo, resplendor e Silêncio.
Mateus, Victor Oliveira. Revista de Cultura/ Review of Culture, Macau, 44, 2013, pp. 59-63.
(1) Relativamente
a este ponto será útil a leitura dos Capítulos 17, 18 e 19 de Tratado do Meio de Nagarjuna, autor
fundamental do Budismo e fundador da escola Madhyamika, “A Via do Meio”; são
também de sua autoria os importantes comentários “Prajnaparamita-Sutra” onde a
noção de Vacuidade é devidamente clarificada.
(2) Leiam-se
os capítulos “a noite dos dias” e “contos de lua vaga” de A Oriente do Silêncio.
BIBLIOGRAFIA:
. Bashô, Matsuo (1986). O gosto solitário do orvalho. Lisboa:
Assírio & Alvim.
. Brito, Casimiro (2012). A Boca da Fonte. Póvoa de Santa Iria:
Lua de Marfim.
. Crépon, Pierre (1991). Les fleurs de Bouddha, Anthologie du bouddisme. Paris: Albin
Michel.
.Cruz, S. João da (2002). Os mais belos poemas. Queluz: Coisas de
Ler Edições.
. Eckhart (1995). Traités et Sermons. Paris: GF-Flammarion.
. Franchetti, Paulo (2007). Oeste. São Paulo: Ateliê Editorial.
. Leminski, Paulo (2002). Distraidos venceremos. São Paulo:
Editora Brasiliense.
. Martins, Albano (2000). Assim são as algas. Porto: Campo das
Letras Editores.
. Nagarjuna (1995). Traité du Milieu. Paris: Éditions du
Seuil.
.Pernoud, Régine (1995). Hildegarde de Bingen, conscience inspirée du
XIIe siécle. Paris: Editions du Rocher.
. Rinpoché, Kalou (1993). La voie du Bouddha. Paris: Éditions du
Seuil.
. Rocha, Rui (2012). A oriente do silêncio. Lisboa: Esfera do
Caos Editores.
. Shantideva (1998). O caminho para a Iluminação. Lisboa:
Livros e Leituras, Lda.
. Watts, Alan W. (S/d). O Budismo Zen. Lisboa: Editorial Presença.
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